2013/05/11

"Ceci n'est pas une pipe"



Ouvimos Manuela Ferreira Leite insurgir-se esta semana, em vocalizos muito amplificados, contra a insensibilidade e crueldade com que o executivo trata os reformados. Já tínhamos ouvido Pacheco Pereira falar em "desobediência civil" e alertar para o sofrimento que as políticas de Coelho & Cia. causa ao povo e para o perigo que isso representa para a democracia e para as instituições democráticas. Ouvimos Bagão Félix acusar o governo de promover uma OPA hostil sobre as pensões dos reformados. Nem mais! Ouvimos Adriano Moreira defender a Constituição de Abril. Ouvimos, ainda hoje, Carlos Abreu Amorim dizer que o ciclo Gaspar acabou e que o ministro tem de abandonar, não a política que conduz, mas o próprio cargo. Acabou o seu ciclo, afirma grave.
O Povo, a Constituição, a Democracia. De Abril.
Ouvimos tudo isto e pasmamos. É gente de direita! Soa a esquerda, mas, não! Não há ilusão: é gente de direita, proveniente de uma matriz ideológica de direita.
Ouvimos, no passado, a esquerda a queixar-se vezes sem conta do mesmo de que esta direita agora se queixa em tom inflamado. Ouvimo-la usar até, sem qualquer efeito que se perceba, o mesmo discurso, por vezes, até a mesma linguagem que esta direita agora usa. Ouvimo-la reclamar a demissão do governo. Ouvimos tudo isto, mas não podemos nunca confundir as razões da queixa. Só poderemos lamentar a falta de eficiência do protesto de esquerda.
Neste momento estamos a assistir a um fenómeno absolutamente inaudito: ouvimos o discurso indignado da direita, cínica e despudorada, contra a política que andou a promover, por acção ou omissão, durante quase 40 anos!
Há, no que à esquerda diz respeito, qualquer coisa que me deixa perplexo. Anos a reclamar contra a política de desastre conduziram... à vitória da política do desastre! De anos a reclamar contra a política do desastre resulta que os responsáveis por essa política venham agora criticá-la. E receio mesmo, com fundadas razões, que será a "narrativa" da direita que ficará retida na mente dos portugueses. É o grito de Manuela Ferreira Leite contra o governo que vai ficar no ouvido. É a sua indignação que vai merecer a atenção das vítimas do desastre, não o grito do PCP ou do BE. Se Gaspar sair do governo não será em consequência da política desastrosa que os partidos de esquerda o acusam de estar a levar a cabo. Neste momento será sempre porque Amorim o exigiu.
Quem vai beneficiar politicamente do profundo descontentamento que a política do desastre está a gerar não será a esquerda, mas a própria direita que a provocou. Depois de se livrar das abencerragens que aterraram no poder dos respectivos partidos, a direita estará back in business.
A direita tem um património de credibilidade política que a esquerda não tem ou não quer ter, ocupada que tem andado certamente com problemas muito mais prementes...
Seria normal que as vítimas geradas pela política de direita seguida ao longo de todos estes anos, se virassem  para os adversários naturais dessa política e com eles congregassem esforços para a combater. Mas, não! A esquerda não conseguiu senão ganhos marginais entre as vítimas da política de direita, seus companheiros de jornada naturais. É a direita e a sua política, esta mesma ou travestida, que vai acabar por sair vitoriosa deste momento de provação.
Não admira que a direita não tenha aquele tombo nas sondagens que o desastre, o sofrimento, a crueldade e a insensibilidade social de que é acusada fariam prever. É a própria direita que se mostra mais eficaz a combate-la!
Quando fala em tom indignado contra a política de direita, é, paradoxalmente, a direita que tem a credibilidade para aparecer como paladina do combate à política que ela própria ajudou a implementar. Esperar mudanças políticas profundas e fiáveis desta direita que nos calhou em rifa é um exercício inútil quod erat demonstrandum, mas ela mantém intactas a sua credibilidade política e a reserva junto do eleitorado de que é capaz de o fazer. É no jogo democrático —que a esquerda recusa jogar em pleno— e na tibieza da esquerda que a direita ganha credibilidade política. Tudo o resto é folclore.
A ignorância, a ausência de cultura cívica e democrática, a iliteracia, a falta de sustentação profunda de que o inegável desenvolvimento gerado pela Democracia de Abril obviamente padece, apenas explicam uma parte de todo este problema. Um outro contributo não despiciendo é o que resulta do papel absolutamente de embrulho que a esquerda portuguesa vem cumprindo desde há anos. Uma esquerda frouxa que demonstrou até agora ser parte indevisível do problema, que joga o jogo da democracia da bancada e a feijões. Uma esquerda que representa bem o carácter merdoso das elites portuguesas.
Um traço que a direita —que consegue ser bem mais merdosa, mas que evidencia uma habilidade e uma aderência ao terreno de que a esquerda carece escandalosamente— parece ser tão bem capaz de parasitar.