2009/04/16

O novo código de custas judiciais

O discurso do actual bastonário da Ordem dos Advogados deixa frequentemente, temos de reconhecê-lo, muito a desejar. Hoje, porém, é dia de aplauso (que querem, esta semana deu-me para aqui...)
Marinho Pinto insurgiu-se contra o novo código de custas judiciárias que vai entrar em vigor a partir de amanhã. Acusa o Estado de transformar a Justiça num "bem de luxo, pago a preços de mercado."
Tem toda a razão.
Marinho Pinto fala numa "violação qualificada da Constituição", teme, perante a patente elitização deste sector, o surgimento de casos de justiça feita pelas próprias mãos e chama a tudo isto um "retrocesso" no estado de direito.
A transformação de tarefas essenciais, prestadas em regime de monopólio pelo Estado, em "bens de consumo", e do próprio Estado numa espécie de grande centro comercial, com parqueamento pago, que procura cativar a clientela em vez de servir os cidadãos, como é seu dever, é um problema grave em relação ao qual apenas podemos esperar uma coisa: vai-se agravar ainda mais. Não podemos esperar alívio da canga enquanto imperar esta lógica de organização do aparelho de Estado. O Estado está hoje remetido a um papel de garante da sua própria sobreviência, da dos seus mentores e das clientelas políticas que gravitam no seu campo magnético. A crise é isto.
Desenganem-se aqueles que pensam que as reformas se destinam a melhor cumprir o seu papel. Os "simpléxes" destinam-se a encontrar novas formas de sustentar a máquina, quando as velhas se revelam obsoletas ou ineficazes. Os novos "produtos" que nos são constantemente propostos não passam de impostos encapotados destinados a garantir uma máquina administrativa parasita, deficitária e mal gerida. Um crime escandaloso que a generalidade dos portugueses não parece perceber. Há mesmo uma inexplicável tolerância e uma atitude ingénua de aceitação dos renovados expedientes de que o Estado se serve para sustentar a sua insuportável autofagia. Novas oportunidades é com o povo português! O novo código de custas judicias constitui apenas mais um nicho de mercado deste rico negócio em que se tornou a causa pública. Tudo isto é crise...
E nada os parece conseguir parar. Vale tudo! Agora até o seleccionador de râguebi foram buscar para motivar ainda mais os publicanos.
Ao ver as garantias, a imunidade à crise, a resistência à reforma e os privilégios de que goza este sector, até me admiro como os milhares de trabalhadores, que enxameiam hoje os Centros de Emprego por esse país fora, não vêm mais frequentemente para a rua gritar "Também quero!"
Amanhã entra em vigor o novo código das custas judiciais, depois de amanhã inventar-se-á outro negócio para cobrir o défice da coisa publica. A seguir um outro qualquer Marinho Pinto virá insurgir-se muito contra isso. E o processo seguirá assim, até que a corda se rompa...

2009/04/15

Matemática para os matemáticos...

Faltam a Cavaco Silva, na minha opinião, todas as qualidades para ocupar o cargo para que foi eleito. Não surpreende, pois, que os seus comentários e as suas iniciativas reflictam isso mesmo.
Hoje o PR declarou-se, mais uma vez, muito preocupado. Desta feita está preocupado com as previsões do BdP. Também eu tenho andado muito preocupado com essas previsões, devo confessar. Sobretudo porque noto que os responsáveis, em particular o PR, se limitam a revelar-nos os seus estados de alma, declarando-se preocupados, enquanto mantêm tudo exactamente na mesma! Assim, asseguro-vos, também eu era PR. Se alguém aliás estiver disposto a apoiar a minha candidatura, declaro-me desde já disponível para ocupar o cargo. O trabalho dava-me jeito...
O PR anda também preocupado com a Matemática. Diz que é "imprescindível» o aumento do número de pessoas com competências" nesta disciplina. Fá-lo no âmbito do que designa de "roteiro da ciência", iniciativa destinada a chamar a atenção dos cidadãos para esta área.
Fala em "iliteracia" quando se refere ao panorama do país no domínio da Matemática. Reconhece, com ar grave, que este problema "prejudica seriamente o desenvolvimento do país".
Fá-lo nalgum bairro popular? Nalguma escola básica? Nalguma zona carenciada por forma a que os seus habitantes tenham a noção de que precisam de se ultrapassar e desenvolver conhecimentos matemáticos, porque estes são úteis para o progresso do país e dos seus cidadãos? Perante uma plateia de trabalhadores vítimas de lay off e em busca de requalificação? Fá-lo no âmbito de alguma iniciativa específica, por ele patrocinada, destinada a promover a erradicação deste problema ? Fá-lo para anunciar que vai dar pessoalmente noções de Matemática na Presidência da República, em horário pós-laboral, aos moradores da zona de Belém?
Não, fá-lo no ISEG, onde é suposto toda a gente ter conhecimentos de matemática, acima do nível da iliteracia... Fá-lo debitando generalidades há muito conhecidas. Fá-lo no final de um "roteiro" que o levou a percorrer uma série de universidades e centros de investigação onde seria escandaloso se o nível de competência no domínio da Matemática indiciasse iliteracia e onde a linha principal de actividade não pode passar pela luta contra ela. Falou, portanto, como se costuma dizer, para o boneco.
Que leitura devemos nós então fazer desta iniciativa presidencial?

