2014/05/21

A assobiar para o lado, até que um dia...

Já há muito que se tornou doloroso observar o gigantesco acto de prestidigitação que foi montado em torno da chamada crise da dívida soberana portuguesa e o modo como o Povo Português a ela reage. Nem Siegfried & Roy alguma vez conseguiram tamanha proeza. Esta questão da culpabilização dos povos e da exaltação dos chefes e do seu papel providencial, não é um fenómeno de hoje nem, seguramente, um "problema português". A teoria política disseca este tema e há várias explicações para ele. Em todo o caso, é de coelhos tirados da cartola, de ilusionismo, portanto, que estamos aqui a falar. Vender a crise é como vender detergentes, criando a ilusão de que um lava "mais branco" que o outro e nisso, temos de o admitir, os actuais governantes arriscam ganhar o Leão de Cannes...
Há uma série de ideias que entraram no imaginário colectivo de uma forma chocante e verifica-se que a esmagadora maioria das pessoas actua perante essa ficção que é a "crise" como se se tratasse, de facto, da realidade, deixando a realidade, essa sim, escapar-se-lhe por entre os dedos.
Duas ideias ilustram isto que digo.
Primeiro, a ideia de que temos de "reformar" o Estado. Ninguém está contra a necessidade de melhorar serviços, poupar recursos, alterar até objectivos. Todos, mas todos!, queremos mais, melhor e maior eficácia na obtenção de resultados. Querer, pois, reformar o Estado não é, em si mesmo, algo digno de nota especial. O que está em causa aqui é verificar se aqueles que repetem esta ladainha o estão a fazer bem, se não estão a agravar o problema que diziam querer resolver ou se não estarão a aproveitar para impor a sua própria (uma outra) ideia de Estado. Se levarmos em conta tudo aquilo que foi dito antes, para obter a legitimação democrática necessária para levar a cabo estas reformas, o que parece quererem dizer agora aqueles que propagandeiam e os que papagueiam, sem reflectir, este cliché, é que temos de acabar com o Estado. No entanto, lá os vemos com ar moralista a repetir o estafado argumento dos gastos acima das possibilidades, do défice incomportável e da impossibilidade de viver assim, alapados, eles e os amigos, no Estado que tanto criticam.
Dizer-se que temos de alterar o estado actual do Estado não é nada em si mesmo. O que está em causa é como fazê-lo e com que resultados. É a esse julgamento que os actuais responsáveis pelo governo de Portugal parecem querer fugir, ao repetirem a mesma conversa sem se submeterem à nossa avaliação periódica. Nós somos a troika! 
Outra das ideias que esvoaçam constantemente nos discursos dos políticos e nas análises dos doutos comentadores, pagos para nos ensinarem a pensar, é a de que vamos ter reforma para 20 ou 30 anos. Portugal não se levanta nem daqui a uns decénios, vamos continuar como " protectorado" mais não sei quanto tempo, os credores exigem, os credores dominam. Esbanjou? Tem de ajoelhar!  Estas ideias em particular, ouvimo-las da boca dos mesmos responsáveis políticos que as originaram (ouvimo-las da boca de Cavaco Silva, por exemplo, que a proferiu sem corar de vergonha, assobiando como se nada fosse com ele) e ouvimo-las também de gente crítica do actual governo e das suas orientações, alguns mesmo que conquistaram auditório a denunciar os desmandos dos políticos e que agora se limitam a fazer coro com aqueles mesmo que antes denunciaram, não apresentando - facto significativo! - uma única alternativa ao que criticam nem se comprometendo com a viabilização de soluções para as críticas que proferem. Gente de gravata, falar manso e cara bolachuda, diz aos sem-abrigo, magros e esfarrapados que vão ter de permanecer dentro dos caixotes de papelão mais umas décadas.
Não há culpados, há uma "dívida", que é vista como se fosse um desses arquétipos platónicos, coisa portanto intangível e só discutível no domínio da música das esferas, mas ninguém assinou o cheque nem mandou publicar em Diário da República. Fomos "nós", os "portugueses", mandriões e desorganizados, que levámos o País à ruína. 
Espanta a leviandade com que gente de barba branca fala na hipoteca do futuro de filhos e netos sem pestanejar, sem sequer sentir, aparentemente, um leve resquício de vergonha na tromba. Começar a vida com a perspectiva de que quando tiver 20 ou 30 anos vai ainda ter de pagar uma dívida que não contraiu, é esta a "promessa" que faço à minha neta recém nascida?! Uma dívida que o avô nem sequer contraiu? E os que, de facto, a contraíram, limpa-se-lhes o cadastro? E será na realidade a dívida dela? E se for, não terá ela direito a uma compensação por nos ir pagar algo que não avalizou? Como vai ela sustentar-se a ter de pagar os compromissos necessários a assegurar a sua sobrevivência juntamente com os encargos do regabofe para o qual não contribuiu? E esta gente, mesmo a que critica as actuais orientações do governo, acha isto normal? O movimento pró vida transformou-se em movimento pró dívida...?
Contra isto alguns Portugueses reagem saindo do País, outros juram que não vão votar, muitos, a maioria, diabolizam os políticos mas fogem à responsabilidade de os apear do poder e criar verdadeiras alternativas. Irão para a praia em dia de eleições, dirão depois que não foi com a sua ajuda que "estes" foram para lá, sentir-se-ão assim leves que nem pássaros. Mas não, a culpa é deles e mais tarde ou mais cedo, de uma forma ou de outra, vão ter de pagar por isso.
Já terão os Portugueses pensado como vai ser, de facto, a sua vida, a sua, dos seus filhos e netos, daqui a 20 ou 30 anos se continuarmos a assobiar para o lado da forma como temos vindo a fazer até aqui?

2 comentários:

Rui Mota disse...

Em Cannes, é a "Palma de Ouro". O "Leão de Ouro", é em Veneza.
A "dívida", é onde a Banca quiser...

Carlos A. Augusto disse...

Este Leão de Ouro é da publicidade... Não é o do cinema. Publicidade, ilusionismo, prestidigitação!
http://pt.wikipedia.org/wiki/Festival_de_Publicidade_de_Cannes