2010/12/16

O holocausto

"Aumentar a competitividade da economia portuguesa" significa para o governo, para os patrões e para a UGT, sacrificar e tornar ainda mais precária a vida dos trabalhadores. Os gordos vão continuar gordos e sorridentes, o resto do pessoal que ande aos caixotes ou permaneça na rua, despedido, à frente das empresas,  encerradas à má fila e com impunidade, na esperança que tenha sobrado um vago sentimento de justiça na sociedade portuguesa. Poder despedir desta forma era certamente uma "deficiência" da legislação laboral actual que urgia corrigir...
A falta de vergonha é tanta que as medidas são adiantadas por uma criatura chamada António Saraiva que é presidente não sei de que agremiação privada, antes de serem formalmente anunciadas pelo governo. Ninguém o responsabiliza por esta óbvia quebra de protocolo. Tudo parece normal. Triunfante, Saraiva vai continuar a sorrir alvar, gordo e reluzente como um porco.
O que, no entanto, me causa maior angústia é o facto de não perceber o que querem fazer os portugueses perante todo este calvário. As imagens de trabalhadores à porta das empresas encerradas, da miséria crescente, do desespero dos desempregados passam nos ecrãs. Passam sem que se pareça esboçar sequer uma reacção. Cresce o número de gente que procura nos caixotes do lixo a sobrevivência, dizem-nos e vamos nós vendo por aí. Mas, a sociedade portuguesa arfa, coitada, de cansaço.
Um clássico da banda desenhada "Maus" de Art Spigelman conta a história dos judeus durante o holocausto, através de personagens animais. Uma espécie de mega-fábula, à La Fontaine, tingida de sangue e dor. Os judeus são ratos. Relembro uma conversa entre um rato-judeu, sobrevivente do holocausto, e um outro, seu filho, determinado em recuperar as recordações do calvário do pai. Este descreve ao rato-filho o modo como os judeus eram queimados perante a vista de todos. "A gordura que ia correndo dos corpos queimados, eles (os alemães) recuperavam-na e voltavam a deitá-la por cima desses corpos para que queimassem melhor."
"Isto ultrapassa-me", confessa o filho, "porque é que os judeus não tentaram pelo menos esboçar uma resistência". Responde o pai: "Não era tão fácil como possas imaginar. Estavam todos tão esfomeados, tinham tanto medo e estavam tão cansados. Até mesmo o que se desenrolava perante os seus próprios olhos, nem nisso eles acreditavam."

A grande cabala

Trata-se obviamente de uma grande "confusão" entre voos da CIA e voos de repatriamento de prisioneiros, como "explicou" hoje Luís Amado. Ninguém acredita que o governo português tenha dado autorização FORMAL para os voos da CIA através das Lajes. A autorização, a ser dada, só pode ter sido INFORMAL. Esta é a chave para interpretar as declarações "formais" de Luís Amado, que não podem ser refutadas, ainda que os telegramas disponibilizados pela Wikileaks provem que o governo português esteve disponível para autorizar os voos. Fecha-se assim mais um capítulo obscuro da política portuguesa, pródiga em explicações cabalísticas que tudo explicam e nada esclarecem.

2010/12/15

A mãe de todas as fraudes

Inicia-se hoje o julgamento do caso BPN.
Convém lembrar alguns números: para evitar uma crise sistémica na banca portuguesa, o estado injectou (até agora) no BPN, a módica quantia de 4.600 milhões de euros. O banco foi, entretanto, nacionalizado e posto à venda pelo valor de licitação de 180 milhões. Para além desta verba, os eventuais interessados (até agora não apareceu nenhum) terão de investir 200 milhões extra para resolver problemas urgentes de tesouraria. Só em dívidas aos clientes são 400 milhões. Acresce que a CGD já comprou 2.000 milhões da dívida. Sim, leu bem. Trata-se da maior fraude da história da banca em Portugal. Esta é uma das razões da nossa dívida pública, que não pára de aumentar e explica os aumentos de impostos do OE para 2011. Esta dívida, que não foi contraída pelos contribuintes, vai ter de ser paga e alguém terá de o fazer. Imagine quem...

2010/12/14

Wikileaks, como, onde, porquê

Veja como é feito, quem o faz e porquê. Juian Assange explica. Leia a petição para libertar Assange aqui.

