2014/04/25

25A40 - O som do cravo

 Um concerto em três tempos.

1º tempo
No princípio era o silêncio. O pensamento abafado, a voz muda, o segredo, o degredo, a clandestinidade. “Se fores preso, camarada”... Portugal vivia em silêncio. Um silêncio que se vinha instalando desde tempos remotos da história, um silêncio também garantido pelo crepitar dos autos de fé. 
Fé. No final de 1973, início de 1974, acreditei (e continuo a acreditar!) que a educação musical é um factor de libertação. Que pela via da música todos podemos atingir o nosso apogeu, todos podemos ser melhores seres humanos. A experiência pedagógica, fugaz, que tive nessa altura, imediatamente antes do 25 de Abril, parecia confirmar que o meu credo — de que a música deveria fazer parte do currículo escolar, não do modo acessório como acontecia até então, mas como disciplina fundadora — é uma ideia razoável, para cujas bases queria contribuir. Silenciaram-me, de forma patética, nestes propósitos.
Havia tempo que tinha mergulhado num universo musical caótico e esta componente pedagógica, que logrei pôr, pela primeira vez e de forma modesta, em prática ainda antes de Abril. Ainda que por breves instantes e de forma incauta, ela resultava de uma reflexão sobre esse caos, era uma espécie de destilação desse caos, que mais não era, por sua vez, que um acto de resistência, um esforço pessoal de exigência de liberdade e de crença na capacidade de transformação da sociedade através da música. Este universo musical caótico foi a minha tentativa de romper com o silêncio. A componente pedagógica era a emanação audível desse processo.
Ao mesmo tempo, perguntava a mim próprio aonde nos poderia levar toda a amplitude criativa e estilística que na altura existia, de cuja influência também não escapei. Perguntava para que serviria todo aquele novo ferramental sonoro, que já então despontava, a que eu tinha finalmente acedido e que começava a dominar a prática musical. Para que serviria tudo aquilo se não existissem ouvidos para ouvir a nova música? Como viabilizá-la? Todas estas perguntas tinham como resposta o silêncio. 
2º tempo
O 25 de abril apanhou-me no meio destas perguntas sem resposta, mas revelou-me, de imediato, uma enorme quantidade de respostas sem pergunta. Para perguntas que nem sequer tinha imaginado. Tudo parecia então possível. Todos os sons pareciam poder suceder a todo aquele silêncio. Mas essas possibilidades não serviram para me dissipar as dúvidas. Todas as dúvidas eram também agora possíveis.
Um dia, regressava a casa bem tarde, e fui surpreendido por um intrigante acontecimento sonoro. Uma nuvem sonora composta pelos ténues sons de milhares de pequenos insectos que, na altura, não consegui identificar com rigor, produzidos talvez pela Tettigettalna aneabi, que soa assim. Não é possível descrever o efeito de milhares destes insectos espalhados por uma área sensivelmente do tamanho de um campo de futebol. Façam, por favor, um esforço de imaginação. A tentação de usar aqui a metáfora do pirilampo é grande. Em vez das luzes, imaginem-se "cliques". Mas não, não vou cair nessa tentação...
Fiquei ali quieto durante muito tempo a ouvir aquele deslumbrante espectáculo sonoro. Lentamente fui percebendo que a música que eu procurava estava ao alcance do meu ouvido. Pré feita. Perfeita. Em vez de me preocupar em introduzir mais sons no ambiente, de meter mais som ao barulho, devia talvez prestar mais atenção ao som, aos sons, que me rodeavam.
O próprio 25 de abril, que se ia desenrolando na altura à nossa volta, era feito de sons que, de forma subtil, se iam enraizando em nós e exigiam, foi-se percebendo, constante capacidade de interpretação. A Revolução tinha começado com o som da rádio. Foi o sinal sonoro das canções que deu início às operações. Depois foi o som das marchas militares. De seguida vieram as vozes dos locutores com a leitura dos comunicados do MFA. “Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas”. E novamente as marchas militares, designadamente uma, chamada “Life On the Ocean Wave”, que ficaria conhecida como a “marcha do MFA”. Essa foi a sonoplastia original do 25 de abril. Rapidamente se lhe sobrepuseram os primeiros gritos de liberdade, os (poucos) tiros, as primeiras palavras de ordem, os primeiros discursos, os primeiros comunicados. Por cima dessa sonoplastia original foram-se inscrevendo as vozes dos protagonistas da Revolução, cujo timbre ficou para sempre gravado na memória auditiva de todos nós, os que vivemos esse momento. As músicas antes proibidas tocavam agora continuamente, como uma jukebox que adornava o nosso quotidiano. O grito das reivindicações era o coro que marcava os momentos de tensão. Os passos da “Grândola” ouviam-se firmes, num crescendo inexorável, e pareciam marcar a vida de toda a gente. Ritmos que trocavam o passo a uns e acertavam o passo a outros. O 25 de abril foi uma empolgante paisagem sonora. O cravo soava bem.
Foi com o 25 de abril que aprendi verdadeiramente a escutar o mundo à minha volta. Com o meu gravador ao ombro e de microfone em punho, aproveitei para calcorrear quilómetros e registar tudo o que produzia som. O mundo ouvido começou a ter um significado diferente desde então. Dei-me conta que todos os sons estavam ainda por descobrir. O 25 de abril veio-me provar algo que eu já intuia: que era possível entender melhor o mundo escutando-o.
3º tempo
Um dia uma bomba rebentou, com enorme estrondo, nos emissores da rádio. De instrumento da revolução, a rádio passou a obstáculo que era preciso demolir. Silenciá-la com estrondo foi a solução. E ao estrondo seguiu-se a imposição de um novo silêncio. Um outro 25, a querer restaurar velhos métodos. Eu próprio fui vítima desta tentativa de silenciamento, num incidente caricato que envolveu uma guitarra eléctrica tomada por uma G3.
O silêncio de antigamente, logo descobriram os promotores desse novo 25, não era afinal possível. E o silêncio transformou-se em ruído. 
O silêncio é a tela negra onde todos os temores se projectam. O ruído é a tela branca que ofusca todos os pensamentos. Ambos, silêncio e ruído, visam os mesmos objectivos: tolher movimentos, impedir a acção. Silêncio e ruído são ferramentas do poder. É preciso ter poder para conseguir impor silêncio ou manipular ruídos. É preciso capacidade de luta para contrariar e vencer os seus efeitos. 

