2011/02/12

Autofilatelia pesada...

Para desanuviar temporariamente dos grandes temas da actualidade, aqui está uma notícia insólita e perturbante. Segundo o Sol, "Os CTT apresentaram uma queixa-crime no Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa contra a Mercedes-Benz Portugal, por alegada falsificação de selos." A notícia está aqui.
Resta esperar que não tenha sido a única solução encontrada para contrariar a esperada quebra de vendas do sector, esta da empresa agora se virar para a filatelia.
Que levem a carta a Garcia e que não se trate então de uma aposta restante...

2011/02/11

Os heróis da praça da libertação

Há festa no Cairo e não é razão para menos.
Dezoito dias após as primeiras manifestações que encheram a praça de Tahrir, os egípcios viram hoje a sua principal reivindicação satisfeita: a saída de Mubarak. Era uma exigência antiga, mas a ditadura militar, longa de trinta anos, resistia a todos os protestos. Com o apoio dos Estados Unidos e agitando o papão do fundamentalismo islâmico, Mubarak soube construir a imagem que convinha ao Ocidente. Afinal, ele podia orgulhar-se de ter assinado o mais durável acordo de Paz com Israel e, simultaneamente, manter a "irmandade muçulmana" fora do poder. Dito de outro modo, "era um sacana, mas era o nosso sacana".
As coisas começaram a mudar com a revolta na vizinha Tunísia. Se os tunisinos conseguiram, os egípcios haviam de conseguir também. Dezoito longos dias e 300 mortes mais tarde, durante os quais o Mundo pode seguir em directo o heróico braço de ferro entre os ocupantes da praça da libertação e o governo, o povo venceu. Mubarak demitiu-se hoje ao fim da tarde.
Ainda é cedo para extrair conclusões de um processo que vai, agora, iniciar-se. O exército, principal sustentáculo da ditadura, continua intacto e o substituto do presidente deposto é, ele mesmo, um militar. Ou seja, o período de transição necessário às mudanças de regime, terá sempre a supervisão militar. Nada garante que este se mantenha neutral, pois não quererá perder as regalias que os 1,3 mil milhões de dólares anuais dos Estados Unidos lhe garantem. Esta é, no momento, a grande incógnita: até onde poderão ir as reformas?
Uma coisa parece certa. Nada será como dantes. No Egipto e nas ditaduras mais ou menos musculadas da região. Repúblicas ou monarquias, todos terão de mudar e é bom que o façam depressa, para não terem de sair à força. Esta é a grande lição destas semanas alucinantes.
Para já, o tempo é de festa e só por isso devemos regozijar-nos.

11 de Fevereiro de 2011



Do corpo dos nossos mortos
E da sua alma
Irradiou uma voz
Que subiu ao céu,
Uma espiral
Cujo eco
Tornará a descer
Poderoso.
Uma hoste de cólera.


Marthiya de Abdel Hamid
Segundo Alberto Pimenta




Confissão tardia

Confesso que nunca me confessei. Também é verdade que não tenho um iPhone. Estou tramado.

Parágrafo extemporâneo - Do ego à idolatria

Parece que passar a própria fronteira do eu é qualquer coisa que a pele limita como exterior do corpo, a sua alfândega simbólica e real, isto é, o corpo, a pele e os sentidos são as nossas antenas ao fora de nós e simultaneamente a porta de entrada para o exercício de todas as sensibilidades e subjectividades, quando o sensorial toca as cordas do sensível e o faz ficcionar ou mesmo quando fica ali na beira, à espera de se expressar ou perceber, já que os sentidos não são propriamente um sensor de descodificações absolutamente científico, se é que isso existe, esse absoluto científico, e não é mais uma ficção sempre em busca de uma confirmação que não vem e esse nunca vir é a nossa própria existência. Mais que animal político somos animal de ficções e essa é a descoberta do capitalismo cultural, a matéria dos sonhos, o desejo e as suas vias, como mercadoria. Teremos dificuldade em sair da própria pele e o outro, essa abertura ao outro, é temporária, como se a identidade, sob a forma de uma solidão fatal nos cerceasse a própria vontade do outro em nós, essa troca sem troca, essa identidade dual. E quando projectamos esse egocentrismo num ídolo, ou em qualquer fetiche, o que fazemos é regressar a nós, ou melhor perdermo-nos numa deriva do desejo que é marcada por algo que significa deixar de ser, temporariamente, para voltar ao reduto do eu, seguro porto de abrigo. Já o amor é outra praia. Como se de facto nos tocasse com uma varinha de condão de outro tipo que não a fábula que infantiliza e de repente fosse algo como sentir que a água ligeira da maré que nos toca os pés, macia e fresca ali ao verão mas sem excessos de temperatura, nos integrasse numa outra realidade e essa é o cosmos. Aí a abertura ao outro é realizada no exterior do mundo que o mercado dita, pois na realidade só acontece quando não é ditada pelas condicionantes da mercadificação total.

