2009/05/30

A verdadeira diferença entre o bestial e a besta está nos pequenos actos

Uma notícia de ontem dava conta que o executor (um dos...) de Victor Jara, um tal José Adolfo Marquez, tinha sido localizado e detido no Chile. O homem tem hoje 54 anos e teria à data 18. Obedecia, dizia ele, a ordens de Manuel Contreras, comandante da sua unidade e mais tarde fundador da DINA, a polícia política de Pinochet.

O que terá levado um rapaz de 18 anos, soldado --que confessou o crime, mas agora exige que peçam também contas aos altos comandos-- a disparar sobre o corpo de um cantor, indefeso, que nem sequer a sua guitarra podia tocar, um corpo coberto de sangue, uma massa de ossos partidos?

Num texto admirável sobre os ecos do golpe de Pinochet chamado "Between the Silence and the Screams" (*), Peter Read e Marivic Wyndham, descrevem os momentos finais de Jara. Foi levado da Universidade Tecnica del Estado, juntamente com centenas de outros que aí se reuniram enquanto decorria a tomada do Palácio de La Moneda, para o então chamado Stadium Chile. Juntaram-se-lhes depois os operários das chamadas "cinturas industriais" do Chile. No total estariam detidos no estádio uns 5 000 prisioneiros. Reconhecido por um dos tropas durante a detenção, uma criatura a quem chamavam "Príncipe" (um camarada de armas do Marquez, "alto, louro e simpático"), foi antes levado para um balneário do estádio, agora transformado em câmara de tortura. O "Príncipe" terá "reservado" Jara para si. Quando foi levado finalmente para o relvado do estádio, já mal se podia manter em pé, sangrava e tinha ossos partidos.

"Foi nessa altura", escrevem Read e Wyndham, "que Jara pediu aos seus amigos que lhe arranjassem uma caneta e papel e começou a escrever a sua última canção.

Há cinco mil de nós
Nesta pequena parte da cidade
Há cinco mil de nós
Quantos haverá no total?
Nas cidades e no resto do país...
Só aqui, há dez mil mãos que plantam sementes
E fazem trabalhar as fábricas


Ninguém sabe se ele terminou a canção, mas as suas últimas palavras foram:

O que eu vi, nunca tinha visto
O que senti e sinto
Dará origem ao momento..
.

Jara conseguiu passar o papel aos amigos antes que os guardas o viessem buscar para um último encontro com o "Príncipe" durante o qual foi de novo provocado e espancado. "Canta agora se conseguires filho da puta!" Uma provocação a que Jara respondeu, cantando um verso da canção Venceremos, o hino do Partido de Unidade Popular de Allende. O seu extraordinário acto de temeridade, ouvido por muitos no estádio, provocou ainda mais represálias de grande crueldade. Terá sido nessa altura que o "Príncipe" lhe fracturou os pulsos."

Foi também nessa altura que um oficial jogou roleta russa com Jara e que este Marquez e os outros crivaram o corpo do poeta e cantor com 44 balas. Foi já no relvado para onde foi arrastado, provavelmente antes do crepúsculo, no dia 16 de Setembro, que morreu.

A linha que divide a barbárie da civilização é ténue, mais ténue do que se pensa. A besta revela-se no "príncipe" mais encantado. Lembro-me de, na altura do golpe, ter sentido uma enorme revolta e de ter experimentado uma angustiante sensação de impotência. Hoje, pergunto-me como foi possível algo como o que se passou no Chile ter acontecido. Pergunto-me como é que, depois deste horror, a ocorrência, noutras partes do mundo, de actos bárbaros semelhantes a este tem sido de novo possível. Mas pergunto, acima de tudo, em que pequenos actos, feitos de cobardia, desleixo ou ignorância, deixamos medrar esses actos maiores. O Marquez pode estar em nós próprios...


(*) Hearing Places, Sound Place, Time, Culture - Ed. Ros Bandt, Michelle Duffy e Dolly MacKinnon; foto de Victor e Joan Jara do Freedom Archives.

