2012/09/17

Desenrascanços

Os portugueses são os reis do improviso. Uma qualidade muito apreciada nos principais países de acolhimento da emigração portuguesa, onde o aperto das regras faz por vezes passar ao lado da solução simples e óbvia dos problemas. O desenrascanço português surge assim como uma mais valia que por vezes dá jeito e proporciona admiração pela espécie lusa.
McGyver, por exemplo era afinal (sabemo-lo agora) português, mas os produtores da série omitiram durante anos esse facto...
O desenrascanço é, como disse, útil... quando as coisas estão organizadas. Quando essa organização falta, o desenrascanço não é solução para o problema, é um problema para a solução.
Percebe-se que a este governo falta essa organização base, sobre a qual a arte do desenrascanço pode ser praticada com vantagem. Eles bem tentam dar imagem de organização e seriedade, mas há muito que se percebeu que este governo é um enorme bluff.
Ficámos há pouco a saber que a Comissão Europeia condiciona o desbloqueamento da próxima tranche do empréstimo ao cumprimento do acordo, nomeadamente, no que respeita a questão da baixa da TSU.
Ou seja:
1- Mantendo a tradição lusa, o governo desenrasca medidas para combater o défice que se suspeitou desde o início serem inconstitucionais. Se alguma vez as decisões do governo se pareceram com algo fruto de madura reflexão, cuidada preparação e claro domínio dos dossiês, isso foi fruto de uma ilusão habilmente encenada. Ninguém pesca um boi do que está a tratar.
O ministro Gaspar foi disso o exemplo mais eloquente. Com aquela imagem solene e douta que todos lhe reconhecemos, adormecia o pagode, deliberadamente, tentando dar ar que havia mais qualquer coisa por detrás da forma geométrica e do verbo entediante, quando afinal, é agora claro, toda aquela encenação tecnocrática servia para esconder  que o Ministro das Finanças não passa afinal de um desenrascado a agir no quadro do caos total. Como explicar  de outra forma os erros de palmatória que este ministro cometeu? 
2- O TC acabou, sem surpresas, por declarar as medidas principais da política de consolidação orçamental, de facto, inconstitucionais.
3- Perante o novo problema, Passos Coelho e a sua pandilha resolvem desenrascar a baixa da TSU, que, pelos vistos, deixou os parceiros da coligação à rasca.
4- Coelho deverá, sabemo-lo também agora, ter desenrascado argumentos que "convenceram" Portas de que se a medida não fosse para frente, as futuras negociações com a troika ficavam comprometidas.
5- A medida é mesmo aprovada e anunciada, e... Surpresa! o país fica em pé de guerra!
6- Ai, ai, ai, ai, ai! meu Deus! Como é que a gente vai desenrascar isto agora?
7- Mais: ficou-se agora a saber que "esta medida foi proposta pelo Governo," como foi referido há pouco pelo porta voz da Comissão.
8- Ficou-se também a saber que é verdade: se esta proposta do governo português não for para a frente, as negociações com a troika estão mesmo comprometidas.
9- Estranhou-se durante algum tempo que Portas não rangesse, mas sabemos agora que ele não rangia porque sabia, e que sabia que se rangesse ficávamos a perceber que era um tanso e iria ficar colado ao desenrascanço. Ficou, coitado, com a alternativa no bolso, sem nada poder fazer que evitasse deitar tudo a perder, como veio a acontecer...
10- Sem o cumprimento desta medida, que foi proposta pelo governo, a próxima tranche não pinga.  Aquilo foi o que foi acordado, aquilo é o que tem de ser cumprido. Mas, o acordo poderia ter sido outro, pelo que se percebe.
11- O Coelho desenrascou uma solução para desenrascar um problema, que enrascou a coligação, que enrascou a relação do governo com os outros orgãos e parceiros institucionais, que enrascou o governo perante a Comissão, e, pior ainda, que enrascou em defintivo a relação dos governantes com os governados. Not bad for a day's work...
12- Percebe-se agora o "custe o que custar" e percebe-se agora também o "fiquei convencido" do Portas.
Uma monumental bota que o Coelho tem agora que descalçar. Aconselho a elegante descalçadeira da imagem, à venda on line por uma quantia que estará certamente ao alcance da leporídia criatura...


