2014/09/10

No maior parolo cai a nódoa

Há uma série de televisão, relativamente popular, chamada "A Teoria do Big Bang". Alguns dos que me lêem já a terão visto. Um dos personagens, o Sheldon, amesquinha sistematicamente um outro personagem, o Howard. Num episódio em particular, Howard, um engenheiro com um mestrado do MIT, pega-se com Sheldon, um doutorado em física teórica, detentor de um QI de 187, e desafia-o a elogiá-lo uma vez na vida.  "Diz-me, por uma vez, que sou bom naquilo que faço", exige-lhe. Sheldon, admirado mas aliviado, diz que não é problema. "Eu nunca disse que tu não és bom naquilo que fazes, o que fazes é que não é útil".
Vem isto a propósito de um programa da TVI24 — um programa de "referência", dizem de si próprios — a que ontem, por infeliz acaso, acabei por assistir. O tema interessava-me e fui ficando, apesar da presença dessa pestilência televisiva que dá pelo nome de Medina Carreira, cuja imagem, vá-se lá saber porquê, me causa brotoeja. António Coutinho, o investigador, fez neste caso de compère.
Entre o chorrilho de banalidades e de conceitos mal amanhados que, certamente por um qualquer fenómeno emético, foram sendo sucessivamente expelidos pelos intervenientes, houve um momento precioso, que ilustra bem o nível a que chegaram as ditas elites portuguesas, com o pivot a tentar colaborar, de forma patética, com os dois charlatães.
Deixo aqui a transcrição do tal momento. Procurei que fosse o mais fiel possível, mas quem tiver pachorra pode confirmar tudo aqui.
Falava-se, a dado momento, da evolução dos doutoramentos em Portugal nos últimos 12 anos. Via-se o gráfico que ilustra este post. Era o último de uma série deles com que estes gajos julgam ganhar credibilidade, crescia a expectativa, esperava-se a revelação final e depois, quem sabe, talvez o dilúvio ou mesmo o apocalipse.
AC - 37% de todos os doutorados nos últimos 12 anos são em ciências sociais e humanidades [afirma convicto]. Evidentemente que podem contribuir para o tecido produtivo, mas pouco...
MC - Mas isto o que é? É investigar... em sociologia?
AC - Eu não sei o que é xôtôr...
MC - Ah, não sabe...
AC - É sociologia. Alguns são economistas, provavelmente...
MC - 37%… [comenta, aparte, arvorando ar indignado, Carreira…]
AC - ... As ciências da educação, as ciências sociais, essas coisas...
Esperemos que não sejam o rigor e a isenção aqui demonstrados, os atributos que Coutinho coloca na sua actividade de investigação ou na condução das instituições por onde tem passado. De Medina não se pode esperar mais...
Sheldon teria certamente morrido de inveja ao dar conta deste rigor e isenção do iminente investigador do Karolinska, do Pasteur ou do IGC. Se o Sheldon tivesse ouvido Coutinho, não hesitaria, estou certo, em escrever ao Passos Coelho propondo-lhe a sua nomeação para ministro da blue skies science. Assim, em English e tudo...
Uma coisa é certa: o Sheldon tem infinitamente mais graça que o Coutinho.

9 comentários:

Tulip disse...

muito bom!

rui mota disse...

Eheh, as coisas que ando a perder...

Carlos A. Augusto disse...

Ó Rui, tu também és "dessas coisas". O Coutinho, ao que parece, tem frequentemente destas coisas. É genético, mesmo...

rui mota disse...

Pois sou. Estava a referir-me ao programa. Já há muito que deixei de ver o Medina. Mas, o paradigma está a mudar: com o Moedas como Comissário Europeu para a Investigação & Desenvolvimento (80 mil milhões de euros até 2020!)não vai faltar dinheiro para as ciências exactas...nessa altura é que vamos dar o salto quantitativo...

Carmo da Rosa disse...

Eu, graças à simpática descrição do Prof. Medina Carreira feita pelo autor do artigo, tive pachorra para ir confirmar.

