2013/09/28

Mesmo em crise, Amsterdão é uma festa (3)


Um dos percursos culturais mais interessantes na cidade é proporcionado anualmente no “Open Monumentendag” (Dia do Monumento Aberto), data em que dezenas de instituições, públicas e privadas, abrem gratuitamente as portas à população. Este ano, porque o dia dos monumentos (15 de Setembro), coincidiu com um domingo, a municipalidade alargou as visitas a todo o fim-de-semana. A melhor altura para fazer o percurso é de manhã, quando as filas são ainda pequenas, mas, quando chegámos ao prédio “De Granada”, uma mansão senhorial situada na Nieuwe Herengracht, o canal tradicionalmente habitado por judeus abastados, já a fila era já tão grande que optámos por outra alternativa, esta situada uns números mais à frente, a “Huize Avondrood”, igualmente propriedade de uma rica família judia. Infelizmente, o tempo de espera afigurou-se tão longo que decidimos passar a outra instituição na vizinhança, a “Uilenburgersjoel”, uma das três sinagogas da cidade, recuperada depois da pilhagem na segunda guerra e que hoje, para além de lugar de oração, é utilizada como escola e local de ensaios. Lá estivemos, a ouvir música de reportório “klezmer”, magnificamente tocada por um “ensemble” de jovens músicos de origem.
Tempo para passar ao monumento seguinte, “De Oude Kerk” (A Igreja Velha), considerado o edifício mais antigo da cidade. Pese a sua antiguidade, a igreja, de culto protestante, apresenta sinais de grande vitalidade depois da restauração a que foi sujeita em 2008 e que ainda não terminou. Para além das cerimónias litúrgicas tradicionais, é intenção da municipalidade criar no seu espaço (gigantesco) uma galeria de arte moderna. Foi lá que vimos uma exposição de fotografia, cujo tema central era a “mulher” em diversas sociedades e profissões. Fotos de grande nível, com destaque para uma série sobre “travestis” mexicanos, premiada com o 1º lugar em fotografia documental. Situada em pleno coração do “bairro vermelho” de Amsterdão, a “Oude Kerk” é um “must” do roteiro turístico da cidade.
Seguiu-se uma visita à “Gulden Trip” no mesmo bairro, uma pequena moradia com quintal, datada de 1565, construída sobre os alicerces de uma das mais antigas casas da cidade, cujas origens remontam a 1380. Durante a sua reconstrução, em finais do século XX, foram descobertos e restaurados os pavimentos e tectos originais, que podem ser admirados em todo o seu esplendor. A “Gulden Tulp” alberga, actualmente, a sede do “Fundo National de Instrumentos”, uma fundação que apoia a divulgação de instrumentos antigos e de um “ensemble” musical de cordas. Vale a visita.
Depois de um breve interregno, seguimos para a “Ambtswoning” (residência oficial do presidente da câmara) famosa pela sua decoração de inspiração francesa e pelas suas tapeçarias e lustres em Arte Deco. Também aí, as centenas de pessoas na fila fizeram-nos optar pelo “Stadsarchief Amsterdam” (O Arquivo Municipal), um edifício imponente que domina toda a Vijzelstraat, uma das principais artérias da cidade. Inaugurado em 1926, o edifício, também conhecido por “De Bazel”, nome do arquitecto responsável pela obra (J.J. Bazel, 1869-1923), foi originalmente construído para sede do Banco HandelsMaatschappij Nederland, que mudaria de local em finais do século passado. Depois de um período em que esteve encerrado, o edifício reabriu ao público em 2007, já nas funções actuais: as de arquivo da cidade desde a sua fundação, que inclui um departamento arqueológico, onde são registradas e catalogadas todas as descobertas posteriores. Trata-se de um edifício de 10 andares (dos quais 3 são subterrâneos), com mais de 40 kilómetros de documentação (muita dela totalmente digitalizada) com a história da cidade e a dos seus habitantes. Influenciado pelo estilo “De Stijl”, as linhas sóbrias e funcionais do edifício espantam pela sua solidez e bom gosto, onde todos os pormenores foram calculados. Dispõe ainda de um centro de documentação, sala de cinema e loja, para além de exposições permanentes e temporárias e a possibilidade de visitas guiadas ao arquivo, localizado na cave imensa com três pisos.
Dada a falta de tempo, deixámos para outra oportunidade a visita aos andares superiores (sala da direcção e de reuniões), tendo assistido à projecção do filme “Fotostudio Merkelbach”, uma selecção de “portraits” do realizador Kees Hin (que passou em 2012 por Lisboa, no Festival Cinema Bioscoop), dedicado à colecção Merkelbach, famoso fotógrafo de Amsterdão do século passado. Pelo seu estúdio, passaram nomes famosos da sociedade holandesa, como Mata Hari, Toon Hermans, Van Halst van Overtoom. entre outros. Todas fotos recuperadas, entre mais de 40 000 negativos salvos de uma cheia recente. Um espanto, o “De Bazel”, finalmente à disposição do grande público.
Chegados ao fim deste excitante dia, tempo para uma sandwiche de espadarte fumado com carpazzio e uma cerveja biológica “De blauwe Bijl”, fabricada artesanalmente numa “brouwerij” da zona Este de Amsterdão. A prova final que Deus existe...

