2007/05/31

O tempo, escultor de pessoas e dos seus mapas

Um dia um amigo, de quem sou muito próximo apesar das diferenças de idade, perguntou-me como é que acontece a chegada dos anos, do tempo. Expliquei-lhe que é como uma visita que não convidámos, mas que é tão discreta que não se dá por ela. Tudo se passa como quando os dias de Verão vão dando lugar a outros e vamos sentindo a necessidade de vestir peças sucessivas de roupa, que se somam sobre o corpo à medida que o tempo muda. Às tantas chegamos ao Inverno e é quando nos damos conta de que está um frio do caraças.
A roupa não é de pano ou de fazenda; são camadas de pele que se vão sobrepondo, moldando o aspecto com que aparecemos junto dos outros e de nós mesmos.
O tempo é, de facto, "esse grande escultor", Yourcenar dixit.
Quando nos damos conta de que o tempo foi chegando, acrescentando novas camadas de tecidos adiposos e de pele mais flácida que dantes, achamos que ele nos está a fazer mal; mas não temos razão. E tentamos despir as camadas de pele, como quem se quer despir das memórias. Mas as memórias são precisamente aquilo que o tempo nos dá em troca das sucessivas camadas de pele que nos impõe. São as fatias da vida que já vivemos.
Essas já cá cantam; ninguém no-las pode tirar.
Às vezes penso que gostaria de traçar os mapas, datados, dos percursos de um amigo que já não via há anos e que venho a reencontrar; assim ficaria a saber o quão perto estivemos naquele dia, mas não nos cruzámos, e o quanto se afastaram nossos percursos noutras alturas. E tantos acontecimentos e vivências cada um viveu, com tantas outras pessoas cruzou intimidades, tantas coisas aconteceram sobre as pedras das ruas que pisamos... que será feito dele?
Depois percebemos que cada um está numa fase, num chão da sua vida.
Por mais que não coincidam esses chãos, ou mesmo impeçam o calor que, por momentos, se desejou, uma proximidade já esquecida pode acontecer.
E, se por acaso aconteceu, agora já cá canta e ninguém ma pode tirar.
E vamos continuando a traçar os nossos mapas...

Fumados e mal pagos

Penso que é por estarmos a viver neste clima de vidros meio fumados, de queijos meio curados, de meias tintas, de meios tons e meias verdades que estas coisas vão acontecendo e eu já não me consiga sequer espantar. Então não é que em pleno Dia Mundial Sem Tabaco ficamos a saber que a nova Lei Anti-Tabaco vai afinal ter as coimas atenuadas?! Quando se pensava que íamos ver uma perseguição violenta aos fumadores, o convite, quiçá, aos não fumadores para denunciarem algum fumador incauto, apanhado a fumar em local proibido, sem que a autoridade estivesse atenta, e outras medidas semelhantes --condizentes, aliás, com alguns sinais que o governo vem lançando de que quer taxar tudo o que mexa e tudo quer manter sob controlo...--, eis que assistimos, estupefactos, a este aliviar dos rizes!
Como temo de há muito que nos andam a querer tratar da saúde, ponho-me, desconfiado que sou, a pensar se o recuo não será antes o resultado da previsão de uma quebra substancial de receitas provenientes da venda do tabaco.

O tempo, esse grande escultor

Uma das minhas grandes referências literárias é Marguerite Yourcenar. Curiosamente não tanto pelo celebrado "Memórias de Adriano", mas mais pelo percurso desencantado do visionário de "A obra ao negro", ou a descrição do drama que é imposto por situações em que se cai malgré nous em "Golpe de misericórdia".
Mas tenho reflectido sobre o tempo, nos últimos tempos. Talvez porque o tempo para mim começa a contar e, consequentemente, dou por ele.
É por isso que partilho convosco a fala de Gherardo Perini traduzindo palavras do seu Mestre, Miguel Ângelo, que o conheceu em 1522 e por ele se apaixonou, retiradas de "O tempo, esse grande escultor" (ed. Difel, com magnífica tradução de Helena Vaz da Silva):
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2007/05/30

stand-up comedy

Todos os anos, por esta altura, chegam-nos os sinais que antecedem o Verão. 2007 não tem sido excepção. Aliado ao Verão e ao calor, temos a "silly season", uma época normalmente marcada por episódios caricatos e aos quais não se costuma dar muita importância. Este ano, porém, a "silly season" parece ter chegado mais cedo.
Começou com a anedota do ministro Lino, sobre o seu diploma de engenheiro, reconhecido pela respectiva Ordem; seguiu-se a entrevista do inefável Manuel Pinho, sobre 500 postos de trabalho que, apesar de terem desaparecido, já teriam sido criados anteriormente; voltou o ministro das obras públicas a reincidir, com o melhor "on liner" da semana sobre o deserto a Sul do Tejo; e, certamente inspirado por tantos "gags", Almeida Santos não resistiu a lembrar que um aeroporto a Sul do Tejo seria um alvo fácil para o terrorismo...
Estava eu ainda a recuperar desta verdadeira selecção de cromos quando, ao ligar a televisão, deparo com o candidato do PSD à Câmara de Lisboa em visita a uma unidade de pediatria da capital. Interrogado sobre as condições do estabelecimento de saúde (era esse o motivo da visita) Negrão respondeu que a situação era conhecida e não diferia muito de outras unidades semelhantes, para continuar: "mas já agora quero aproveitar para dizer que não compreendo porque é que o candidato do PS, ainda não falou se quer ou não o aeroporto da OTA" . O aeroporto da OTA? Numa visita à unidade de pediatria de um hospital? Mas, esta gente endoideceu? E os jornalistas? Ninguém que chamasse a atenção de Fernando Negrão para as perguntas que lhe tinham sido feitas sobre as condições de saúde que ele, supostamente, tinha ido averiguar?
Ou será que os políticos, invejosos do êxito dos "Gatos Fedorentos", querem criar o seu próprio programa de anedotas? É uma possibilidade. Quando terminarem a carreira, poderão sempre concorrer a um programa de "stand up". Por enquanto, o meu cómico favorito ainda continua a ser Lino. O maior. Não perco uma.