2012/10/06

“Luísa Trindade”

foto Natacha Cardoso/Dinheiro Vivo
Não correram bem as comemorações do 5 de Outubro. Desde logo, por ser a última vez que a data era oficialmente comemorada. Depois, a escolha, envergonhada, de um pátio interior para a celebração do feriado, ao arrepio da tradição de um século que costumava juntar a população lisboeta na praça do município. Ainda antes do pífio discurso de Cavaco (mais um), o caricato episódio da bandeira, símbolo maior do trágico momento que Portugal atravessa. Finalmente, o grito desesperado de uma mulher que ousou quebrar o protocolo e dizer, alto, aquilo que muitos de nós gostariam de dizer aos governantes actuais. Ninguém pode ser humilhado e suportar um vexame eternamente. Os actuais sacrifícios exigidos à maioria da população portuguesa, para além de insuportáveis, são desiguais na sua aplicação e não apresentam saídas para a crise do endividamento. É esta falta de esperança generalizada que desencadeou os protestos dos últimos meses, materializados nas manifestações de Setembro e nos constantes cercos a que os membros do governo são actualmente sujeitos. As pessoas estão a perder o medo atávico de que eram acusados os portugueses e isso é bom. A impunidade não pode passar. Foi isto que o protesto lancinante da Luísa Trindade nos ensinou. São mais importantes as imagens da sua revolta que todos os discursos pensados para a ocasião. Se nada já era igual depois do 15 de Setembro, tudo será diferente depois do último 5 de Outubro oficial. À Luísa, o devemos. A “Teresa Torga” do nosso desencanto.

2012/10/05

De pernas para o ar



Eduardo Galeano escreveu um livro chamado "De Pernas para o Ar". O livro relata um mundo onde o vício é virtude e a virtude é algo a abater. Exemplos que podiam ilustrar adequadamente este livro de Galeano abundam em Portugal. Este aconteceu ainda hoje de manhã.
A imagem de Natacha Cardoso é brutal. Alguns dizem que é o retrato do País. Não é, é o retrato de Cavaco Silva. "Muitos portugueses vêem-se em situações de grande dificuldade. Situações que os seus pais nunca conheceram e que eles próprios nunca julgaram que viriam a atravessar," disse Cavaco no discurso do 5 de Outubro que decorreu hoje em cerimónia clandestina. O discurso é impróprio de um Presidente da República.
De um Presidente da República esperar-se-ia uma posição activa, preventiva, crítica, viril, contundente. Cavaco é passivo, reactivo, acrítico, piegas e balofo. Cavaco é o primeiro responsável por este estado de coisas, mas dele se esperaria agora —esperaríamos nós todos, os Portugueses de quem ele é Presidente— contributo decisivo e eficaz para não deixar arrastar este processo de apodrecimento que ele iniciou, de que se queixa, mas que teima em manter activo.
Já estamos há muito habituados à falta de sentido de Estado e de verdadeira dimensão política dos agentes políticos portugueses, ao rasteirismo da sua postura, ao oportunismo ou à falta de estamina da sua actuação. Mas, também nessa medida, é preciso dizer basta!
"Nestas alturas, há o risco de nos deixarmos abater pelo desânimo e pelo pessimismo. De sermos assaltados por sentimentos de medo e de frustração. De incerteza quanto ao nosso futuro e quanto ao futuro dos nossos filhos," acrescentou distraído o presidente, pouco depois de, ao som do Hino Nacional, ter erguido a bandeira de Portugal ao contrário. Um presidente de pernas para o ar.

2012/10/04

Querer e poder

Os analistas fizeram as contas e a conclusão parece ser unânime: o novo pacote, ontem anunciado pelo ministro Gaspar, mantém e agrava mesmo a desigualdade na divisão do esforço de recuperação da bagunça financeira do país.
O povo rejeitou a "solução" da TSU. Em resposta o governo apresenta um conjunto de medidas mais abrangente e ainda mais gravoso para a vida dos portugueses. A incoerência é manifesta, o embuste é total, a provocação é clara.
O povo tomou, entretanto, plena consciência de todas estas realidades. Colectivamente, algo fez "clique!" Não há retrocesso possível. O governo, porém, continua a agir como se o calendário marcasse ainda 14 de Setembro.
O povo não quer esta austeridade, o governo não quer outra austeridade. O conflito de interesses não oferece dúvida. O embate é inevitável.
Querer é poder, mas o poder reside e vai sempre residir no povo. Adivinhem quem é que vai então sair mal deste confronto...

2012/10/03

Esquerda e redenção

Vivemos em Portugal um momento ímpar. Existe hoje uma consciência dos problemas do país e dos meios para alcançar um devir mais equilibrado como, atrevo-me a dizer, nunca tivemos desde o 25 de Abril. Não estou a dizer que é suficiente para alcançar os desejados objectivos, mas sim que existe essa consciência, manifestada de mil formas, mais ou menos explícitas, como nunca se viu.
Essa consciência foi ganha no quadro do mais violento ataque feito contra o povo trabalhador português de que há memória, no meio de uma recessão sem precedentes, de um desemprego trágico, do esbulho inaudito dos rendimentos do trabalho e de uma tentativa reles de ataque aos direitos mais básicos do povo, incluindo o da liberdade de expressão.
Quando centenas de milhar de portugueses se movimentam nas ruas, quando o clamor atravessa e une gerações, hierarquias e género, e até derruba fronteiras sociais e políticas, antes julgadas intransponíveis, que resposta vemos nós do lado dos partidos da oposição?
O PCP e o BE, o mais que conseguem fazer, neste quadro de enorme revolta, agitação, angústia e expectativa por alternativas políticas credíveis, perante a arrogância indescritível do poder, é apresentarem juntos duas moções de censura separadas. Perante o quadro catastrófico e a necessidade reclamada por milhões de um sério esforço de união em torno de soluções verdadeiramente alternativas e eficazes para os problemas do país, o PS chuta para canto, e confirma-nos o papel que, por iniciativa própria, atribui ao troço "esquerdo" do arco do poder: malhar mais no bombo e juntar desastre ao desastre. Um verdadeiro escarro este PS.
Estão todos equivocados. O que o clamor popular e esta nova consciência revelam é que a maioria já percebeu perfeitamente ao que vêm os do poder, situem-se eles no arco ou nas órbitas. Já se percebeu a sinceridade das suas posições. E, não duvidem, vão ser castigados, eles também, duramente. Não me parece haver redenção possível.