2011/02/10

Mubarak: pouco e tarde

Parece claro que o discurso de Mubarak ficou claramente aquém das expectativas (para quem tinha expectativas...). A revolta no Egipto ficou mais distante de uma solução e o futuro imediato parece apontar para um levantamento ainda mais violento. Os egípcios querem Mubarak simplesmente fora de cena.
Também os parceiros políticos do Egipto, pode-se imaginar, não terão ficado certamente tranquilizados com as palavras de Mubarak.
Não deixa de ser curioso verificar que o ainda presidente privilegiou claramente no seu discurso a juventude, dirigindo-se-lhe em primeiro lugar, se bem que de forma paternalista, e fazendo-lhe o rapapé com a promessa de castigar os autores das mortes que esta revolução já gerou. A juventude egípcia já mostrou que não se deixa impressionar com manobras dilatórias, discursos de transferência pacífica de poder, de diálogo construtivo, e muito menos com o papão do telecomando a partir do estrangeiro do curso dos acontecimentos. O Twitter, o Facebook e os SMS, são um simples visto para os jovens egípcios passarem a fronteira electrónica, não para entrar no Egipto.
No momento exacto em que Mubarak fazia o seu discurso, víamos nos diferentes canais de televisão esses jovens a mostrar-lhe os sapatos e líamos nos newsfeeds das agências noticiosas e dos jornais que a multidão lhe gritava para que se fosse embora.
Víamos isto na hora, embora a milhares de quilómetros de distância. Será que ele não viu?

O estado social que temos

A descoberta de um cadáver, velho de nove anos, num andar de um condomínio dos subúrbios de Lisboa, é grave por diversas razões. Desde logo as responsabilidades da família directa que, apesar dos sinais existentes, não exigiu às autoridades uma acção consentânea com o desaparecimento da familiar; depois, o laxismo das autoridades, no caso a GNR, que preferiu ignorar os avisos de uma vizinha e de um familiar, recusando dar seguimento aos seus pedidos para forçar a porta da habitação; por fim, os serviços da segurança social e finanças que, durante anos a fio, nunca se questionaram sobre o não levantamento da pensão de reforma e o pagamento de impostos pela falecida. Que a vizinhança, de uma forma geral, nunca se tenha questionado sobre o repentino desaparecimento de uma idosa que vivia só, é apenas mais um dado a acrescentar ao individualismo e à solidão existentes nesta sociedade.
Temos pois, aqui, dois problemas de há muito conhecidos: a falta de solidariedade e crescente isolamento na sociedade portuguesa; e as insuficiências de um estado pretensamente "social" que falha em toda a linha em questões tão prementes como o apoio a idosos, certamente o grupo mais frágil de uma sociedade doente.
Finalmente, a descoberta deste insólito e macabro caso, que só foi possível graças à acção de penhora e a venda em leilão da habitação em questão. Ou seja, foi preciso haver uma dívida ao fisco, para as autoridades descobrirem o que o "simplex" não conseguiu em nove anos de descuido social. Quando os cidadãos deixam de contar como pessoas e passam a simples números fiscais, é isto que pode acontecer. Resta-nos a consolação de que, mais tarde ou cedo, o fisco acabará por dar sempre connosco. Na pior das hipóteses, nove anos depois de mortos.

