2008/12/31

2008, um ano para esquecer...

A menos de oito horas de terminar o ano, não acreditamos que algo de bom possa ainda acontecer em 2008. Pelo menos, algo sobre que valha a pena escrever.
A nível interno, pese a máquina propagandística do governo, Portugal continua a divergir da média do espaço europeu onde estamos inseridos, uma tendência que se verifica há oito anos a esta parte. Na educação (com professores desmotivados após um ano de confrontação intensa e com os piores indicadores no Pisa) os resultados são desastrosos; na saúde (ver os relatos diários sobre os atendimentos nas urgências portuguesas ou a lista de espera das operações) estamos ao nível dos anos noventa; na justiça (com processos que não terminam mais e onde as decisões continuam a favorecer os mais poderosos) a situação é de corrupção generalizada; nas finanças (onde Sócrates, sem melhores argumentos, continua a repetir à exaustão o controlo do "déficit") tudo parece congelado.
Agora, que a crise internacional nos bateu à porta, os seus efeitos sobre a economia real não deixarão de fazer sentir-se. Limitados no poder de compra, os portugueses consumirão menos, o que conduzirá a uma menor produção e inevitáveis ajustes. As empresas fecharão a um nível ainda mais acelerado e o número de desempregados crescerá a níveis impensáveis (fala-se em 10% da população activa, em 2009!). No campo social, os números não mentem: 350.000 pessoas dependentes do Banco Alimentar, 2 milhões a viverem no limiar da pobreza e mais de 450.000 desempregados. A emigração voltou a aumentar e, pela primeira vez em anos, o saldo migratório entre os que saem e os que entram é desfavorável a Portugal. Ou seja, o nosso país deixou de ser atraente para os imigrantes e os portugueses procuram, de novo, o estrangeiro para poderem sobreviver.
A desculpa da crise internacional, a mantra governamental para justificar todos os males, sendo real não é a única razão, até porque a crise portuguesa é muito anterior à crise financeira dos mercados internacionais. De facto, Portugal não produz riqueza e continua a endividar-se e esse é um fenómeno que atravessa vários governos e tem vários responsáveis. Começou com a fuga de Guterres, a que se seguiu a fuga de Barroso, o desastre de Santana e a incapacidade de Sócrates. Todos eles, em maior ou menor escala, contribuiram para este panorama desolador. Resta lembrar que, todos eles, pertencem aos partidos que desde 1976 nos têm governado: o PS e o PSD. É bom que os portugueses tenham memória e a usem nas eleições marcadas para 2009. Depois, não podem dizer que não sabiam...

2008/12/19

O Voto Moderado

O "partido popular" e "moderado de esquerda", que dá pelo nome de partido socialista, deu mais um passo na concentração do poder que, diariamente, vai tomando conta do nosso quotidiano.
Hoje, foi a vez do voto dos emigrantes que, pela primeira vez em 35 anos, não vão poder votar por correspondência nas próximas eleições legislativas em Portugal.
A que se deve tal medida, de resto não só apoiada pelo PS? A acreditar nos argumentos apresentados pelo governo, o método existente não era fiável, pois prestava-se a "fraudes" e "cartéis de voto".
Extraordinário argumento de um partido que esteve em metade dos governos que Portugal leva em democracia e que, até hoje, nunca se tinha lembrado de tal coisa.
Vivi 30 anos no estrangeiro e votei, entre 1975 e 1995, sempre por correspondência. Tudo muito simples: recebia o voto por carta, assinalava o partido de preferência e voltava a enviar o voto, num envelope previamente preenchido, por carta registada. Isto tudo, antes do dia das eleições. A prova era feita pelo registo e pelo carimbo dos correios no envelope.
Entretanto, o tempo passou e os votos dos emigrantes começaram a mostrar uma constante, expressa na maioria de deputados eleitos pelo PSD. Num total de 4 deputados, eleitos pela emigração, 3 são normalmente do Partido Social Democrata.
Determinado a mudar tal tendência, que pode ser importante para obter uma segunda maioria parlamentar, o PS começou por eliminar grande parte dos consulados portugueses no estrangeiro. Desta forma, afastava os emigrantes do lugar de voto.
Agora mudou a lei. Como é evidente, a participação dos emigrantes, que já era baixa, vai diminuir ainda mais. Quem é que está para percorrer centenas de quilómetros para poder votar no consulado mais próximo? Ninguém, como é óbvio. De um partido que se diz "popular" e "moderado" que mais podíamos esperar?