Serviço público

O Público iniciou no dia 22 de Novembro a publicação do trabalho em filme de Michel Giacometti. "Povo que Canta" é o título da série de 12 volumes (livros, cd e dvd), contendo os 37 episódios da série emitida entre 1970-1974 pela RTP e dois outros volumes com material extra. Esta edição foi coordenada pelo antropólogo Paulo Lima.
Ninguém que se interesse por música neste país pode prescindir desta série. Este "Povo que Canta" é um trabalho que não vai certamente deixar ninguém indiferente. Já suscita, e suscitará certamente ainda mais no futuro, muitas interrogações sobre uma vasta gama de questões.
Um verdadeiro serviço público este que o jornal Público faz. Veja mais informação sobre o "Povo que Canta" aqui.

2010/12/13

Morente

O Mundo Flamenco está hoje mais pobre. Morreu Enrique Morente, "cantaor" maior da arte "jonda".
Para quem, como nós, teve o privilégio de vê-lo cantar - a última vez há menos de três meses, durante o recente Festival de Flamenco de Lisboa - o desaparecimento do "maestro", representa o fim de um ciclo de ouro, que conheceu nomes como Camarón de la Isla e Antonio Gadges. A arte "jonda", antiga de séculos, sobreviverá a esta perda, da mesma maneira que sobreviveu à morte de nomes que fizeram a história do Flamenco. Outros se seguirão, certamente, mas nenhum como Morente.
Resta-nos os discos. Vinte e dois no total, numa carreira que teve início em 1967 e que se prolongou até 2008, ano da sua última gravação. Para os amantes da "arte", os títulos "Homenaje a D. Antonio Chacon" (guitarra Pepe Habichuela), "Morente - Sabicas " (guitarra Sabicas), "Omega" com Lagartija Nick (dedicado a Lorca e Leonard Cohen) e "El pequeño reloj" (este com a participação da sua filha Estrella Morente), são indispensáveis. A ouvir com atenção. Arte Flamenca em estado puro. Um clássico.

Quem tem medo da Wikileaks?

Era inevitável. Mais cedo ou mais tarde, as revelações da Wikileaks teriam de "chegar" a Portugal. Foi hoje e faz manchete nos principais orgãos de informação. Nada que nos deva surpreender. Todos os países e governantes têm "telhados de vidro" e o sigilo das chancelarias é, na maior parte das vezes, um eufemismo para a hipocrisia diplomática. Curiosos não são os adjectivos usados pelos serviços da embaixada que descrevem Sócrates como "carismático", Cavaco como "vingativo", ou Alegre como "dinossáurio de esquerda". Curiosas, mesmo, são as notícias que revelam a dupla faceta do presidente do BCP (Carlos Santos Ferreira) e do papel do banco português no conflito Irão-EUA, ou (mas isso já suspeitávamos) as dúbias afirmações de José Sócrates, a propósito da passagem de prisioneiros da CIA pela base das Lajes.
Não faltarão as habituais reacções - de apoio e condenação - às últimas revelações da agência de Julian Assange. Desta vez não são os EUA os visados, ainda que, indirectamente, a política americana esteja, mais uma vez, implicada.
Trata-se de algo mais grave: a ingerência de um banco português na política de um país estrangeiro; e as mentiras do primeiro-ministro no famigerado caso de voos para Guantánamo.
São estas notícias verdadeiras? Tudo indica que sim. Trata-se de textos, extraídos de e-mails, enviados da embaixada americana em Lisboa. Porque haveria de ser mentira?
São estas revelações de interesse público? Certamente que sim.
Devem ser tais textos publicados? Se os textos são verdadeiros e foram validados por jornais de referência (neste caso, o "El Pais") é porque são de interesse jornalístico.
A liberdade de informação é um direito adquirido das democracias avançadas e constitui um pilar essencial - quiçá o mais importante - da liberdade de opinião. Pesem algumas críticas que possam ser feitas aos conteúdos e ao "timing" das revelações, entretanto vindas a lume, é sempre preferível saber de mais do que saber de menos. Aos cidadãos, em geral, de extrair as suas conclusões e agirem em consequência. Contra a difamação e os infractores existem sempre os tribunais. Estas devem ser as regras do jogo.
É preferível uma sociedade onde possam existir "wikileaks" do que uma sociedade que os proíba. Esta é a minha convicção mais profunda e bater-me-ei por ela. E você?