2013/09/26

Mesmo em crise, Amsterdão é uma festa (2)

Overhoeks, 't IJ, Amsterdam-Noord, Amsterdam - Netherlands

De todas as obras recentemente levadas a cabo na cidade, duas sobressaem pelo seu arrojo arquitectónico e fins a que se destinam, respectivamente à música e ao cinema. Estamos a falar do “Muziekgebouw” (que inclui a mítica “Bimhuis”, verdadeira meca do jazz internacional) e do edifício futurista “Eye” (a cinemateca local, situada na margem norte da capital holandesa). Ambos têm uma programação de excelência, sendo visitados por milhares de melómanos e cinéfilos diariamente, o que atesta da sua programação e do poder de compra médio dos locais. Lá fomos, numa noite ventosa e com alguma chuva à mistura, assistir a uma sessão de free-jazz , uma das tradições da “Bimhuis” de velhas recordações. A alma de Chet Baker ainda deve andar por lá (o trompetista viveu e morreu em Amsterdão), pois o concerto a que assistimos tinha uma secção de sopros de primeira água. O programa tinha como título “Carte Blanche Oene van Geel”. Van Geel é um virtuoso violinista local que tinha como convidados The Nordians Extended (ensemble ad-hoc de Amsterdão-Norte), Theo Loevendie (uma velha lenda do clarinete e do sax) e a magnífica cantora Nora Fischer. De realçar, ainda, um convidado indiano nas “tablas” e um convidado escocês na flauta e na gaita de foles, que ofereceram duas horas de verdadeiro prazer, num mix de jazz e músicas do mundo, de grande qualidade musical. No final, tempo para percorrer a excelente loja da “Bim”, onde se podem encontrar exemplares únicos de “standards” do Jazz e da World Music, muitos deles em Vinyl. Até a Amália Rodrigues se podia lá comprar. A noite não terminaria sem provarmos algumas “Palm”, cerveja castanha, de beber e chorar por mais... Outra visita, que se tornou um “must”, desde a sua inauguração em 2012, foi à Cinemateca, situada na margem norte do IJ, o lago que divide a cidade em duas margens distintas. O nome “Eye”, assim se chama o novo edifício, é um trocadilho entre a palavra “olho”, em inglês, e a palavra IJ, que se pronuncia de igual modo. Para além das 4 salas de projecções em simultâneo (duas das quais dedicadas a estreias de filme de autor). a nova cinemateca dispõe de salas de exposições permanentes e de uma loja de “gadgets” cinematográficos, que são uma verdadeira tentação para qualquer cinéfilo. A exposição temporária era dedicada a Federico Fellini e estava anunciada por toda a cidade. Trata-se de um projecto original do “Eye”, aqui apresentado em premiére mundial, que ocupa toda a parte superior do edifício. Durante duas horas, passámos em revista a vida e os filmes do genial realizador italiano, apresentadas em painéis bi-lingues, estrategicamente colocados. Para além dos dados biográficos e das notas sobre os filmes, a colecção tinha a particularidade de mostrar os “storyboards” desenhados por Fellini, um ilustrador de reconhecidos méritos. Completavam a mostra, excertos de alguns dos seus principais filmes: “I Vitelloni”, “O Sheik Branco”, “La Dolce Vita”, “8 ½”, “Julieta dos Espíritos”, “I Clowns”, “Roma”, “Amarcord” e “Casanova”, projectados em écrans de grandes dimensões, como estivéssemos numa sala de cinema normal. Um verdadeiro “happening” cultural, que tivemos o privilégio de ver, num espaço que recomendamos a todos os futuros visitantes desta cidade cinematográfica.

