2012/09/13

Do triunfo dos velhos ao fracasso da oposição

Há muitas conclusões a tirar dos acontecimentos dos últimos dias. Deixem-me referir um acontecimento em particular -a entrevista de Manuela Ferreira Leite- e duas ou três conclusões que dela se podem tirar. Haveria muito mais, seguramente, a referir, mas as minhas limitações de acesso à net neste momento obrigam-me a ser económico.
Desde há tempos que se ouve muita gente sugerir que apenas um acontecimento excepcional poderia tirar os portugueses deste estado letárgico em que se encontram, com Coelho, Portas, Gaspar & Troika Lda. a desferir golpe atrás de golpe, sem que se perceba uma reacção, sem um sinal vital a manifestar-se.
Pois bem, o acontecimento excepcional aí está: Manuela Ferreira Leite abriu o livro e Coelho ficou de repente a ver os dias contados.
Não disse nada de novo nem apontou saídas, é certo. Usou argumentos que há anos os mais atentos vêm repetindo sem cessar. Foi a voz do senso comum. Usou argumentos a que as oposições poderiam ter já há muito dado conveniente expressão política. Argumentos que as oposições têm usado, quando as usam, sem um milionésimo da eficiência. Leu tão bem o momento que até quase se situou na cabeça da manif de 15/9.
O certo é que depois do que disse Ferreira Leite, Coelho e o seu gang podem começar a fazer as malas. A porta da rua desencravou-se. É uma questão de tempo.
A intervenção de M. F. Leite mostra ainda outra coisa: a janela de consenso político em Portugal é afinal mais ampla do que se supõe. Haja democratas! Se calhar é mesmo esse o problema...
O que impede esse consenso é matéria de reflexão para todos nós. Temos todos culpas no cartório, mas o preço que estamos a ter de pagar para perceber tudo isto era escusado.
A solução dos problemas que afligem o País não vem nem virá das palavras de M. F. Leite. Mas não deixa de me parecer irónico que tenha sido a criatura que queria enterrar os velhos mais cedo e admitia a suspensão da democracia que talvez tenha tido um inesperado papel na sua salvação.
Passos Coelho, entretanto, se precisares de alguém para te ajudar a fechar a mala, escreve aqui para o Face.