E o Prof. Medina Carreira e o investigador António Coutinho confirmam o que eu, sem qualquer estudo científico, mas intuitivamente sempre pensei: em Portugal há doutores a mais e picheleiros a menos...

Mas a coisa é ainda mais grave, e isso eu não sabia. Pelos visto os doutorados têm uma especial predileção pelas ciências sociais (37% e só 2% em ciências agrárias), que são pouco produtivas e onde os resultados são frequentemente puramente subjectivos. Além disso, os doutores que fizeram esta escolha, podem passar a santa vida a enaltecer ideologias do século dezanove que não interessam nem ao Menino Jesus, mas que os faz passar por gente sensível e muito preocupada com a sorte dos outros - sucesso garantido...

Mas é precisamente por causa desta escolha, que o país importa tomates de Espanha e máquinas da Alemanha.

Carlos A. Augusto disse...

Carmo da Rosa: o que eu critico nesta minha observação é a falta de rigor. O meu post é sobre esse tema. Há uns a quem essa falta se perdoa. A si, por exemplo, eu perdoo. Há outros para quem a falta de rigor é, pelo percurso e pela responsabilidade dos cargos que ocuparam e ocupam, pelo que deve, à sociedade, um pecado mortal, apenas expiável (cada vez tenho menos dúvidas sobre isso!) levando o autor das inexactidões à fogueira e deixando-o a grelhar lentamente.
Um tão popular comentador de televisão, um tão prestigiado investigador, com uma carreira internacional invejável e um programa "de referência" deveriam ser rigorosos.
O que é que os portugueses ficarão a pensar dos doutores em ciências sociais e humanas? Temos mais uma divisão em Portugal, entre doutores em ciências sociais e em imunologia? Para além das que já existem entre velhos e novos, funcionários públicos e da privada, etc.?
É que há responsabilidades e responsabilidades.
O próprio prof. Coutinho fala na sua intervenção de investigação em comunicação, como exemplo da investigação dirigida que propõe. Em que é que ficamos?
Que é que você diria se eu me referisse aos seus produtores alemães de automóveis ou aos seareiros espanhóis como aquela gente que faz "essas coisas", automóveis e tomates?
Rigor, pensar bem, respeito, humildade, solidariedade, etc., são coisas que se aprendem e se cultivam, sejamos nós sociólogos ou seareiros.
De uma pessoa como o prof. Coutinho, com a responsabilidade que teve e tem, esperaria outro comportamento. Para tertúlia de café já basta aquela que frequento.
Afinal qual é a "produtividade" da imunologia? Qual o seu verdadeiro contributo para o "tecido produtivo" português que esta área de investigação tem, comparada com, por exemplo, o tomate da Guloso? Quais são as suas propostas nesta matéria?
O certo é que o povo português não consegue distinguir sociologia de arqueologia e a conversa do prof. Coutinho não ajuda. Mas, pior, não faz também ideia do que é imunologia e aí é ele que pode estar em questão.
Foi um mau serviço este o do prof. Coutinho. Com o rigor demonstrado neste pequeno episódio não espero nada dele e muito menos enquanto coordenador do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia...
É só isso, percebe?

Carmo da Rosa disse...

“O que é que os portugueses ficarão a pensar dos doutores em ciências sociais e humanas?”

Caro Carlos A. Augusto,

Antigamente não pensavam, apenas tiravam o chapéu quando se cruzavam, mas agora, como já não usam chapéu, pensam o mesmo que eu, que há doutores a mais e picheleiros a menos…. Não creio que haja nesta afirmação muita falta de rigor!

E também não creio que os fabricantes de automóveis alemães estejam à espera da sua aprovação, apenas querem vender carros nem que seja a doutores portugueses em ciências sociais. Estes, apesar de não terem a mínima ideia como resolver os problemas da nação, têm normalmente poder de compra e sabem muito bem distinguir a qualidade de fabrico…

Carlos A. Augusto disse...

Ficamos então assim...

Carmo da Rosa disse...

Ficamos assim!!!

Eh pá, poderia pelo menos agradecer o facto das minhas observações terem elevado a quantidade de comentários a um número record....