2009/05/29

Obrigado ERC

A decisão da ERC relativa ao Jornal da Noite da TVI parece aquela história do "pato com laranja" de que alguns se lembrarão. É chocante (profundamente chocante!) a decisão, são chocantes as justificações e os processos da ERC e constituem um verdadeiro escândalo as cínicas declarações de Arons de Carvalho sobre este assunto. A imaginação corre à solta quando se pensa nesta figura a "regular" a pasta da comunicação em tempos anteriores...
Tudo isto cheira a mafia e a trampolinice, e revela claramente os tiques autoritários e fascitóides desta governação "socialista", para além de revelar o grau de "isenção" dessa "entidade reguladora da comunicação" (só o título causa logo um calafrio!).
Ninguém me ensina a ver um telejornal, ninguém me diz o que eu posso ou não posso ver, já tenho um pai que chegue! E digo-vos mesmo mais: nunca fui fã da Manuela Moura Guedes, mas vou passar a ver e ouvir o dito Jornal da Noite religiosamente todos os dias... Pode ser que aprenda com a informação da TVI aquilo que o "rigor" e a "independência" de outros serviços informativos me impedem de conhecer.
Obrigado ERC.

2009/05/26

Da problemática do Ego

Nesta longa e desconcertante saga em que se transformou o caso BPN e a respectiva comissão parlamentar de inquérito, o dia de hoje ficará certamente para a história como o momento "zen" desta investigação. Como não bastassem as amnésias de Dias Loureiro ou os desmentidos de António Marta, surge agora Oliveira e Costa a "pôr a boca no trombone" e a acusar tudo e todos: Victor Constâncio do Banco de Portugal, os "dez accionistas" do BPN, Dias Loureiro (um ego problemático) e, calcule-se, Miguel Cadilhe o qual, de acordo com as declarações do ex-director, ganharia "só" duas vezes e meia mais do que Costa em dez anos (!?). Tudo gente de egos desmedidos. Do dinheiro desaparecido, não se falou. Para onde foram os mais de mil milhões que, entretanto, voaram e levaram o BPN à maior falência fraudulenta da história bancária portuguesa? Essa devia ser, de facto, a questão central.
Tudo indica que as acusações pessoais não acabarão por aqui. Agora que a "caixa" de Pandora foi aberta, é dificil não imaginar uma reacção dos visados à mortal acusação de Costa. Temos de reconhecer: os banqueiros vivem dias dificeis. Com tantos "egos" em disputa, só mesmo uma cura de divã. Um bom negócio para psicanalistas.