Hotel Jerónimos

No meio da catadupa de notícias, ultimamente vindas a lume sobre a insanidade de quem nos governa, aquela sobre o novo regime proposto para os bens públicos é demasiado surrealista para poder ser levada a sério. E, no entanto, o texto é de tal forma abrangente que, segundo diversos especialistas, até a Torre de Belém poderá ser um dia ser posta à venda...
Esta é, de resto, a opinião das 21 associações que fazem parte da Plataforma pelo Património Cultural, a qual publicou já um documento a exigir a suspensão imediata deste processo legislativo. No mesmo sentido, pronunciaram-se especialistas na matéria, como a jurista Maria João Silva (no "Público") que chama a atenção para o texto desta proposta governamental, onde são apenas considerados de domínio público "os bens culturais imóveis que sejam simultaneamente monumentos nacionais e propriedade do estado" podendo estes ser "objecto de uso privativo" para além da "venda e oneração pelas vias do direito privado".
A ser aprovado o projecto-lei, qualquer monumento classificado - da Torre de Belém aos Jerónimos - passaria assim a estar abrangido por este decreto e, nesse sentido, disponível para aluguer, ou mesmo venda a privados (?!). De resto, a jurista citada, dá o exemplo do Mosteiro de Alcobaça, para o qual existe há anos um hotel de charme projectado.
Começamos agora a entender melhor as palavras do Ministro de Cultura, aquando da sua tomada de posse ("fazer mais com menos", disse ele), num ano em que o orçamento do ministério foi reduzido a metade e não ultrapassa hoje os 0,2% do OE. Só um advogado podia pensar em tal receita milagrosa. De facto, porque não alugar os Jerónimos a uma empresa de "catering"? Sempre é uma forma de combater a crise...

2008/12/13

A Eminência Parda

Na opinião do presidente do PS, o venerando Dr. Almeida Santos, os deputados portugueses são mal pagos. Essa será a razão pela qual se verifica tantas vezes falta de "quorum" no nosso parlamento. Na semana passada, foram os deputados do PSD no hemiciclo; esta semana, os deputados do PS, numa comissão parlamentar.
De acordo com esta "eminência parda", é impossível a um deputado (advogado) estar em dois lugares ao mesmo tempo (!?). Se o advogado (deputado) tiver de comparecer num julgamento, não pode assistir às sessões do parlamento.
A acrescentar a esta situação, que ele (como advogado) compreende muito bem, as votações são sempre às sextas-feiras. Ora, como se sabe (piscadela de olho aos jornalistas) a sexta-feira antecede o fim-de-semana, pelo que muita gente parte mais cedo para fora da cidade... Talvez, mudando o dia das votações para o meio da semana, concluía ele perante uma plateia de jornalistas embasbacados com tal "clarividência".
E eu a pensar que a função de deputado implicava incompatibilidade com funções extra-parlamentares. Decididamente, Almeida Santos é um sábio...

