2013/08/30

Um país a ferro e fogo

Foto DR
No Verão de 1979 passei três meses numa aldeia do concelho de Montalegre (Trás-os-Montes), local escolhido para “trabalho de campo” no âmbito de uma licenciatura em Antropologia.
O objecto de estudo (baldios e práticas comunitárias na região do Barroso) tinha sido definido em função da tradição enraizada entre as populações locais e que, à época, já se encontrava em vias de extinção: a utilização comunitária das terras de pastorícia, prática essencial para a manutenção dos rebanhos e para a economia de sobrevivência dos habitantes da região. 
Foi uma experiência enriquecedora, tanto do ponto de vista humano, como do conhecimento geográfico da região e do Portugal profundo, numa altura em que o refluxo dos anos loucos do PREC ainda se fazia sentir e as “vendettas” eram prática comum nas zonas rurais do pais.
Lembro-me de ter sido apresentado ao responsável dos serviços florestais do distrito, um engenheiro agrónomo, cujo local de trabalho era numa ampla vivenda, onde também residia. Disse-lhe ao que vinha, mostrei-lhe a carta (escrita em inglês) onde o orientador de tese pedia apoio para a minha investigação e o homem, depois de a ler, logo ali pôs os arquivos do centro à minha disposição. Durante dias a fio, passei largas horas naquele arquivo, lendo relatórios  e comparando dados sobre as terras incultas e o uso comum dos baldios e da floresta à guarda do estado, sobre os quais os últimos dados existentes eram do censo de 1970. Todas as semanas havia fumo no horizonte e eu sabia que algures, nas serras circundantes, a floresta estava a arder. Falávamos muito de fogos e, um dia, após ter recebido uma mensagem de alerta, virou-se para mim e perguntou-me: “Quer ver um fogo de perto? Venha comigo, pois vai assistir a um”.
Lá fomos no jipe da guarda florestal e após largos minutos por montes e vales chegámos a uma distância relativamente perto da ocorrência. Aguardava-nos um cenário dantesco: labaredas gigantes que ora avançavam, ora recuavam, mudando de direcção, fagulhas lançadas pelo vento que alimentavam a combustão, uma cortina de fumo negro que impedia a visão a uma dezena de metros e um calor abrasador que não nos permitia respirar. Fiquei, literalmente, siderado. Rapidamente, demos meia-volta, deixando para trás uma corporação de bombeiros que procuravam limitar os estragos. Perguntei-lhe se pensava que os fogos podiam ter uma origem criminosa... ”Nunca vi nenhum fogo espontâneo. Você já viu?”, foi a sua resposta.
Continuei o trabalho e, nas fichas consultadas, confirmei a opinião do técnico. Mais de metade das ocorrências estava marcada com a menção “fogo posto” ou “negligência”; enquanto os restantes casos apontavam como “origem desconhecida” a causa improvável dos incêndios.
Passados alguns dias, estava eu em Montalegre, ouviu-se uma explosão que fez estremecer toda a vila. Uma coluna de fumo negro elevava-se por cima da residência do técnico florestal. A notícia rapidamente se espalhou: uma bomba artesanal tinha deflagrado na casa do homem e este tinha morrido. No funeral, dizia-se à boca calada que ele tinha posto fim à vida. Várias versões sobre a sua morte, correram naquele Verão, entre as quais a de que ele teria dados comprometedores nos seus arquivos.  O caso caiu no esquecimento e provavelmente nunca se saberá a verdadeira razão de tão estranho acidente. Nunca me esqueci deste episódio e lembro-me sempre dele quando chega o Verão e vejo Portugal a arder.
Passaram mais de 30 anos e, ciclicamente, todos os Verões, os fogos em Portugal regressam, se possível com maior violência e mais vítimas humanas a lamentar. Se durante a ditadura os fogos eram, normalmente, associados a agricultores ou pastores, a quem eram atribuídas as “queimadas” para limparem o mato circundante; depois de 1974, as razões invocadas tem sido as mais díspares: desde pirómanos, a motivos políticos, motivos pessoais (vendettas), lobby da celulose, interesses mobiliários, empresas de material de combate aos fogos, falta de limpeza das matas e, claro, a inevitável imprevidência. Todas razões plausíveis, mas que não podem servir de argumento para continuar esta situação insustentável. 
Uma coisa é certa: nenhuma razão poderá ser invocada sem haver uma mudança radical de mentalidades (dos governantes, dos responsáveis e das populações interessadas), única forma de parar este verdadeiro flagelo nacional, contra o qual parece não haver antídoto.
É tempo de haver uma mobilização nacional à volta de uma riqueza tão importante como a floresta, para não falar das vidas humanas (de bombeiros e não só) que todos os anos são notícia nos telejornais. O diagnóstico, sobre as razões dos fogos, está feito e não são necessários mais programas “Prós e Contras” para um debate sobre o tema.
Mais do que os meios – que toda a gente diz serem suficientes – é necessário mais e melhor prevenção e não se percebe porque todos os anos falhamos. Haja vergonha!