2014/04/07

A Imagem que Falta(va)



Há uns anos atrás, o Instituto Franco-Português organizou um ciclo do documentarista cambojano Rithy Panh. Alertado para o facto por uma amiga cinéfila, lá fui entre o curioso e o desconfiado. Do Cambodja, para além dos templos, do principe Sihanouk e do regime de Pol-Pot, pouco mais sabia.
Lembro-me de ter visto quatro dos seus filmes, respectivamente "Site 2" (1989), "La terre des âmes errantes" (2000), "S-21: La machine de Mort Khmère Rouge" (2003) e "Duch, le maître des forges de l'enfer" (2011). Uma tetralogia do terror Khmer Vermelho, filmado por uma das suas vítimas. Não me lembro de nenhum cineasta (para além de Lanzmann) que, de forma tão pungente, tivesse a coragem e a obstinação de confrontar-se com a memória desta forma, a um tempo documental e humanista, onde os carrascos respondem perante os seus crimes. Fiquei fã do realizador, certamente um dos maiores documentaristas da actualidade, na esperança que um dia seria descoberto em Portugal.
Esse momento parece ter chegado agora, com a estreia, no circuito comercial, da sua mais recente obra, o premiado "L'Image Manquante" de 2013.  Estamos, de novo, perante um filme-memória de um dos períodos mais negros da história recente. Ao contrário dos documentários anteriores, em que nos mostrava os horrores do regime de Pol-Pot através das suas vítimas e algozes, Panh conta-nos neste filme a sua própria experiência, desde o dia em que as tropas dos Khmer Vermelhos obrigaram a sua família a abandonar Phnom Penh, para ser "reeducada" nos arrozais do Cambodja. Estamos em Abril de 1975 e Rithy Panh tinha apenas 13 anos. Com ele foram os seus pais, irmãos e primos, que viriam a morrer de forma trágica.  Estima-se que terão morrido cerca de 2 milhões de cambojanos (um terço da população do país), durante o regime comunista de Pot (1975-1979). A maioria devido a maus tratos e às condições sub-humanas em que eram obrigados a viver. É esta história, trágica e heróica, que o realizador nos conta. Porque as imagens reais são parcas e, na sua maioria, glorificavam o regime, Panh viu-se obrigado a improvisar, com bonecos de barro pintados à mão, todos eles representando um personagem real, entre os quais o próprio realizador, de camisa às pintas. Alternando com as imagens dos "campos da morte", a preto e branco, podemos assim seguir a história da família Panh, através da teatralização dos bonecos de barro, sublinhada pela excelente narração de Randal Douc. Uma espantosa "mise-en-scène", onde o horror está sempre presente, apesar de nunca o vermos.
Não sabemos se, com este filme, Rithy Panh, fechou o ciclo da memória que se propôs filmar. Após esta obra, verdadeiramente excepcional, ele entrou definitivamente para o panteão dos grandes documentaristas de sempre. Um filme imperdível.