2012/09/10

Uma carta de Eugénio Lisboa ao PM de Portugal

Exmo. Senhor Primeiro Ministro
Hesitei muito em dirigir-lhe estas palavras, que mais não dão do que uma pálida ideia da onda de indignação que varre o país, de norte a sul, e de leste a oeste. Além do mais, não é meu costume nem vocação escrever coisas de cariz político, mais me inclinando para o pelouro cultural. Mas há momentos em que, mesmo que não vamos nós ao encontro da política, vem ela, irresistivelmente, ao nosso encontro. E, então, não há que fugir-lhe.
Para ser inteiramente franco, escrevo-lhe, não tanto por acreditar que vá ter em V. Exa. qualquer efeito – todo o vosso comportamento, neste primeiro ano de governo, traindo, inescrupulosamente, todas as promessas feitas em campanha eleitoral, não convida à esperança numa reviravolta! – mas, antes, para ficar de bem com a minha consciência. Tenho 82 anos e pouco me restará de vida, o que significa que, a mim, já pouco mal poderá infligir V. Exa. e o algum que me inflija será sempre de curta duração. É aquilo a que costumo chamar “as vantagens do túmulo” ou, se preferir, a coragem que dá a proximidade do túmulo. Tanto o que me dê como o que me tire será sempre de curta duração. Não será, pois, de mim que falo, mesmo quando use, na frase, o “odioso eu”, a que aludia Pascal.
Mas tenho, como disse, 82 anos e, portanto, uma alongada e bem vivida experiência da velhice – da minha e da dos meus amigos e familiares. A velhice é um pouco – ou é muito – a experiência de uma contínua e ininterrupta perda de poderes. “Desistir é a derradeira tragédia”, disse um escritor pouco conhecido. Desistir é aquilo que vão fazendo, sem cessar, os que envelhecem. Desistir, palavra horrível. Estamos no verão, no momento em que escrevo isto, e acorrem-me as palavras tremendas de um grande poeta inglês do século XX (Eliot): “Um velho, num mês de secura”... A velhice, encarquilhando-se, no meio da desolação e da secura. É para isto que servem os poetas: para encontrarem, em poucas palavras, a medalha eficaz e definitiva para uma situação, uma visão, uma emoção ou uma ideia.
A velhice, Senhor Primeiro Ministro, é, com as dores que arrasta – as físicas, as emotivas e as morais – um período bem difícil de atravessar. Já alguém a definiu como o departamento dos doentes externos do Purgatório. E uma grande contista da Nova Zelândia, que dava pelo nome de Katherine Mansfield, com a afinada sensibilidade e sabedoria da vida, de que V. Exa. e o seu governo parecem ter défice, observou, num dos contos singulares do seu belíssimo livro intitulado The Garden Party: “O velho Sr. Neave achava-se demasiado velho para a primavera.” Ser velho é também isto: acharmos que a primavera já não é para nós, que não temos direito a ela, que estamos a mais, dentro dela... Já foi nossa, já, de certo modo, nos definiu. Hoje, não. Hoje, sentimos que já não interessamos, que, até, incomodamos. Todo o discurso político de V. Exas., os do governo, todas as vossas decisões apontam na mesma direcção: mandar-nos para o cimo da montanha, embrulhados em metade de uma velha manta, à espera de que o urso lendário (ou o frio) venha tomar conta de nós. Cortam-nos tudo, o conforto, o direito de nos sentirmos, não digo amados (seria muito), mas, de algum modo, utilizáveis: sempre temos umas pitadas de sabedoria caseira a propiciar aos mais estouvados e impulsivos da nova casta que nos assola. Mas não. Pessoas, como eu, estiveram, até depois dos 65 anos, sem gastar um tostão ao Estado, com a sua saúde ou com a falta dela. Sempre, no entanto, descontando uma fatia pesada do seu salário, para uma ADSE, que talvez nos fosse útil, num período de necessidade, que se foi desejando longínquo. Chegado, já sobre o tarde, o momento de alguma necessidade, tudo nos é retirado, sem uma atenção, pequena que fosse, ao contrato anteriormente firmado. É quando mais necessitamos, para lutar contra a doença, contra a dor e contra o isolamento gradativamente crescente, que nos constituímos em alvo favorito do tiroteio fiscal: subsídios (que não passavam de uma forma de disfarçar a incompetência salarial), comparticipações nos custos da saúde, actualizações salariais – tudo pela borda fora. Incluindo, também, esse papel embaraçoso que é a Constituição, particularmente odiada por estes novos fundibulários. O que é preciso é salvar os ricos, os bancos, que andaram a brincar à Dona Branca com o nosso dinheiro e as empresas de tubarões, que enriquecem sem arriscar um cabelo, em simbiose sinistra com um Estado que dá o que não é dele e paga o que diz não ter, para que eles enriqueçam mais, passando a fruir o que também não é deles, porque até é nosso.
Já alguém, aludindo à mesma falta de sensibilidade de que V. Exa. dá provas, em relação à velhice e aos seus poderes decrescentes e mal apoiados, sugeriu, com humor ferino, que se atirassem os velhos e os reformados para asilos desguarnecidos , situados, de preferência, em andares altos de prédios muito altos: de um 14º andar, explicava, a desolação que se comtempla até passa por paisagem. V. Exa. e os do seu governo exibem uma sensibilidade muito, mas mesmo muito, neste gosto. V. Exas. transformam a velhice num crime punível pela medida grande. As políticas radicais de V. Exa, e do seu robôtico Ministro das Finanças - sim, porque a Troika informou que as políticas são vossas e não deles... – têm levado a isto: a uma total anestesia das antenas sociais ou simplesmente humanas, que caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas que a História não confina a míseras notas de pé de página.
Falei da velhice porque é o pelouro que, de momento, tenho mais à mão. Mas o sofrimento devastador, que o fundamentalismo ideológico de V. Exa. está desencadear pelo país fora, afecta muito mais do que a fatia dos velhos e reformados. Jovens sem emprego e sem futuro à vista, homens e mulheres de todas as idades e de todos os caminhos da vida – tudo é queimado no altar ideológico onde arde a chama de um dogma cego à fria realidade dos factos e dos resultados. Dizia Joan Ruddock não acreditar que radicalismo e bom senso fossem incompatíveis. V. Exa. e o seu governo provam que o são: não há forma de conviverem pacificamente. Nisto, estou muito de acordo com a sensatez do antigo ministro conservador inglês, Francis Pym, que teve a ousadia de avisar a Primeira Ministra Margaret Thatcher (uma expoente do extremismo neoliberal), nestes termos: “Extremismo e conservantismo são termos contraditórios”. Pym pagou, é claro, a factura: se a memória me não engana, foi o primeiro membro do primeiro governo de Thatcher a ser despedido, sem apelo nem agravo. A “conservadora” Margaret Thatcher – como o “conservador” Passos Coelho – quis misturar água com azeite, isto é, conservantismo e extremismo. Claro que não dá.
Alguém observava que os americanos ficavam muito admirados quando se sabiam odiados. É possível que, no governo e no partido a que V. Exa. preside, a maior parte dos seus constituintes não se aperceba bem (ou, apercebendo-se, não compreenda), de que lavra, no país, um grande incêndio de ressentimento e ódio. Darei a V. Exa. – e com isto termino – uma pista para um bom entendimento do que se está a passar. Atribuíram-se ao Papa Gregório VII estas palavras: ”Eu amei a justiça e odiei a iniquidade: por isso, morro no exílio.” Uma grande parte da população portuguesa, hoje, sente-se exilada no seu próprio país, pelo delito de pedir mais justiça e mais equidade. Tanto uma como outra se fazem, cada dia, mais invisíveis. Há nisto, é claro, um perigo.
De V. Exa., atentamente,
Eugénio Lisboa

