2011/11/30

Contradições do sistema

Seis bancos centrais (o Banco Central Europeu, a Reserva Federal dos EUA, o Banco de Inglaterra, o Banco Nacional Suíço e o Banco do Japão) levaram hoje a cabo uma acção concertada, de proporções significativas, para fornecer liquidez à banca. Os "mercados", claro, exultaram e as bolsas pularam.
A justificação dada para esta operação, segundo relata o Público, é a de que era necessário "aliviar os constrangimentos dos mercados e 'mitigar' os seus efeitos no fornecimento de crédito às famílias e empresas, e assim ajudar a animar a actividade económica.”
Vamos lá a saber então: a dívida é boa, afinal? E viver acima das suas possibilidades anima a actividade económica, é? Austeridade, sim ou não? Em que ficamos?

Estranhos silêncios

É paradigmático que o grande problema da vida nacional, a corrupção, tenha estado totalmente ausente do debate sobre o OE2012. Nem uma medida do governo, nem uma proposta da oposição. Nada! Trata-se, pois, de um tema tabu.
Se olharmos para os números da corrupção em Portugal, se nos recordarmos que há quem diga que a corrupção é a origem da presente crise, não podemos senão concluir que se trata de um problema central  e que, nesse caso, o silêncio é estranho.
Enquanto o tema da corrupção não for discutido e o problema não for objecto de resoluções sérias é certo que este país nunca irá passar desta mediocridade permanente que a todos corrói.
Queria somente lembrá-lo aqui...

2011/11/28

A quem serve o medo?

Querem ver como se constrói um clima de irresponsabilidade para minimizar os efeitos da incompetência do governo e do mais que certo fracasso da sua política?
O método baseia-se na criação do fantasma da sublevação popular e mete "terroristas", serviços de informação, polícias e agentes infiltrados. Faz lembrar a célebre "revolta dos pregos" que Angelo Correia, o mentor e tutor político do primeiro ministro, inventou há anos. Haverá, pois, aqui hoje também, dedo de Angelo pela certa.
Para além de Angelo, a manobra tem também contado com o contributo de gente tão insuspeita como Mário Soares, vários membros da hierarquia da Igreja Católica e outras figurinhas, jornalistas, analistas, politólogos e outros "peritos" mais ou menos patéticos. Todos vêem sangue no horizonte. Junta-se-lhes o Ministro da Defesa que vem a jogo pronunciar-se sobre a "ilegitimidade" de manifestações legítimas, só porque estaríamos perante a "legitimidade" de um "programa" que, segundo ele, foi sufragado pelo voto. Para ajudar à festa até Carvalho da Silva, de quem não se esperaria tamanha ingenuidade, vem lançar alertas que devem ter soado como música aos ouvidos do governo. No dia da greve, demarcava-se correctamente, por um lado, dos ainda não totalmente explicados incidentes em S. Bento, afiançando, contudo, que eles constituíam sinais da insatisfação que por aí vai. Uma conversa, no mínimo, politicamente canhestra. Duvido que os provocadores colocados pela polícia no meio da manifestação de dia 24 estivessem a pensar na insatisfação do povo que lhes paga o salário.
Até Fernando Santos, o engenheiro do penta e especialista na difícil arte do biqueiro, logo que lhe colocaram um microfone à frente apressou-se a dizer, lá de longe e do alto da sua respeitável e reconhecida expertise em teoria política, que Portugal não tem a tradição "anarquista" da Grécia, mas os desacatos do dia da greve constituem sinais "preocupantes" de agitação.
É isto: primeiro, lança-se a ideia (de forma deliberada ou ingénua) de que há sinais preocupantes no ar. Depois, quando ocorre uma legítima, significativa e pacífica greve geral, unindo uma grande massa de espoliados do regime, a polícia intervém de forma totalmente despropositada, provocatória e, sobretudo, ilegítima, levando as pessoas a reagir, naturalmente, perante os atropelos grosseiros da lei, cometidos por aqueles que, num regime democrático, devem ser os primeiros a respeitá-la escrupulosamente. De seguida, meia dúzia de pessoas que não se sabe oficialmente quem foram, de onde vêm, o que representam e por quem foram instigados, exibem durante a manifestação que se seguiu à jornada grevista comportamentos marginais, que de forma alguma representam o espírito dos manifestantes, nem a mensagem que pretendem transmitir de protesto contra as medidas que o governo teima em levar a cabo. Finalmente, com a inestimável colaboração da imprensa, ficamos a saber que desta empolgante "primavera à portuguesa" estão recenseados, por um serviço qualquer de informações, uns, certamente, perigosíssimos 60-anarquistas-60. Aí está a revolta popular! Como é diferente o Tahir em Portugal.
Está criado um clima tendente a desmobilizar o protesto legítimo, pelo direito ao qual surgiu o 25 de Abril. De repente, num passe de mágica, a liberdade de opinião transforma-se em delito de opinião. O medo de existir, esse mal português que não despega nem à lei da bala, reinstala-se. A injustiça, a iniquidade, a corrupção e outros traços distintivos da nossa actuação colectiva ganharão tolerância de pronto! Tudo está perdoado, no fundo somos todos uns gajos porreiros.
Mais ainda: toda a leviandade, desonestidade, incompetência e arrogância exibidas pelo governo, todos os seus falhanços, inconsistências, equívocos, toda a sua "moral" de esgoto será perdoada e conquistará intenções de voto. Sacrifícios, quais sacrifícios?
Paulo Baldaia avisava ontem no DN a maioria de idosos deste país que ainda lê jornais: "Desenganem-se os que excluem a hipótese de termos violência na rua, porque isso está em exclusivo na mão dos indignados, entre os quais há muita gente que não tem nada a perder. Os mais radicais já começaram a alimentar essa ideia, vandalizando repartições públicas, colocando na Net um vídeo com alegada violência policial, procurando um efeito viral idêntico ao que se passou noutras partes do mundo. Nessa geração há muito quem não se importe de ter no currículo uma cena de pancadaria com a polícia. Há muito quem acredite que as coisas não mudam pacificamente." Não sei onde Baldaia recolhe a sua informação, não sei onde estava em 62 e em 69, não sei onde estava no 25 de Abril, não sei se alguma vez assistiu a alguma revolução ou a violência a sério, não sei quantos indignados entrevistou, mas o fantasma da agitação nas ruas só serve hoje, objectivamente, para quatro coisas: instituir um clima de medo, manipular a opinião pública, iludir responsabilidades e preparar o perdão à incompetência governativa.