Dal 25 al CODA
O 25 de abril significou, em grande medida, perceber o mundo sonoro à minha volta. Teve o efeito de acelerar a capacidade de o escutar. A capacidade de escutar é algo que considero ser a componente decisiva da Democracia. Escutar para além do silêncio que não nos permite ter voz e escutar para além da cacofonia que procura mascarar e confundir as vozes necessárias. Bem escutar, para bem soar. Há anos que venho chamando a atenção para esta verdade singela: só escutando será possível desmascarar aqueles que pretendem silenciar a nossa voz, banalizá-la ou afogá-la num mar de vozes que tornam a nossa inintelegível. 

40 anos depois do 25A creio que ainda não ganhámos a capacidade de nos escutarmos uns aos outros. Não escutamos os nossos companheiros de jornada, sem os quais não atingiremos jamais o nosso desígnio colectivo, e não escutamos, verdadeiramente, aqueles que apenas nos pretendem confundir. Se os tivéssemos escutado, de facto, não estaríamos como estamos. Eles disseram tudo.

Escutar é uma (talvez, a) exigência maior da Democracia, que Abril não conseguiu (ainda) ensinar.

7 comentários:

Raul Henriques disse...

O 25 de Abril visto de um ângulo completamente inovador! Quem souber ler descortinará uma enorme riqueza neste texto.
Obrigado Carlos!
Espera-se um desenvolvimento desta "tese".

Rui Mota disse...

Tem a ver com os 4 minutos do Cage?

Carlos A. Augusto disse...

Também. Mas isso são cenas de próximos capítulos...

Carlos A. Augusto disse...

Raul, não me faças corar...

Tulip disse...

Que maravilha de texto, Carlos.

Já tinha lido mas tive de regressar para o reler, e não resito em te deixar este comentário.

Obrigada.

o norte a terra disse...

Parabéns Carlos por esta incrível análise sonora!!!
Concordo em absoluto. Tantos sons e tão escassa a ESCUTA.
Gratias!
Beijos e abraços
teresa








Silvestre Pedrosa disse...

Excelente metáfora. Acrescentaria que outra falha, é ou será, o facto de também não reflectirmos.