Nuno Teotónio Pereira: a minha homenagem

Falo da homenagem de sábado passado, em que participei, a Nuno Teotónio Pereira.
Sabendo que a grandeza desse homem está muito para lá das homenagens que lhe possam fazer, também vou tentar a minha. Vai por escrito, contando histórias, porque de viva voz não conseguiria.
Quando, na referida sessão, lhe tocou falar, a primeira coisa que o Nuno fez foi tornar a homenagem extensiva «a todos aqueles que conhecemos e lutaram naqueles anos difíceis»; assim acompanhado, a homenagem parecia tolerável a esse homem humilde e solidário. Depois informou que, estando a chegar aos 90 anos, tinha órgãos a falhar, um deles «a memória, que se está a desfazer como pó». Falou não como quem se queixa, mas como quem se justifica, quase que a pedir desculpa, por já não poder ir a todas, como antes fazia.
Fazia mesmo!
Ora vejam:
Costumo passar pela FNAC, em cuja sala de leitura leio uma ou outra passagem de livros que não pretendo comprar, mas que quero ler.
Estava eu, um dia do ano de 2007, nessa actividade, quando ouvi pela instalação sonora o anúncio de que ia ocorrer o lançamento do livro Entre as Brumas da Memória, de Joana Lopes. Tinha visto uma referência sobre o mesmo no Expresso: tratava-se de reportar a acção do sector católico progressista, com que também tive ligação, e resolvi ir ao lançamento, no andar de cima.
Encontrei uma série de amigos e conhecidos que não via há anos, pois, embora alguns de nós tenhamos coincidido em actividades cívicas subsequentes, essa minha fase católica acabou aos vinte e poucos anos.
Ao lado da autora, na mesa, estava Nuno Teotónio Pereira. José Manuel Galvão Teles, também na mesa, referiu que, consultando os documentos do livro, havia muitas pessoas que participaram em várias das acções de católicos progressistas constantes do livro (abaixo-assinados, manifestos, fundação de cooperativas, edição de revistas, etc.), mas só havia uma que participara, em posição de destaque, em TODAS. Adivinhem quem; evidentemente Nuno Teotónio Pereira.
Esta revelação motivou uma grande ovação por parte dos assistentes.
Nuno, que ouve mal, não deve ter percebido bem a referência, pois viu-se que se debruçou sobre Joana Lopes (a autora), certamente informando-se sobre o que tinha sido dito.
Quando foi a sua vez de falar, começou por se regozijar por falar depois de Galvão Teles, pois podia corrigir algumas afirmações entretanto feitas. E disse que a sua pessoa não devia ser destacada, pois todas as iniciativas e acções dos católicos progressistas tinham sido colectivas; é certo que ele participara nelas, mas a iniciativa não fora nunca dele, mas de um grupo de activistas. (Não é preciso comentar!)
O resto da intervenção revelou a extraordinária lucidez que mantém; deu, por exemplo, nota de que faltava ao livro a campanha de Delgado de 58, porque acha que, por exemplo, as cartas de D. António, Bispo do Porto, derivam daí.
Disse depois que o angustiara pensar que as primeiras atitudes dos católicos de oposição ao conluio da Igreja com o Estado ditatorial só se tinham registado aos trinta anos de existência da ditadura. E que as primeiras posições colectivas de oposição à guerra colonial por parte de católicos só tinham vindo a público onze anos depois do início desta (em 1972). A sua tese é de que os católicos acordaram muito tarde, devido à força que sobre as suas mentes tinha a hierarquia da Igreja. Que lhes foi difícil libertar-se desta e tomar posições ditadas pelas suas próprias consciências. Aproveitou para, no momento mais comovente do fim de tarde, sacudir a água (os elogios que lhe haviam feito) do capote, dizendo que, talvez por ser mais independente da hierarquia da Igreja, importante tinha sido a figura de Natália (sua mulher, ao tempo, entretanto precocemente falecida), e não ele, no incentivo e dinamização das iniciativas.
Assim, Nuno homenageava a sua querida e saudosa mulher e, ao mesmo tempo, humildemente reduzia a importância da sua própria participação.
Em todo o discurso, Nuno situou-se, não no passado, a que os factos do livro nos remetem, mas na necessidade da aprendizagem, a partir daí, para a acção quotidiana. Para ilustrar esta postura, relembrou que o convidaram para discursar no primeiro 1.º de Maio livre, em representação dos «católicos progressistas». E o que ele disse foi que, nesse mesmo dia, acabara esse «rótulo». Deixava de haver católicos progressistas, pois estes passariam a exercer a sua acção integrados em organizações e partidos, no novo Portugal democrático. O passado já era… agora, profeticamente, ele soube ver onde era preciso mergulhar as mãos para continuar a actuar civicamente e inscreveu-se no MES (onde nos reencontrámos).