2011/11/27

Fado, Património Cultural Imaterial

É oficial: o Fado foi hoje reconhecido Património Cultural Imaterial pela UNESCO.
O reconhecimento de um género musical que só os portugueses fazem bem - e por isso é parte da identidade nacional - é um justo prémio para a equipa que, durante anos, trabalhou nesta candidatura, não esquecendo os seus principais divulgadores (cantores, instrumentistas, letristas e editores), sem os quais a transmissão da tradição não seria possível. É esta tradição, com cerca de 200 anos, que hoje foi reconhecida na Indonésia. Não que o Fado necessitasse do reconhecimento da UNESCO para ser Património Cultural Imaterial. Já o era e continuará a sê-lo por muitos e bons anos. Mas, o reconhecimento dará mais visibilidade a uma arte, durante muito tempo considerada menor, que hoje tem milhões de adeptos em todo o Mundo. O trabalho de recolha, classificação e divulgação do Fado, iniciado há cinco anos atrás, continuará: agora com mais responsabilidade, mas também com mais certezas. É isto que se espera deste reconhecimento.

O corte e cola orçamental

O Ministro das Finanças comporta-se como um seráfico coveiro da democracia. Para ele a democracia é um álibi da esquerda para bloquear o combate ao défice e o orçamento o teste de uma demonstração de perícia numérica perante o juízo certamente neutro e científico da troika. O objectivo, depois de posta a democracia na gaveta – esta não será apenas a mítica liberdade e outros tê-lo-ão feito com o socialismo – é certamente a harmonia decrescente dos números percentuais da dívida, mas fundamentalmente a sua performance como académico, a confirmação por A mais B de que cortar cegamente faz crescer, uma quadratura numérica do círculo para centro-europeu e polícia financeira global aplaudirem. A margem de erro, para a maravilhosa alquimia de números, sempre mínima, pensará feliz o perito coveiro, zero ponto um ou dois – o orçamento da cultura chegará aos zero vírgula três? E a sua expressão em percentagem do PIB ao zero quê? À soma de zeros enfiados, perfeição matemática, com um vago um no fim da fila?
Conclui-se deste tipo de mentalidade que o orçamento e as suas aritméticas sectoriais são, pela via de manipulações curandeiras, a solução para o nosso problema – mais valia ler nas entranhas das aves, as linhas da vida de uma mão sem emprego ou ir à macumba. Portanto vai de cortar até que as contas dêem certo, se ainda não dão é necessário cortar mais. Se ainda não se chegou lá baixemos mais as calças pois a nota da troika, o exame trimestral, sobe em direcção à possibilidade de exportarmos a solução para a crise por termos atingido a forma paradigmática de a resolver: corte após corte até ao corte perfeito, descoberta e inovação financeira de excelência que praticamos na pátria global dos mercados especulativos. Eis como a solução pode também fazer crescer: vender a arte de talhante financeiro aos parceiros europeus em aflição por contágio, já os do centro da Europa, pois chegou à Bélgica. Exportemos o corte como suprema técnica orçamental, vendamos inteligência quantitativa.
É de facto uma panaceia, esta dos números e o princípio da subtracção a operá-los. Se não acreditarem, dirá o coveiro, ide a outro bruxo da mesma escola. É como em tudo na vida, poupar, cortar, diminuir, amputar, extinguir, reduzir, só traz saúde e faz crescer, principalmente com tudo bem embrulhado numa retórica da racionalidade dos números envolta no vocabulário religioso da austeridade, a palavra sacrifício repetida à exaustão como quem lava as mãos da tragédia que cria – os números são geneticamente ciência e academicamente demonstrações da inevitabilidade da sua intocável abstracção quantitativa. Quando se atira uma percentagem à cara da vida, espetando a faca do corte numa parte do corpo da democracia com a tal neutralidade da visão académica, só se pode espalhar o bem. Primeiro o sacrifício, a morte, depois o maná.