2008/12/11

O muro de Berlim afinal ainda não caíu

As propostas para a nova Lei da Defesa e Orgânica das Forças Armadas e para o novo RDM foram dadas a conhecer aos partidos parlamentares pelo Ministro da Defesa. Assunto de Estado, as duas primeiras leis constituem até matéria que requer votação na AR por maioria qualificada. 
Vai daí o ministro trata logo de "qualificar". As propostas foram entregues apenas a três dos partidos com assento parlamentar e foram-no nas sedes desses partidos e não através dos mecanismos de relação entre o Governo e o Parlamento que certamente existem. Podem-me ter escapado, mas certamente existem. 
Esta actuação faz-nos recuar a tempos de antanho, quando a democracia era uma palavra proibida. Também nos diz muito sobre o modo de actuação do PS, como entende o exercício do poder e da sua noção de respeito pelas outras forças políticas.
Claro que os partidos assim distinguidos devem aplaudir a iniciativa. O líder do CDS acha mesmo normal que assuntos de defesa nacional sejam apenas do conhecimento dos partidos que "defendem a Nato"... Ou seja: os assuntos de defesa nacional são, para este cavalheiro, matéria exclusiva de discussão para internacionalistas... 
A mim, parece-me inacreditável que uma coisa destas suceda em Portugal
Mal faz o ministro em proceder deste modo discriminatório. Um membro do Governo Português tem obrigação estricta de ser um pedagogo da democracia. Uma actuação deste tipo é anti-democrática e só serve, na minha opinião, para desprestigiar (ainda mais!) as instituições de Estado aos olhos dos cidadãos. 
Este critério do governo suscita-me algumas interrogações... Será que a filiação partidária é também critério de avaliação para efeitos de envio dos militares portugueses em missões para o estrangeiro? Será que só os militares simpatizantes ou filiados no PS, PSD e CDS é que são enviados para o Afeganistão, para a Bósnia ou para outras missões já que merecem maior confiança? E será que o "estatuto" do militar português tem matizes conforme a cor partidária? Ou será que o ministro afinal enviou as propostas de lei apenas aos partidos cujos membros estão envolvidos nos casos de falta de assiduidade no Parlamento, na esperança de que também não esteja ninguém nas respectivas sedes e os diplomas passem, sem discussão e com voto tácito, por causa da distinção de que foram alvo? 
A questão aqui em causa não é de natureza partidária. É de Estado e de respeito pelos cidadãos. A matéria em causa é de interesse nacional, não partidário. E se um eventual ministro de um dos partidos agora excluídos do privilégio de que foram alvo o PSD e o CDS lhes fizesse o mesmo eu também não acharia isso normal. Não me parece haver uma diferença qualitativa, assim tão grande, entre o comportamento do Ministro da Defesa de Portugal e o Presidente do Governo Regional da Madeira. 
Tudo isto revela apenas, numa primeira análise, que o défice democrático não chegou só à Madeira e que os muros caíram do outro lado, mas deste lado continuam...

2008/12/08

A Galiza, aqui ao lado...