Agora que já não pode, ele mesmo, estar na liderança das iniciativas, Nuno preocupa-se com o que continua a precisar de ser feito e apela «a todos, para que, em conjunto ou individualmente, façam o que for necessário, mesmo com risco, para acabar com situações de clamorosa desumanidade que existem no nosso país, muitas vezes mesmo ao nosso lado».
A propósito desta preocupação do Nuno, de sempre estar a pensar no que há a fazer, de preferência a repisar no que está feito, conto agora o que se passou na comemoração dos 60 anos da Luísa Allen, no Banzão. Eu, por essa altura, fazia os possíveis por puxar pelo Vítor Wengorovius, para que ele conseguisse a oportunidade de uma segunda vida, pelo que me encarregara de tratar dele durante as saídas do Alcoitão. Ficámos, pois, na mesma mesa do Nuno. Durante o repasto, contei a história da passagem dos clandestinos, a salto.
O Nuno tinha uma casa em Marvão, no cume daquela inusitada montanha que se ergue na peneplanície alentejana, bem perto da raia. Beneficiando dessa situação privilegiada para a função, uma das actividades a que se dedicava – esta muito arriscada, nesses tempos de ditadura e de guerra colonial – era a de «passador» clandestino. A estratégia, por ele delineada, era a seguinte: um grupo numeroso, mulheres e crianças incluídas, em atitude de alegre passeio pelos campos, enquadrava os fugitivos à tropa, e ia deixá-los do outro lado. Dos cerca de vinte que fomos, regressámos, na circunstância desse dia, dezoito. Quem visse a trupe à ida e à vinda certamente que não iria contar as cabeças e a ausência dos que «saltavam» passaria despercebida. Se a guarda nos atalhasse o passo, o discurso era deixado ao Nuno, o mais velho e responsável, e que o tinha bem preparado. Aconteceu realmente que um GNR nos abordou, mas, felizmente, só à vinda. «Fomos à aldeia espanhola mais próxima comprar caramelos, senhor guarda. Os miúdos gostam imenso!» (Para o confirmar, os miúdos agitavam os seus pacotes de caramelos, efectivamente acabados de comprar na tal aldeia.) O guarda arvorou o seu melhor ar de autoridade, para dizer: «Sabem bem que isso é proibido. Vá lá, desta vez, mas não voltem a fazer.»
Chegados a Marvão, alguns de nós metemo-nos no 4L do Nuno, para ir, pela fronteira, buscar os foragidos, entretanto aboletados numa gruta, no meio do mato, quedos e silenciosos, trementes de medo e de frio. Eram uns bons 40 km que se tinham de fazer, por estrada, até chegar ao local. O Nuno, que conduzia, procurava abreviar o tempo de espera dos rapazes. Às tantas avistámos um polícia, de moto, atrás de nós. Torci os dedos para que não nos incomodasse. Não deu resultado: passou-nos e fez sinal para pararmos. Preparámo-nos para o embate, tentando acalmar-nos uns aos outros. Logo que desmonta, o polícia dirige-se a nós e diz qualquer frase em que avulta o nome denuncia, que os espanhóis dizem acentuando o i. O impacto foi tremendo no meu jovem coração; «estamos tramados», pensei. Contudo, o Nuno parecia manter a sua característica calma olímpica, só Deus sabendo como estaria por dentro. E a coisa logo se resolveu. Como? Denuncía quer dizer multa, em espanhol, e o chui logo se justificou dizendo que vira o nosso carro pisar um traço contínuo. Paga a multa, pensámos: «Ufa, foi por pouco!»
A história provocou risos e um ou outro comentário.
Logo o Nuno atalhou: «Sim, a história tem graça. Mas é passado, e eu estou mais interessado no futuro.» Acabado de se inscrever no PS, queria saber a opinião das cabeças que se sentavam àquela mesa sobre que acção útil seria possível desenvolver, tirando partido da inscrição partidária. O Nuno tinha então 80 anos, era o mais velho da mesa, mas era o que mais se preocupava com o futuro.
Nuno Teotónio Pereira é a pessoa que mais admiro e, para mim, uma referência muito mais importante do que ele próprio pode suspeitar.
Quando se deu o 25 de Abril, eu estava a fazer a tropa no Regimento de Transmissões de Lisboa, em Sapadores, e fui chamado, manhã muito cedo, de emergência, para o quartel, onde fiquei de prevenção. Não tendo tido prévio conhecimento do golpe, fechado no quartel, sem informações do exterior, aconteceu comigo o mesmo que se passou com os emigrados políticos: num primeiro momento, não estava seguro da natureza do golpe – seria democrático, ou uma coisa dos ultras do regime?