O Ministro das Finanças olha para uma peça de teatro, para um livro, para um libreto de ópera, para uma partitura, para um corpo que fala num palco – aqui não olha porventura, nem lá irá, nunca foi visto - para uma orquestra regional, para uma companhia de teatro, para um documentário, para uma ficção cinematográfica, e vê percentagens, cortes por fazer. Se assim não fosse e justamente em nome da crise, não descobria cortes a fazer onde o investimento é quase nenhum e a expressão numérica no orçamento ridícula. Pegando por exemplo num Beckett, um autor europeu bilingue razoavelmente feito entre nós – não poderão apelidá-lo de propagandista de nada, nem do absurdo e o Paulo Eduardo de Carvalho queria editar as suas obras completas em português, projecto já avançado e europeizado quando faleceu - numa sua peça proposta para ser editada e o Ministro logo contará as páginas que tem a mais e o seu número insuportável de caracteres. Corta-se, dirá logo, este livro, este projecto é realizável aplicando-lhe o princípio do corte, e reparem, não é cego, é o que é, necessário para a perfeição da percentagem final dos números que lhe pertencem a favor da sua colaboração no esforço da dívida - sim, estas páginas são demais nesta conjuntura, cortem-se trinta e oito, assuma-se o imperativo numérico e orçamental. Sim, a troika é um papão bom, um tribunal do Santo Ofício cujo credo está no dogma da Santa Trindade Orçamental, corte-se em nome do pai da dívida, do filho da dívida e do santo espírito desta. E nós, os melhores alunos, quais irlandeses ou gregos, respeitamos e baixamos as calças.Estranho mundo o dos números e estranho mundo os das cabeças que olhando para um orçamento não vêem vida potencial, actividade cultural, criação artística, economia a fervilhar, país e pátria, língua portuguesa, unidade territorial, ordenamento, macrocefalia de novo crescente, interior abandonado, urbanismo acéfalo a necessitar de emenda, inexistência de autonomia alimentar à míngua da força inexistente e politicamente provocada das pescas e da agricultura, vendidas aos prémios e subsídios europeus, esses sim sectores subsidiodependentes. A cultura é a mais das transversais das actividades do real e é um alimento constante do quotidiano dos cidadãos, não tem medida de aferição científica mas tem consequências anímicas, e várias rendibilidades, determinantes da vida e da economia. Não se confunde com o consumo porque é uma actividade que transforma, não é ritual de confirmações e desenvolve o afecto da língua pelo conhecimento da sua diversidade, nada tem a ver com o que são os rituais associados a uma outra expressão da sua existência, a do mercado, a do que é cultura de massas – infelizmente ler Gil Vicente, António José da Silva, Fernando Pessoa, Jorge de Sena, Natália Correia, António Lobo Antunes, por exemplo, não são fenómenos massivos mesmo que sejam muitos os livros vendidos, o problema não é tanto esse, é mais o da leitura e dos modos de ler. Esse é o trabalho da criação e dos profissionais da cultura para além do trabalho dos criadores propriamente ditos. Nem o milhão de espectadores de teatro, números da década que já passou do Instituto Nacional de Estatística – factos numéricos e não cálculo imaginários - é a expressão de um fenómeno massivo, é, isso sim, a multiplicação da existência de inúmeros “teatros de câmara”, de pólos e focos de vida. Se a leitura tem a importância de ser um acto individual, o teatro tem a importância de ser um acto assembleiístico, cidadão, vida democrática emergindo, reemergindo, prática constante da democracia como o parlamento tenta ser, mas voluntariamente frequentado – seria interessante ver o share do canal parlamento. Não se lhe pode fazer o que se faz ao cavalo do inglês, diminuindo-lhe um tanto a ração diariamente para que se habitue, pois acaba por morrer. Esse assassinato lento está em marcha, aqui e agora, como se dizia antes de Abril.
Será assim, pela sua perfeição endógena e articulações internas que o orçamento cumprirá um papel na nossa vida e história, como academicamente professará para si o Ministro na intimidade das suas quantificações proféticas. Na realidade somos o cavalo do inglês, ou melhor somos o cavalo da alemã. Mas mesmo esta, a alemã, acaba de fazer um extraordinário reforço de investimento no sector cultural, um aumento de 5,1% no apoio às artes – artes, berrei – num total de 50 milhões de euros. Pois é, há duas Europas, mesmo três a caminho, sendo que toda ela está num coma de crescimento augurado dir-se-á.