Convidado para participar num painel sobre parcerias musicais no âmbito da Lusofonia, passei três dias na vizinha Galiza, mais exactamente na Coruña, onde decorreu a Segunda Edição da "Cultur.Gal", a Feira Galega das Industrias Culturais.
Tinha estado na Coruña pela primeira e última vez, em Agosto de 1990, aquando de uma viagem entre Amsterdão e Lisboa pensada a partir do trajecto de automóvel pelo "Caminho de Santiago". Da "peregrinação" de então, guardava a melhor das memórias, mas de La Coruña, não mais do que uma vaga ideia...
Foi, pois, com alguma reserva mental que me fiz à "estrada", desta vez de avião, um bimotor a hélice que em menos de hora e meia me transportou à capital industrial da Galiza.
Desde logo, a surpresa pelo desenvolvimento verificado, numa região que passa por ser a menos desenvolvida da vizinha Espanha. O agrado, seria no dia seguinte confirmado pelo novo Centro de Congressos Palexco, recentemente construído e que já ganhou o prémio do melhor do género em toda a Espanha. Um CCB à escala local, onde durante quatro dias, cerca de 80 organismos culturais galegos marcaram encontro naquela que é a maior Mostra Cultural da região. Dos editores e livreiros regionais, aos tradutores e à literatura infantil (um verdadeiro mundo!), das agências de produção artística e bandas musicais ao mundo do cinema (sim, o cinema galego existe) o "Palexco" encheu-se durante o fim-de-semana de um público ávido que procurava a informação disponível nas dezenas de "stands", conferências e "showcases" possíveis de acompanhar em todo o edifício.
O nosso painel, organizado pela Associação Galega de Empresas Musicais (AGEM), contou com a moderação de Xabier Alonso e a participação de Vitor de Miranda (Contato) e Makely Gomes (Comum), dois brasileiros de Minas Gerais, com quem partilhámos ideias e projectos futuros a organizar no quadro da cooperação e intercâmbio lusófono. Para já a música, mas o espaço de cooperação pode estender-se a outras áreas, como a literatura ou o cinema. Deste interesse comum, nasceu a primeira proposta concreta, a realizar em Belo Horizonte no próximo mês de Setembro e que incidirá sobre a Cultura galega. Depois da Galiza, que nos acolheu, e do Brasil, que nos acolherá, restará a Portugal fechar o primeiro ciclo de cooperação lusófono que promete animar as próximas discussões deste fórum transatlântico.
Não será fácil, no entanto. As conversas que fomos mantendo com os nossos anfitriões deram para entender que nem os galegos, que gostam de nós, compreendem o desencanto deste lado da fronteira. Todos, sem excepção, lamentavam a fraca cooperação e a burocracia mascarada de silêncios evasivos que recebem os seus pedidos. Como aquele produtor de filmes que tenta há anos, ingloriamente, fazer uma Mostra de Cine Galego em Portugal, para a qual dispõe de 400.000 euros do seu governo regional. Pesem as promessas do parceiro lusitano, nada acontece em Portugal. A desculpa do parceiro português é sempre o nosso Ministério (da Cultura) que estará a analisar o pedido. Como, entretanto, a ministra que iniciou o processo foi exonerada e há outro ministro no seu lugar, o pedido voltou à "estaca zero". O Galego desespera e olha para mim desesperado: "que se passa com vocês, portugueses, que nem às minhas cartas respondem?". Por um momento, sinto-me o "culpado" de todos os males que afligem a nação lusa. Também eu sou um estrangeirado e, como ele, não percebo esta mentalidade tacanha que nos castra há séculos.
Na viagem de regresso, constato que sou o único passageiro do bimotor português. De facto, quem quer viajar para este lado da fronteira? Penso nos últimos dias passados em terras de fraternidade e em Xabier, casado com uma portuguesa, que me confidencia ser em Portugal que tem o seu retiro espiritual. Sempre que está "em baixo", faz uma cura portuguesa. Proponho-me trocar com ele. Quem sabe, podíamos resolver desta forma a nossa inquietação.
À noite, no nosso CCB, enquanto Amélia Muge canta "Eu levo una pena" de Rosalia de Castro, confirmo que a língua continua a ser a nossa pátria comum. Por momentos, "volto" à Galiza. Se calhar, nunca de lá saí...

2008/12/04

Quem é que vai nu?

Um artigo intitulado "A ciência económica vai nua?" de autoria de João Ferreira do Amaral, Manuel Branco, Sandro Mendonça, Carlos Pimenta e José Reis, publicado pelo Público merece alguma reflexão.
Neste artigo, os seus autores --todos eles distintos professores universitários-- traçam os limites da teoria económica dominante, atribuem-lhe a origem da presente crise que o mundo atravessa, e postulam que a teoria capaz será aquela que consiga estabelecer uma ponte entre o económico e o institucional, o político o social e o psicológico.
Os autores consideram que "o ensino [da economia] dominante não tem municiado os estudantes para conhecerem o mundo real e para o interpretarem, para saberem que comportamentos emergem, que sistemas institucionais se confrontam, que valores estão em crise e quais os que se reforçam." Tem sido desta matriz que tem saído "uma boa parte dos operadores dos mercados financeiros e gestores de topo que lentamente acumularam decisões insustentáveis culminando na actual crise." E, concluem os autores, "dificilmente o ensino da Economia e da Gestão não estará implicado nas causas da crise." 
Não posso estar mais de acordo. E considero saudável que estes autores coloquem agora estas dúvidas e reclamem a "necessidade de responsabilidade e realismo crítico no ensino das Ciências Económicas e Empresariais." 
Mas, pergunto: quem ou o que permitiu chegar a esta situação? Não são os professores responsáveis --por acção ou omissão-- pelo ensino que ministram? Não são eles, simultaneamente, tantas vezes os orientadores, as referências, a inspiração ou mesmo os executantes dos postulados que conduziram às tendências políticas que, por sua vez, levaram à crise de hoje? Quem está por trás da teoria tóxica? 
E, pergunto finalmente: pensarão as cabeças brilhantes da economia que nós --os "civis" que vivemos fora desse tal universo das "deduções lógico-matemáticas"-- nos deixámos alguma vez enganar? Que o rendilhado do seu discurso alguma vez nos convenceu ou deixou sequer a convicção de um desfecho diferente deste que tivemos? Que não achámos sempre que eram, no fundo, os "cientistas" económicos que iam nus?