Só no dia 26, quando, na messe dos oficiais do quartel, vi pela televisão a reportagem da saída, de Caxias, do Nuno Teotónio Pereira e dos outros prisioneiros políticos, tive a certeza do que se passava e, ainda condicionado pelo medo instilado pelo regime anterior, tentei, encostado à parede da messe, evitar as lágrimas de felicidade, para não manifestar em frente da oficialidade as minhas inclinações antifascistas.
Os dias que se seguiram acabaram com tal tipo de inibição, e eu encetei movimentações de militares dentro do quartel, tentando consciencializá-los, numa perspectiva progressista. Passados uns tempos, vim a encontrar, numa reunião interpartidária em que representava o MES, um rapaz que trabalhara comigo na contabilidade do quartel, representando uma outra organização de esquerda. «Você aqui? Veja lá que, embora considerando-o um gajo porreiro, nunca suspeitei que sob a sua farda de cabo miliciano pulsasse um coração ardente em ímpetos progressistas.» Ao que ele retorquiu que nunca se interessara por política, até ao dia em que, nos tempos de brasa próximos do 25 de Abril em que tudo era possível, promovi uma reunião na messe dos soldados, na qual lhes falei dos seus direitos e deveres cívicos e dos perigos do regresso da velha ordem, contra os quais nos tínhamos de precaver. Só o acaso do encontro com esse meu ex-subordinado na tropa me deu consciência da importância de pequenas acções, como a da tal reunião em que se ganhara mais um adepto para a luta pela liberdade.
É uma das coisas que gostaria de dizer ao Nuno: eu sou um dos «cabos milicianos» das tropas dele. Ele é um dos principais inspiradores da minha dedicação a causas cívicas, individuais ou colectivas, no sentido de contribuir para melhorar as pessoas e as condições de vida.
É uma daquelas personagens de quem se pode dizer «quero ser como ele quando for grande».
Mas não é só isso: é também uma pessoa que me é muito querida. À sua maneira, quase com pudor de o demonstrar, o Nuno é uma pessoa muito afectiva. Por mais que fizesse por isso, nunca me poderia esquecer da cena que se passou vai para 40 anos, tantos quantos os que a minha filha mais velha comemorará este ano (sim, estou velho, também eu).
Deu-se, nesses idos, a coincidência de as nossas respectivas mulheres ficarem grávidas na mesma altura, estando os nascimentos previstos para datas muito próximas. Mas a gravidez da Natália complicou-se e ela morreu antes de dar à luz. Entre a Natália (querida, saudosa Natália) e o Nuno havia uma harmonia perfeita; eram quase uma só pessoa. A sua partida foi uma enorme tristeza para todos nós; para o Nuno, como que a amputação de uma parte do coração.
Tinha a minha filha mais velha muito poucos dias de vida, quando recebemos a visita do Nuno. Na nossa modesta e pouco recheada casa de jovens recém-casados, na Cruz-Quebrada, a porta de entrada dava directamente para a sala. Com o ar sereno de sempre, aquele característico movimento um pouco desajeitado sobre as pernas arqueadas, o Nuno mantinha as mãos atrás das costas enquanto espreitava, com um olhar duma ternura quase envergonhada por se dar a ver, a recém-nascida no berço. As mãos saíram-lhe de trás das costas, para exibirem o presente que seguravam: um casaquinho de bebé. «Foi a Natália que o tricotou, com muito carinho, para a vossa filha.»
O amarelo do casaquinho (a ecografia era uma ferramenta recente, e antes do nascimento não sabíamos o sexo do bebé) encheu a sala de luz, e Nuno pareceu-me um Rei Mago, que teve de arrostar-se com a morte de quem lhe era mais querido, para fazer a sua oferenda.
Eu não queria, mas fraquejo sempre nestes momentos e não consegui evitar que as lágrimas me corressem pela cara.

2011/02/08

CNPD chumba transferência de dados pessoais

As instituições por vezes funcionam. O caso do acordo de cedência de dados pessoais dos cidadãos portugueses aos EUA motivou agora um parecer demolidor da Comissão Nacional de Protecção de Dados. O que mais surpreende é esta pressa, sublinhada pelo relatório da CNPD, do governo português em intervir numa área que está a ser objecto de tratamento global pela UE.
Não nos deve descansar o facto da UE estar a "tratar" do assunto, claro. Lembramo-nos, a propósito, do que aconteceu com as transferências de dados bancários da Europa para os E.U.A. [1][2]. Mas, para já,  temos o "direito à indignação" a dar frutos. Convém é continuar a exercê-lo...