Cinema Bioscoop: um balanço provisório

À excepção de dois ou três cineastas de renome mundial – Ivens, Van der Keuken, Verhoeven – o cinema neerlandês e, por extensão, o cinema flamengo, é relativamente pouco conhecido em Portugal.
Para colmatar esta lacuna, três jovens docentes da língua neerlandesa no nosso pais, decidiram organizar um pequeno festival (Cinema Bioscoop) com filmes holandeses e flamengos dos últimos anos. Durante quatro dias, o Teatro do Bairro foi o centro desta pequena Mostra que, a avaliar por alguns dos filmes exibidos, tem potencial para futuras edições.
Descontadas as “doenças infantis” de uma primeira edição, o festival confirmou alguns nomes e possibilitou a descoberta de outros, que nunca chegaram ao circuito comercial. Entre as obras exibidas, destaque para os filmes belgas “Pauline & Paulettte” (2001) de Lieven Debrauwer e “Rundskop” (2011) de Michael Roskam. O primeiro, centrado na relação de duas irmãs, uma retardada mental e outra dona de uma pequena loja de aldeia, que a vida obriga a viver juntas; enquanto o segundo parte de uma situação existente (a máfia das hormonas na Flandres) para ilustrar o drama de um criador de gado vítima das vendetas locais.
Interessantes foram ainda os filmes “De Tweeling” (2002) de Ben Sombogaart e “Wilde Mossels” (2000) de Erik de Bruyn, o primeiro sobre duas gémeas separadas pela 2ª Guerra Mundial e obrigadas a viver sob regimes inimigos: e o segundo, localizado numa pequena comunidade da Zeelândia, onde um grupo de jovens leva uma existência sem futuro. Da Holanda vieram ainda dois excelentes documentários, respectivamente “Ouwenhoeren” de Gabrielle Provaas (2011) um “docudrama” sobre duas irmãs prostitutas em Amsterdão e “Cinema Invisible” de Kees Hin, uma encenação sobre argumentos que nunca foram filmados. A primeira edição de “Cinema Bioscoop” contou ainda com a participação dos realizadores deBrauwen e Hin, que no último dia do Festival participaram num debate com a assistência.. Estão de parabéns os organizadores desta primeira edição de cinema em língua neerlandesa, que mostraram ser viável, ainda que difícil, a organização de um evento com estas características.
Para ano, espera-se, haverá mais. Lá estaremos.