2013/09/23

Mesmo em crise, Amsterdão é uma festa


Forçado, pelas circunstâncias, a deslocar-me a Amsterdão, aproveitei para tirar alguns dias de férias e fugir do calor abrasador que se fazia sentir em Portugal.
Acontece que o Outono já começou na Holanda e as temperaturas médias nesta época do ano (15º), acompanhadas de alguma chuva e vento, não foram as mais propícias para quem queria andar a pé pela cidade. Valeu a pena pela oferta cultural, agora que a nova temporada artística teve início e a cidade está mais vibrante do que nunca.
Das visitas incontornáveis, aconselho o renovado Rijksmuseum, a sala de visitas da cidade, reaberto após mais de 10 anos de obras, devido à ampliação do espaço e renovação da sua colecção permanente. Um espanto, o novo “Rijks”, agora com um “hall” de recepção envidraçado, no lugar das antigas caves do edifício, onde se entra através de uma escadaria ladeada por amplos balcões de atendimento e informações de toda a ordem. É neste espaço aberto que estão situadas as duas lojas do museu e a cafetaria, onde os clientes têm de esperar em fila por uma mesa vaga, tal a afluência de visitantes nestes primeiros meses.
Depois, é escolher por onde começar. O Museu tem três pisos acima do nível da rua e um abaixo, também designado por piso 0. Foi aqui que começámos, para ver as colecções especiais, dedicadas às louças, moda, armas e modelos de barcos, agora numa nova disposição dentro do museu. Também neste piso, uma assinalável colecção de pinturas e arte sacra (1100 e 1600), designada como “arte primitiva” pelos locais. Depois de uma boa hora de deslumbramento, tempo para subir ao 2º piso, dedicado ao período 1600-1700. É aqui que estão as obras que fizeram a reputação do Museu: “A Ronda da Noite”, e a “A Noiva Judia” de Rembrandt, ou “A Pequena Rua” e a “Rapariga do Leite” de Vermeer, mas também pinturas de contemporâneos como Steen e Hals. Um deslumbramento absoluto, que só a afluência desmesurada de turistas e respectivos guias, perturbou. Razão para parar e descer à livraria, onde a informação é abundante e multi-lingue. À saída, e porque chovia, tempo para parar numa feira russa de gastronomia, instalada em plena praça dos museus, e provar um pão casqueiro de peru fumado e uma “pancake” coberta de mel, acompanhada de chá original, servidos por uma simpática siberiana vestida com trajos da região. Que mais desejar?
Voltaríamos ao Museu, alguns dias mais tarde, agora para visitar os  pisos restantes que abrangem outros tantos períodos. O primeiro piso (1700-1800) dedicado ao romantismo, e ao impressionismo onde, entre outros, podem ser admirados trabalhos de Gabriel, Breitner, Van Gogh e Goya, para além de colecções representativas da escola de Amsterdão e de Haarlem e à época do iluminismo (William IV e V).
Finalmente, o último piso, dedicado ao século XX. Esta é uma colecção renovada, que está dividida por duas alas distintas: a ala Este (1900 a 1950) onde podem ser admirados magníficos exemplares das correntes “Art Nouveau” e “Stijl”, para além de obras de Rietveld, Mondriaan e um exemplar do primeiro avião fabricado pela Fokker. É nesta sala que é projectado o documentário “Philips Rádio” (1931) da autoria de Joris Ivens. E a ala Oeste (1950-2000) onde o sobressaem os trabalhos de Yves Saint-Laurent, Appel e Constandt, para além de obras dos mais famosos arquitectos e urbanistas holandeses. Também nesta sala, é projectado o documentário, “Deltaplan Phase 1”  de Bert Haanstra, que Lisboa viu recentemente integrado no Festival Cinema Bioscoop.
Era já tarde, quando saímos do Museu, não sem antes termos dado uma volta pelo jardim circundante, onde estão expostas esculturas de Henry Moore.
Uma festa para os olhos e para os sentidos, a provar que a grande arte ajuda a lavar a alma.