Demagogia ilimitada

A fazer a mala para mais uma viagem, leio as últimas num matutino de hoje. De acordo com o "engenheiro" Sócrates a crise em Portugal é, afinal, relativa.
E isto porque a taxa euribor está a descer, o que vai permitir às famílias portuguesas pagar menos pela sua hipoteca; o preço do petróleo continua em queda, o que vai permitir poupar nos transportes; e o aumento salarial dos funcionários públicos será o maior dos últimos oito anos, o que vai compensar a actual inflação...
Nada mau! Até parece que isto são todas medidas do primeiro-ministro.
Então, as taxas euribor e as taxas de juro, não são determinadas pelo Banco Central Europeu? E o preço do barril de petróleo, não é resultado dos preços estabelecidos no mercado internacional? E o aumento dos funcionários públicos (2,9%) não fica abaixo da inflação prevista (3,5%)? Onde é que está reposto o seu poder de compra?
Não fora o meu proverbial pessimismo em relação à demagogia deste governo e partiria mais satisfeito para a vizinha Galiza. Como se trata de mais uma mentira, a minha única satisfação reside no facto de levantar voo daqui a algumas horas...

2008/12/03

O que estará a acontecer na polícia portuguesa?

Desde há algum tempo a esta parte temos vindo a ouvir comentários sobre o aumento de suicídios nas forças policiais. Sei que já por diversas vezes o tema foi tratado, designadamente na TSF que entrevistou psicólogos que trabalham para os sindicatos e para as próprias instituições do sector. O panorama que nos é traçado por esses técnicos é arrepiante. A fazer fé no que dizem, parece que há uma situação de calamidade na polícia, e que a sociedade no seu conjunto ignora o que se está a passar. 
Mas, há também qualquer coisa de estranho nisto tudo. 

Pelo que se percebe, a questão central residirá na falta de condições mínimas de sobrevivência e de trabalho dos profissionais de polícia.  Baixos salários, horários exigentes, falta de meios e afastamento da família serão os factores que conduziram ao actual estado de coisas. Este conjunto de factores leva os polícias a enveredar, nos casos mais extremos, pela via do suicídio, mas normalmente será suficientemente expressivo para que se verifique um aumento significativo das consultas de apoio --fala-se de centenas de consultas!-- que revelam problemas graves de saúde resultantes das carências alimentares, depressões e até casos de alcoolismo.
 
Não se percebe se a possibilidade de ocorrência destes factores terá sido deliberadamente ocultada antes dos polícias escolheram a sua futura profissão, ou se se revelaram apenas depois de entrarem em funções. Não se percebe também se, no caso de serem do conhecimento prévio dos aspirantes a polícia, houve alguma condição do seu contrato ou do seu compromisso de trabalho que lhes tenha sido ocultada e posteriormente imposta.
Em todo o caso, o panorama, repito, que nos é descrito é de verdadeira catastrófe!
Tendo em conta a importância que uma força policial competente e dotada de condições de actuação tem, parece estranho que tudo isto se esteja a passar hoje em Portugal, sem que a generalidade da população disso se aperceba e sem que os responsáveis tomem medidas, ou falem sequer do assunto. É estranho que a AR não tenha nunca discutido o tema. É estranho que não tenham sido solicitadas pelos deputados explicações ao Ministro da Administração Interna. Os factos descritos nas entrevistas mencionadas não foram desmentidos. Há até um livro publicado sobre este tema que teve no seu lançamento a presença de figuras responsáveis. 
Por outro lado, é estranho que se imponha a uma classe profissional um esquema quase esclavagista de trabalho... mas pode acontecer. Em Portugal o impensável acontece. Lembro-me de há uns tempos ter visto uma reportagem sobre um professor (que dia para recordar isto, hein...?) que vivia no carro porque estava deslocado e não tinha dinheiro para pagar um quarto. Um professor a quem a hierarquia respectiva e os encarregados de educação pediriam por certo, legitimamente, uma actuação do mais alto gabarito. Um caso, certamente, não único. 
Se o panorama da polícia é este, as cerca de 23.000 (vinte e três mil!!) famílias cujas casas foram assaltadas neste último ano (só para mencionar este tipo de criminalidade, objecto recente de uma outra reportagem de um canal de televisão) não poderão certamente esperar uma prevenção adequada e uma actuação empenhada e qualificada por parte da polícia, ocupada que está agora com os seus próprios problemas de saúde mental. O que torna tudo isto ainda mais insustentável. É que os psicólogos falam também de efeitos devastadores nas vítimas deste tipo de assaltos...
Polícia deprimida, vítimas de crimes deprimidas... O que se passa? 
Quer-me parecer que todo este assunto merece atenção ao mais alto nível e explicações urgentes...