Criacionismo e Darwin

Volta não volta, a minha costela anticlerical manifesta-se aqui no Face. É simples perceber porquê. As posições da Igreja Católica e dos seus agentes dão-me frequentemente volta ao estômago. Considero que esta instituição é, entre as muitas outras razões que originam esta minha perturbação estomacal, um contribuinte, decisivo e relapso, para o mal profundo que afecta este país. Não admira, pois, que o assunto seja aqui tema de conversa regular.
Sejamos, contudo, justos: a crítica recente do cardeal patriarca feita às leituras apressadas que os teólogos católicos fazem muitas vezes do evolucionismo merece saudação. D. José Policarpo não hesita em classificar estas posições como resultantes de uma "leitura deficiente" da Bíblia, feita tanto pelos críticos católicos, como por alguns darwinistas. E vai mais longe, aproveitando muito justamente para estender a sua crítica a outros movimentos criacionistas.
A quantidade de asneiras que se dizem sobre este tema, de um lado e de outro, é de facto lamentável. E é um facto: há gente mais papista que o Papa (seja qual for o cisma), mas há também aqueles que são mais darwinistas que Darwin. 
Ora, o que há é, sobretudo, mais evolucionismo para além de Darwin. Sabendo disso, D. José Policarpo revela nestes seus comentários uma enorme habilidade e --para mim, que sou bastante limitado enquanto observador destas coisas...-- uma surpreendente sensibilidade e coragem.  
Por uma vez, tenho de aplaudir um prelado.

2009/04/12

Do abraço da Rainha à tatuagem de Di Maria

Este mundo é extraordinário. Quando o jornalista mordia o cão e era notícia já nos espantávamos. Mas apesar de tudo aí, nessa dentada inexplicável à primeira apreciação, havia qualquer coisa a remeter para a psiquiatria, que pedia assunto, escavar as camadas de sentido e oculto, mais Freud menos subconsciente, mais escândalo programado menos cabeça. Agora as coisas mais idiotas são parangonadas e equiparadas aos grandes acontecimentos, a História entrelaçada na insignificância do salto, alto ou baixo, como este abraço da Rainha depois de a Michelle Obama a ter semi-enlaçado, as duas de costas para as câmaras e máquinas fotográficas – nunca uma dupla traseira ficou tão notada –, os olhos do mundo, os nossos, centrados naquele alto de rabo monárquico e naquele braço ex plebeu, num toque que, bem verificado, é absolutamente inexpressivo, encosto delicado, porventura ali na expectativa de que a Rainha caísse para trás, do cimo da sua provecta idade, as pernas não perdoam.
No tempo de remoer no caso foram-se vários bombistas suicidas, eficazes máquinas homicidas, numa lógica que não quebra e que era necessário quebrar. A irrelevância destes casos mede-se pelo impacto absolutamente rotineiro da notícia. Que valem umas dezenas de mortos lá no Iraque, depois de muitas outras dezenas de mortos, perante um abraço sem cobertura protocolar?
Tantos bombistas e tantos homicídios suicidas que os dias de consumo engolem como uma praga longínqua que, a bem ver, esta coisa do mundo global tem muito que se lhe diga, entre o lá longe e o aqui ao lado.
Localmente informados, ou melhor, desinformados pela montagem e sequência das notícias, modo de aparecer e localização, relevância, página ímpar ou par, primeiro plano mais que de sangue num telejornal que cega, tamanho gigante das letras mas tempo escasso, irreflexão estimulada, corrida para a frente interminável e cumprida diariamente com as cautelas devidas para não acicatar ódios politicamente incorrectos, e o mais que se sabe e não se clarifica, nós caminhamos alegremente pelos trilhos da insignificância alimentada sem a noção de que, na verdade, também somos parte desse mundo. O que qualquer dia nos cairá em cima como um cataclismo. O culto da cegueira é uma estranha coisa, e mesmo que os sobressaltos de racionalidade abram brechas nestes dias a preto e preto como na Branca de Neve do João César, vamos sonhando com a utopia da crítica, essa figura inalcançável e propriedade dos especialistas de opinião – o que será isso? – que vão enriquecendo licitamente nas trincheiras queridas.
Esta do Di Maria estrear uma tatuagem ultrapassa tudo e consola-nos a meio dos funerais de Estado na Itália. Felizmente tudo não passará de um fim de semana no parque de campismo.