2016/10/26

O A(s)salto da Memória


Entre 1961 e 1974, dezenas de milhares de jovens portugueses sairam do país por recusarem participar na guerra colonial levada a cabo pelo governo fascista de Salazar e Caetano.
Muitos eram "desertores" (os que já se encontravam no exército), a maior parte eram "refractários" (os que, já depois de apurados, não se apresentaram à incorporação) e os restantes, "compelidos" (aqueles que não tinham atingido a idade da inspecção militar).
Com o 25 de Abril, muitos destes jovens regressaram a Portugal. Uns foram incorporados, outros foram amnestiados e, muitos deles,  permaneceram no estrangeiro, onde continuam a viver.
Durante muitos anos, a situação dos desertores e o seu papel na denúncia da guerra, raramente foi abordada e, quando o foi, sempre era negligenciada.
Compreende-se porquê. Num país, onde a ignorância, o medo e a censura, controlaram o pensamento dos seus cidadãos ao longo de 50 anos, é difícil separar a questão da "pátria" (e a sua defesa) da deserção como um acto positivo numa guerra condenável.
Acresce que, os militares que fizeram a guerra, foram os mesmos que derrubaram o regime ditactorial e devolveram a liberdade e a democracia ao povo português.  
É provavelmente esta contradição (o papel dúbio dos militares portugueses em África) que explica o porquê do "tabú", ainda hoje existente na sociedade portuguesa sobre esta matéria. Por um lado, aqueles que recusaram a guerra contribuiram para o seu fim e, por outro, aqueles que nela colaboraram, contribuiram para fim do regime que impôs a guerra.
Como conciliar tais posições? Não é fácil, para mais num país onde o "medo de existir" sempre foi uma constante (como bem explicou Gil) e que, 40 anos depois, continua a dominar a mentalidade da corporação militar.
As poucas obras, entretanto surgidas em livro ou em filme, continuam a ser largamente ignoradas e foram necessários mais de 40 anos para que o problema voltasse a ser discutido, agora a nível académico, a partir de um grupo de investigadores que se dedicam à matéria.
Dizem-nos os estudos sobre a memória, serem necessárias três gerações para fazer a catarse das experiências traumáticas porque passámos. Foi assim com muitos dos sobreviventes do Holocausto, com os veteranos da Guerra do Vietnam ou, entre nós, com as vítimas do fascismo e os ex-combatentes da guerra colonial. Os (ex)desertores não são excepção.
É bom que, na próxima quinta-feira, durante o colóquio organizado pela Universidade Nova de Lisboa, a Faculdade de Ciências Sociais de Coimbra e a Associação de Exilados Portugueses na Europa, esta matéria seja abordada por aqueles que, através de novos dados, possam contribuir para lançar luz sobre um tema que continua tabu. Para que, desta forma, a Memória não se apague.   

3 comentários:

Carlos A. Augusto disse...

Um dos erros (talvez o maior) da Democracia foi, justamente, ter silenciado o que se passou durante os anos do regime fascista. Passaram entretanto mais de 40 anos e as novas gerações têm do regime que nos condicionou e ainda condiciona a vida a mesma ideia que têm dos frangos que comem: vêm do frigorífico.
Terá sido pudor, medo? Terá sido complexo por a Democracia não ter ainda hoje respondido totalmente às necessidades do Povo Português? Ou terá sido a ideia de que o fascismo poderia voltar e era melhor estar do lado dos antigos detentores do poder? O exercício do governo de Passos Coelho mostra-nos que o fascismo não acabou. Ensinar a Democracia às novas gerações, denunciar os crime do fascismo sem complexos é um dever de qualquer democrata. E tem de sair do território dos colóquios, entrar pela casa dentro das pessoas, pelas escolas! Sem medo!

rui mota disse...

São todos esses factores, sendo o mêdo (respeitinho, respeitinho...como dizia o O'Neill) o mais importante de todos. Por alguma razão, quem passou pelo estrangeiro e viveu em democracias consolidadas, está mais liberto dessas teias de aranha que bloquearam o pensamento em Portugal. Basta ler os comentários nos jornais e nos blogs, sobre esta matéria, para perceber até que ponto o fascismo não saiu de muitas (demasiadas) cabeças em Portugal. A corporação militar é um caso àparte, pois, antes de serem democratas ou conservadores, os militares são...militares! A "corporação" é mais forte do que a ideologia (ver o caso recente dos "comandos" mortos em exercícios). O próprio 25 de Abril tem na sua génese uma reivindicação corporativa e, só mais tarde, evoluiu para uma posição política anti-regime, é bom não esquecer. Os membros do MFA (Melo Antunes) que foram à Holanda explicar o 25 de Abril, não tinham posição sobre a questão dos desertores. Para eles, fazer "aquela tropa" era normal...Mas, sim, estas coisas têm de ser ensinadas nas escolas, de outra forma as novas gerações nunca compreenderão o que estava em jogo nessa época. Que tenha "começado" pelos académicos, não é mau em si. Tinha de começar por algum lado. Cada um dá o que pode. Com o sistema educacional que temos, se estes temas não constarem dos programas escolares, poucos são os professores que ousam sair do cânone obrigatório. Na Holanda, a Anne Frank é ensinada na escola. Foi, inclusive, feita uma versão curta do "Shoah" (Claude Lanzmann) para passar nos liceus. Enfim, a cidadania (em Portugal) ainda se encontra nos "sapatos de bébé"...

Carlos A. Augusto disse...

Não quero que o meu comentário possa ser mal interpretado. Claro que todos (todos!) os contributos são bem-vindos. Há gente que reflectiu como pôde e usando os meios que tinha. Que sejam, neste caso, os académicos é um magnífico sinal. Ainda há, pelos vistos, quem pense neste país. Lendo e ouvindo certas coisas, ficamos por vezes com a sensação que não, que o medo de pensar tinha já atingido outras camadas da noosfera...