PS- É claro que há em tudo isto, ao mesmo tempo, algo de muito positivo e extremamente saudável. O porta voz da sisuda Comissão disse, enquanto lembrava que o acordo era para cumprir, que a medida anunciada pelo governo "visa aumentar a competitividade das empresas portuguesas, para melhorar a sua capacidade em termos de exportações, mas também de criação de emprego (...) e tem de ser vista - e isto é muito importante na perspectiva da Comissão Europeia - no contexto de um conjunto global de medidas que visam aumentar a competitividade na economia portuguesa."
Quem pensou que a troika era uma coisa séria, organizada, metódica, capaz de pôr ordem no caos da actual governação portuguesa e avaliar com critério imparcial a acção de Passos e dos seus muchachos, quem alguma vez pensou que haveria males que vêm por bem, depois de ler estas palavras, fica com a sensação que os troikos já foram tomados pelo clima e estão rendidos ao grande desígnio nacional, ou então alguém lhes coloca umas coisinhas giras no café matinal.

2012/09/16

Point of no return?

Foi bonita a festa (pá), ouvia-se dizer ontem na praça de Espanha.
Foi, mas não chega.
Da mesma forma que a democracia não se esgota na representatividade parlamentar, também a democracia participativa não se esgota em manifestações, por muita gente e palavras de ordem que estas tenham.
Sim, é preciso correr com estes vendilhões do templo, que não olham a meios para atingir os seus fins, ainda que no fim só venham a restar zombies incapazes de resistir seja ao que for.  Para correr com eles (porque são muitos e usam diversas máscaras) todos os meios legais  são lícitos, pois os últimos 38 anos mostraram que não aprendemos nada. A prova é que continuamos a votar nos partidos que, alternadamente, vão espoliando o pais e empobrecendo a população, enquanto defendem os interesses (nacionais e estrangeiros) daqueles que sempre viveram à custa do estado e da exploração sistemática de quem trabalha e quem desconta para os sustentar.
A manifestação de ontem, como aquela que reuniu centenas de milhares de manifestantes no dia 12 de Março de 2011, foi boa (muito boa), na medida em que as pessoas ousaram descer á rua e dizer “basta!”. Podem não saber o que querem, mas começam a saber o que não querem. É um princípio. Por algum lado temos de começar.
Mas, não devemos ter ilusões. Não é por gritar “que se lixe a troika!” que esta se vai embora. Veja-se a Grécia, onde a população desce às ruas todas as semanas sem que as medidas de austeridade diminuam. Qual é o limite? Das medidas e da resistência. Estas são as questões.
Cavaco Silva já percebeu a mensagem e, impedido como está de se pronunciar devido à imagem negativa que o persegue, mandou Manuela Ferreira Leite avisar o governo. Esta, que nunca escondeu o desprezo pelo jovem Passos, encarregou-se na perfeição da mensagem, Fê-lo tão bem que conseguiu unir toda a gente (da esquerda à direita) contra o jovem turco. E o resultado está à vista: 40 cidades portuguesas vieram à rua manifestar-se contra este governo. É obra!
Segue-se o segundo acto. Perante o descrédito do regime, Cavaco convocou o “Conselho de Estado”. Basta olhar para a sua constituição (ex-presidentes na reforma, comentadores de televisão, economistas da moda e neurocirurgiões da ribalta) para não ter ilusões. Para dar um ar de democracia (e fazer o contraditório) convidou o Gaspar.
A estratégia é clara: é preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma.
Até é possível que perante a derrocada da receita da Troika, o governo tenda a inflectir de estratégia. Talvez até saia o Relvas, ou mesmo o Gaspar...
Mas, será que mudará alguma coisa na forma como os peões internos da Troika vão abordar a crise portuguesa, eles que apenas estão interessados em que paguemos aos credores e em desregular o mercado de trabalho interno para dessa forma nos tornar mais submissos? Não. Não vai mudar nada de essencial. É por isso que a manifestação de ontem não nos deve iludir.
A manifestação foi um acto de cidadania e, nesse sentido, um ponto de não-retorno. Nada será como dantes, a partir de agora. Mas, os representantes do “centrão” continuarão lá e a defender os seus interesses. Ora os seus interesses, não são necessariamente os nossos. E é nesta dialéctica de contradições que nos devemos fixar, com o risco de nos fixarmos demasiado na árvore e perdermos a floresta de vista.