2008/11/25

Uma questão de espessura

Não há actos gratuitos em política. E como sabemos da história, as coisas por vezes podem não querer dizer o que parece. O comunicado do PR, esse, está cheio de significados. Pelo que diz, mas sobretudo pelo que não diz. A pressa com que Cavaco Silva saíu a "esclarecer-nos" que nada o liga ao BPN pode ser interpretada de diversas formas. Podemos entendê-la como uma tentativa de cortar um mal pela raiz, neste país de "campanhas". A reacção de uma pessoa simples e directa que se sente. Mas também poderia ser entendida --se fossemos mauzinhos...-- como uma tentativa de levar a opinião pública a esquecer que no caso BPN estamos perante gente do universo político do PR, que com ele colaborou intimamente e que se limita a seguir um padrão que floresceu de forma particularmente exuberante na sociedade portuguesa durante o seu consulado como primeiro ministro. Uma outra leitura também possível da actuação do PR, sugere que este se colocou ao nível do pior que a sociedade portuguesa pode produzir, de modo passivo e submisso. Se ele tem medo das "campanhas", que será de nós, pobres pagadores de impostos?
Em todo o caso, falta a tudo isto espessura. Os padrões da causa pública e o sentido de Estado que sentimos escorrerem de toda esta trapalhada são inaceitavelmente fininhos e quebradiços...

2008/11/23

Justa Causa

Corre na Net uma petição de apoio a Joana Varela, directora da revista "Colóquio-Letras" editada pela Gulbenkian. Varela encontra-se suspensa de funções, por alegadas críticas à política cultural da Fundação, o que lhe valeu um processo disciplinar e poderá conduzir a um eventual despedimento por "justa causa".
A "justa causa" é, em última análise, sempre "justa" na perspectiva do "justiceiro". Pensar que a nossa causa é mais justa, porque é fundamentada na razão que assiste os mais prejudicados por esta medida administrativa (mesmo quando moralmente defensável) é juridicamente difícil de defender.
Sei do que falo. Eu próprio fui suspenso de funções numa instituição para-estatal ao abrigo dessa figura de estilo chamada "justa causa" e, finalmente, exonerado depois de seis meses de "inquérito".
O "inquérito" é outra figura de estilo que tem como fim último justificar a medida previamente tomada. É da lei.
Num país arcaico e de tiques autoritários como Portugal, a tentação da punição está nos genes dos modernos inquisidores: seja o poder do estado, seja o das entidades privadas. Ousar discutir a autoridade é, ainda, pecado capital numa sociedade clientelar e subserviente como a portuguesa, onde as pessoas se habituaram a "comer e calar".
No outro lado do "spectrum", o medo e a crónica falta de meios (leia-se financeiros e/ou influência) contribuem para este lodaçal de hipocrisia. Está tudo no livro do José Gil (Portugal hoje:o medo de existir) e ignorá-lo pode trazer-nos grandes dissabores e desilusões.
Hoje foi a Joana do "Colóquio", ontem fui eu, amanhã serão outras as vítimas de uma razão sempre superior que nos corredores da perfídia e do léxico jurista determinam a causa "justa".
Não conheço (a não ser de nome) a directora do "Colóquio", revista que aprendi a ler nos idos anos setenta. Tenho por isso a maior admiração pelo seu trabalho.
Que mais posso dizer? Sim, estou solidário com a injustiça praticada. Porque é disso, certamente, que se trata. Mas, surpreendido? Não, não posso afirmar que o esteja.

