2015/10/23

Lições

Aparentemente as instituições democráticas estão a funcionar. O Povo Português pronunciou-se nas eleições, os partidos negoceiam alternativas no quadro dos resultados eleitorais, o PR atribui, em cumprimento do seu papel constitucional, a incumbência de formar governo a quem, no seu entender, melhor poderá cumprir essa função. Se o entendimento das suas funções poderia ser outro, se o comportamento do PR se afigura mais ou menos distante do que imaginamos ser um comportamento digno e correcto, se a sua decisão poderia recair noutra figura, são questões cuja discussão deve ser feita, mas que não têm qualquer relevância para o funcionamento das instituições democráticas. Estas instituições têm rostos e foram sufragadas por sucessivas eleições. 
Cabe agora à AR pronunciar-se sobre a decisão presidencial, dando continuidade aos mecanismos democráticos consagrados na Constituição. É ela a bitola. 
E assim se completa o ciclo.
As lições que interessa verdadeiramente reter no rescaldo de todo este processo são, sobretudo, duas.
Em primeiro lugar, o que esperar para a Democracia portuguesa quando observamos o comportamento inqualificável dos sectores políticos, a quem foi justamente atribuída a missão de formar governo? Ouvindo-os, somos subitamente levados numa viagem ao passado, em que os donos do poder de então não se coibiam de amesquinhar, caluniar, denegrir, violentar e até matar quem a eles se opusesse. Só falta largar os cães e os canhões de água ou reconverter as salas da Rua António Maria Cardoso ou da Rua do Heroismo novamente em locais de tortura e morte. Deveria envergonhar qualquer democrata, de esquerda ou de direita, o tipo de argumentos que foi utilizado nestes últimos dias contra uma solução de esquerda para o Parlamento. Enquanto se comemorava alegremente a data simbólica do filme Back to the Future, em Portugal foi tempo de Back to the Past. 
A Democracia anda distraída. As velhas forças obscuras estão, imagine-se, bem vivas e prontas a atacar a qualquer momento. Parecem aguardar um pretexto apenas. O que o comportamento da direita nestes últimos dias nos vem provar é que, para ela, a Democracia não é um valor. Daí a soltar os jagunços vai um passo.
Em segundo lugar, pela mesma ordem de razões, nenhum verdadeiro democrata se poderá sentir isento de culpas por termos chegado a este ponto, após mais de 40 anos de regime democrático. Há diálogos que estão a falhar ou nem sequer foram encetados, mitos que estão por desmascarar, forças poderosas que estão por aniqulilar, a esquerda esqueceu as gerações que nasceram após o 25 de abril. 
A esquerda tem uma notória incapacidade de diálogo, colabora activamente na perpetuação de mitos inventados e perpetuados pela direita, esqueceu-se tragicamente de denunciar, sem medos nem ambiguidades, os crimes do fascismo aos mais novos, de lhes ensinar o que é a Democracia, e serve-se das mesmas forças que a manipulam e condicionam, seguindo porventura a velha ideia do "se não podes vencê-los". Um caso particularmente grave, que merece destaque, é o da imprensa. 
Não há uma imprensa de esquerda em Portugal. A esquerda, agentes políticos activos e sectores de da população que a dizem seguir, estão totalmente comprometidos com uma imprensa de que são vítimas. Fazem-na e consomem-na sem pudor. Portugal é hoje uma gigantesca realidade virtual, construída com a acção diligente de uns, que a fazem, e a complacência estúpida e criminosa de outros, que a consomem.
As "máscaras caíram", como li por aí. A isso deve seguir-se uma implacável limpeza de balneário. Há gente absolutamente indigna alapada na esquerda que, é o momento, tem que ser desmascarada sem piedade. Mas, mais importante, a alternativa de esquerda tem de ser vivida sem ambiguidades e sem alienação de responsabilidades. 
É um futuro diferente aquele pelo qual devemos lutar, não um passado maquilhado. 

2 comentários:

Unknown disse...

No rescaldo desta fotonovela de cordel, com personagens tão pouco carismáticas e com capacidades de liderança efectiva, apenas no resta resistir. Desobedecer. Encontrar as falhas no muro. Muito bem escrito, gostei muito.

Carlos A. Augusto disse...

Obrigado.