2009/05/24

Desenrascanço

Mãos amigas (como sói dizer-se...) fizeram-me chegar a referência de um site cuja leitura atenta parece revelar mais do que a curiosidade, divertida e anódina, poderia indiciar.
Dez palavras, diz o site, que fazem falta na língua inglesa. Por ordem de importância. E a palavra que, segundo os autores do site, mais falta faz na língua inglesa é, imaginem, desenrascanço! Assim mesmo, em português.
Uma qualidade que, sem dúvida, os portugueses sobrevalorizam, mas também subvalorizam.
Foi com base no desenrascanço --mais do que na cartografia, tenho quase a certeza...-- que os portugueses foram levados a desbravar novos territórios. Outras nações, à época mais ricas, com mais gente, maiores recursos, nem sequer o tentaram. Mas, os portugueses, na altura já certamente mestres na arte do desenrascanço, lá foram por aí fora. Não foi a cultura do conhecimento, da reflexão filosófica, a capacidade invulgar de organização ou a queda para o planeamento rigoroso que nos levaram a partir por aí. Foi este desenrascanço que nos conduziu mais longe porque, face ao desconhecido e à ausência de receita para o enfrentar, a capacidade de improviso era certamente a única resposta possível, era mesmo a resposta adequada.
Os portugueses são desenrascados por natureza, vá-se lá saber porquê. Não serão certamente os únicos, mas foram e são aqueles que, em determinado momento, melhor souberam usar essa capacidade.
O desenrascanço terá sido o factor chave que nos fez partir e foi, sobretudo, o método de eleição usado na resolução dos nossos desafios expansionistas. O feito foi inequívoco, mas os resultados finais do esforço ficaram-se pelo medíocre. O desenrascanço serviu-nos para atingir a costa do Malabar e sugar ao infiel os recursos abundantes, enquanto era fácil fazê-lo e o resto da malta andava ainda distraída. Quando se perdeu o efeito surpresa e o empreendimento se tornou mais complexo, exigindo mais organização e planeamento, outros tomaram conta das operações.
O exemplo da cortiça é também eloquente. Não é por acaso que o maior produtor e exportador do mundo de cortiça não tem um único centro de investigação sobre o produto e que o assunto raramente merece as atenções dos académicos. Não é por acaso que os produtos de grande valor acrescentado baseados na cortiça são raros. O ataque dos vedantes sintéticos deixou a indústria corticeira portuguesa com as suas debilidades totalmente à mostra... Enquanto se trata de desenrascar a extracção da cortiça e de produzir umas simples rolhas a coisa ainda vai. Quando o grau de rigor aperta e exige mais organização e menos desenrascanço, a indústria baqueia completamente. Numa área sem concorrência significativa, esta indústria não conseguiu passar da fase do desenrascanço.
É que os portugueses, e sobretudo os seus dirigentes, demonstram ao longo da história gloriosa um horror patológico ao planeamento e à organização. E o desenrascanço é uma espécie de desporto nacional e solução única para todos os nossos problemas. Os portugueses teimam em recorrer a uma solução, o desenrascanço, que serve nalgumas ocasiões, mas parece uma qualidade inútil (ou mesmo contraproducente) noutras.
Neste sentido, esta qualidade é manifestamente sobreavaliada por nós.
Mas, por outro lado, paradoxalmente o "génio" português não parece levar este assunto suficientemente a sério. Não soube nunca tirar partido duradouro deste seu talento e não conseguiu criar um "produto" que incorpore esta qualidade e se distinga pela presença implícita desta qualidade.
O MacGyver devia ser português!
Outros povos sabem valorizar as qualidades que os distinguem. Os alemães são frios pensadores e sabem organizar-se como ninguém. Os suiços são rigorosos e precisos. Os italianos têm um sentido estético sublime. Os espanhóis distinguem-se pela sua bravura e destemor. Os japoneses são exímios na extracção da essência das coisas. Souberam todos transformar essas qualidades em mais valias para a sua vida, souberam exportá-las ou acrescentar esse valor aos produtos por eles criados. Souberam inventar produtos que incorporam essas suas características. Um automóvel alemão ou um relógio suiço não são só parafusos e porcas. Um sapato italiano não é simples couro cosido. Um walkman não é só chips de silício.
Os alemães não são os únicos pensadores, os italianos não são os únicos estetas e os espanhóis não são os únicos bravos. Mas, todos eles conseguem reflectir na sua economia as suas qualidades únicas, que são tão estimáveis como o nosso desenrascanço.
Os portugueses esgotam-se na efemeridade do improviso, e o produto do seu labor desfaz-se antes dessa, digamos, marca de água deixar o seu cunho nos bens tangíveis por si produzidos. Não deixam lastro. Têm uma qualidade única que se perde no seu próprio exercício. Tocam uma espécie de jazz sem escola...
Nesse sentido subavaliam o impacto deste desporto do desenrascanço que tão bem cultivam.
O desafio tem, pois, de ser outro! Estará na altura de apostar na institucionalização a sério do desenrascanço. Está na hora de criar mais valia e enriquecer o país com esta qualidade. Esqueçam as perfeitas patetices que são o Allgarve ou o Portugal: West Coast da Europa, ou a aposta nas "novas tecnologias" como panaceia para os nossos males.
O que precisamos é saber aplicar correctamente a capacidade de desenrascanço portuguesa, institucionalizá-la e transformá-la numa prática sustentada e erudita. Nem que para isso os portugueses tenham que chamar alguém mais organizado para teorizar sobre o desenrascanço e ajudar a estruturar e planear a exploração dessa qualidade sui generis... Saibamos criar uma economia em volta desta nossa qualidade inata, em vez de impôr a criação de qualidades de que não fomos dotados, para servir conceitos económicos lambidos à pressa entre passagens administrativas, como agora se tenta fazer.
Desenrasquemo-nos! Mas, a sério...
Que diabo, até a Cracked Entertainement, editora de publicações de humor e proprietária do site Cracked.com, sendo uma empresa que se leva a sério, reconhece e valoriza perante os seus leitores esta qualidade e lamenta a falta do conceito na língua inglesa... Isto vale ouro meus amigos!