2014/04/24

25A40 - O dia mais longo

No dia 25 de Abril de 1974 estava em Amsterdão, onde me tinha exilado cerca de oito anos antes. Na véspera, tinha combinado com o Miguel Castro, também ele um exilado político, passar por uma tipografia anarquista holandesa, onde tinhamos encomendado uma "rede" de imprimir serigrafias para o Comité de Refugiados Portugueses na Holanda. Lá fomos, ainda não eram 9 horas da manhã, montados numa só bicicleta, buscar a "encomenda". Custou-nos 100 florins e, no acto da entrega, lembro-me do tipógrafo nos ter dito que seria bom que não tivéssemos de a utilizar muito tempo, pois seria sinal que o exílio não iria ser longo...
Dali, seguiria para a Faculdade de Antropologia, onde uma hora mais tarde participava num grupo de trabalho com colegas holandeses. A maior parte dos estudantes já se encontrava na cantina e,  ao verem-me, dispararam: "O que estás aqui a fazer? Não vais para Portugal?". Perante a minha surpresa, continuaram: "houve um golpe de estado no teu país e pensávamos que já soubesses...". Imaginei que se referiam ao golpe abortado de 16 de Março, ainda fresco na memória, e pensei que estavam a gozar comigo. Mas não, asseguravam-me, tinha sido naquela mesma noite. Esperei pelo fim da aula, onde o professor me disse mais ou menos a mesma coisa: "pensava que não vinhas hoje...". 
Saído da faculdade, corri a comprar o "Het Parool", o primeiro jornal da tarde, onde confirmei a notícia. Lá estava, na primeira página, a fotografia do Spínola, de monóculo, sob o título "Coup d'Etat in Portugal". Porque as notícias eram parcas e resumiam-se a uma descrição de uma acção armada dirigida por algo que dava pelo nome de MFA, à cabeça do qual estaria o famoso general, temi o pior: outro golpe de direita.
Seguiram-se telefonemas para a comunidade portuguesa em Amsterdão e para exilados noutros países europeus, parte dos quais sabia tanto como eu. Telefonar para Portugal era uma impossibilidade, dado o "estado de sítio" existente, pelo que ficámos dependentes das notícias das agências e meios de comunicação holandeses. À medida que a tarde avançava, os noticiários iam sendo mais específicos, ainda que a incerteza fosse total. Já em casa, telefonam-me de duas estações de televisão: a VPRO, uma estação privada de tendência socialista-libertária, que desejava saber se eu ia voltar a Portugal, para me acompanharem no avião e poderem filmar o regresso de um exilado; e da NOS, a televisão pública holandesa, para uma entrevista em directo no noticiário dessa noite, onde seria questionado sobre os acontecimentos em Portugal.
Acertei os pormenores da entrevista e sugeri as instalações do Comité de Desertores, situado num edifício no centro da cidade. Reunimos algumas dezenas de refugiados portugueses e fomos para as instalações do Comité, vazias àquela hora. Lá estava o carro de exteriores da NOS e, depois de ensaiadas as perguntas, assistimos ao telejornal, que abriu com a notícia do dia: o golpe de estado em Portugal. As primeiras imagens (a preto e branco) eram de militares e da população em Lisboa, seguidas da proclamação da Junta de Salvação Nacional, dirigida por Spínola. Ao ver aqueles rostos fechados, a maior parte deles fardados e de óculos escuros, não pude deixar de pensar na "junta" chilena de Pinochet. Quando o entrevistador me perguntou sobre o que pensava do golpe, lembro-me de ter respondido que, a avaliar pelos personagens, me parecia um golpe de direita, tanto mais que tinha havido uma tentativa de golpe em Março, ligada a "spinolistas". Teriamos de esperar para confirmar, pelo que não aconselhava ninguém a voltar a Portugal naqueles primeiros dias, até se confirmarem as notícias, adiantei. Fim da entrevista, que seria repetida de hora a hora, até ao fecho da emissão. O resto da noite foi passado em animada discussão, com centenas de exilados que iam chegando ao Comité de Desertores. Um ambiente de tensão, dominado por sentimentos de alegria e de incerteza, em relação a uma realidade que não podíamos avaliar directamente.
A manhã do dia seguinte trouxe mais notícias e entrevistas, agora para a rádio e, à medida que iam sendo conhecida a adesão da população, a certeza que as coisas estavam a ir no bom caminho. Faltava ainda a libertação dos presos políticos (o que só viria a acontecer na madrugada do dia 27) e, entretanto, tinha havido disparos da sede da PIDE, o que indiciava haver resistência da parte dos fascistas.
Quando, nesse fim-de-semana, passei pelo Albertkuip, o maior mercado ao ar livre da cidade, onde vendíamos o jornal "O Alarme!" (uma publicação de portugueses exilados em Grenoble), fui insultado por diversos emigrantes portugueses, que me tinham visto na televisão: "Então, você não tem vergonha de dizer mal do Spínola e de Portugal?". Respondi que não podia fazer outra coisa, dada a reputação do famigerado general. Mas, sim, tudo indicava que o "golpe" tinha sido de tendência democrática e ainda bem. Não ficaram lá muito convencidos...
Hoje, passados 40 anos - sobre um dia que parecia nunca mais acabar - continuo a pensar que foi bom ter errado nos meus vaticínios. O 25 de Abril está aí para o provar. Festejemo-lo, pois.

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