2009/05/20

Viver de pé atrás

Hoje, a propósito do tema da qualidade e do preço dos combustíveis, ouvi alguém comentar que há um problema de confiança dos consumidores nas gasolineiras. Concertação de preços --ninguém acredita nela, mas deve ser como as bruxas...--, aditivos desconhecidos --não existe nenhuma certificação independente neste domínio--, é tudo "guerra comercial", proclama com leveza o secretário de Estado da tutela. A esta desconfiança nas gasolineiras, acrescentava o comentador, junta-se a desconfiança nas empresas do sector financeiro, bancos e outras, envolvidas nos tempos que correm em casos que deslustram totalmente o seu objecto social. Em quem podemos nós acreditar?
A somar a tudo isto, acrescento eu, existe uma total desconfiança dos cidadãos nas instituições do Estado. Desconfiamos das polícias, das finanças, da justiça, da saúde, da educação, das autarquias, dos serviços municipalizados, etc, etc, etc. Ninguém escapa! Desconfiamos do Estado porque colocamos nas suas mãos uma parte significativa dos nossos proventos, fora o que nos é sacado à sorrelfa, e em troca somos brindados com a sua ineficácia e com o seu total e absoluto desprezo por nós. E desconfiamos do Estado porque, quando tudo aponta para que seja o Estado o alvo de todas as desconfianças, somos nós que somos por ele tratados com desconfiança...!
A própria imprensa, veículo através do qual nos vão chegando, timidamente, alguns ecos das pequenas e grandes traições da confiança, não merece grande confiança, ela própria, conhecendo-se o seu enquadramento institucional e a sua própria lógica de funcionamento, totalmente distorcida, que fere de morte qualquer sombra de confiança que nela pudéssemos originalmente depositar.
A elementar prudência leva a que vivamos, pois, hoje mais do que nunca, de modo generalizado e permanente, de pé atrás.
Bem podem as marcas, as empresas e outras instituições, particulares ou oficiais, invocar pretensos inquéritos que nos tentam fazer acreditar que elas são dignas de toda a confiança. Volta não volta lá ouvimos a empresa A a gabar-se que foi distinguida com o galardão de merecedora da maior confiança dos Portugueses, ou a marca B a dizer que estes a distinguem entre todas as outras. Para acreditar em tudo isto era necessário que os próprios inquiridores, as empresas de sondagens, de auditorias, etc nos merecessem confiança. Mas, não merecem. A discrepância entre o mundo real e o mundo por eles fabricado é total. E sabemos todos que é possível produzir resultados bastante lisonjeiros "martelando" as componentes dos inquéritos e das análises e introduzindo factores de amortecimento de eventuais apreciações negativas ou aldrabando pura e simplesmente os resultados por interesses corporativos. O mesmo se passa no caso da defesa do consumidor. Quem nos defende dos defensores?
As instituições vão sobrevivendo, no meio da generalizada desconfiança que delas os cidadãos hoje têm. E sobrevivem muito à custa de toques e retoques de imagem. O culto da boa imagem é fundamental. O universo institucional vive para a e da imagem. Muito legítimo e importante trabalho académico acabou como mero lastro das técnicas de produção de imagem. O que gera desconfiança sobre os produtores de imagem --que buscam "legitimidade científica" para a venda a retalho-- e sobre a academia --que não parece servir para muito mais do que inspirar os retalhistas. Enquanto a boa imagem passar, o mundo de faz de conta das empresas, organismos oficiais e outras instituições vai-se aguentando. Mas nós sabemos que as imagens são efémeras e o Photoshop uma grande ferramenta.
É uma verdadeira espiral de desconfiança esta em que nos encontramos mergulhados. O conto do vigário é hoje o primeiro e único mandamento desta nova religião.
Religião? Eu falei em religião?! Bem, o melhor é não me alongar mais...

2009/05/17

Viver da crise

Naquela linguagem hiperbólica que os sacerdotes adoram cultivar, o Cardeal Patriarca perguntava recentemente se "queremos resolver a 'crise' ou queremos também 'escutar' a crise?" O advérbio atrapalha, mas a antinomia é clara e parece-me infeliz e gratuita. Resolver e escutar são faces da mesma moeda.
Não sei, no entanto, se a pergunta, com subtis ressonâncias críticas, não terá sido feita para dentro da confraria. Mas sei que esta anda há séculos a fazer ouvidos moucos a esta e a todas as outras crises. Diria mesmo que vive da surdez, vive da crise.
As interrogações do prelado trazem, por sua vez, outras interrogações ao espírito. Quando diz que é necessária uma nova consciência, está implícita uma crítica à velha. Mas, lembro-me do fortíssimo contributo da confraria para velha consciência e, nesse, sentido, não posso deixar de pensar numa co-autoria da crise.
Olhando a nova ordem social que está em marcha, olhando os fenómenos globais que hoje se manifestam por todo o mundo, olhando as posições da confraria sobre as inúmeras e mais ou menos visíveis emanações de tudo isto, olhando ainda as suas ancilosadas posições sobre o percursos que o mundo hoje tenta percorrer, interrogo-me sobre a sua capacidade para "escutar" a crise e, em decorrência, sobre o verdadeiro sentido do alerta.
Esta, como outras confrarias, vive das crises e sobrevive nas crises. Por outro lado, conhecemos bem o destino que as novas consciências têm tido na história da confraria. Que sentido fará pois o apelo para escutar esta crise?