2008/11/22

A casa de espelhos

O caso BPN parece ser uma daquelas casas de espelhos onde as imagens estão sujeitas a múltiplos reflexos que criam ilusões ópticas e perturbam a percepção da realidade. Cada nova revelação, cada nova entrevista fazem surgir fragmentos de uma realidade dispersa, que nos confunde e nos suscita cada vez mais dúvidas.
Ainda um dia (esperemos que um dia destes...) a história do que foi o período cavaquista e pós-cavaquista nos terá de ser contada com grande detalhe. E ainda um dia precisamos de unir os pontos dispersos desta teia política que se foi gerando desde então.
Pelo que se vai percebendo, parece certo que se trata de um dos períodos mais sórdidos da nossa história. A gente tinha essa percepção na altura, mas parece que a coisa ultrapassou e ultrapassa a nossa imaginação. Não me estou a referir apenas aos aspectos políticos mais gritantes, nem aos inacreditáveis percursos pessoais de alguns dos personagens que saíram daquela matriz. Falo também do que se adivinha que seria o conceito de democracia --o mais íntimo e o mais sincero-- de algumas das personagens que ocuparam então cargos de relevância no seio do regime cavaquista e que continuam na cena política.
Esperemos, contudo, que esta história passada nos seja contada por alguém credível. Com ética.

2008/11/21

Falta o cheque-mate

A derrota do governo no caso da avaliação dos professores é notória. "Tenho de reconhecer que a forma como estávamos a concretizar a dimensão relativa aos resultados escolares não era confortável, nem razoável, mas excessiva, desajustada e com erros técnicos," disse a ministra. Estas apreciações vêm dar total razão aos professores. Não há outra interpretação possível para elas. E, neste sentido, independentemente das correcções que foram anunciadas e da vontade do governo em prosseguir com esta avaliação, o passo atrás constitui uma clara derrota política para a ministra.
Foi dado um estrondoso "cheque" ao governo nesta partida que disputa com os professores. Será talvez a primeira vez que o governo sai claramente ferido de um confronto que gerou.
Mas, para que o cheque seja "mate", agora, mais do que nunca, é preciso que os professores não se deixem cair na tentação de levar esta disputa para o terreno político. Se o fizerem serão derrotados sem piedade porque, primeiro, não é o seu terreno de actuação e, segundo, porque o primeiro ministro se move nele como peixe na água. Se o confronto for levado para o terreno de eleição do primeiro ministro, nem a alma se se lhes aproveita. Se mantiverem a discussão dentro de parâmetros apropriados a probabilidade de sucesso é elevada. O que não deixará de ter consequências... políticas.
No meio disto tudo, nós os observadores "civis" de toda esta disputa, continuamos à espera de uma palavra dos "agentes educativos" sobre duas questões essenciais: a qualidade do ensino e os interesses dos alunos. Quando tiverem um minuto vejam lá se pensam nestes assuntos...

2008/11/18

Seis meses

Seis meses é o tempo que a líder do PSD sugeriu hoje para um intervalo na democracia, a fim de pôr as coisas na ordem... Há seis meses nem o ex-ministro Mira Amaral imaginava, quando afirmou que Ferreira Leite era um "regresso ao passado", que o seu conceito de "passado" estaria afinal a pecar por defeito... Por este andar, nem seis meses restarão à senhora no cargo que ocupa.
Imaginam-se as conversas que a doutora Ferreira Leite terá tido com o Presidente da República quando era visita de casa...

2008/11/11

Está provado: chegámos à Madeira!

Ouvimos hoje Miguel Mendonça, o Presidente da Assembleia Legislativa da Madeira, dizer que ia pressionar o Presidente da República no sentido de ser criada uma lei que lhe permita, a ele ou a quem o vier a substituir, suspender um deputado das suas funções.
Creio que este será mais uma daqueles casos --com que, volta não volta, a Madeira nos decide brindar-- que irá passar sem ser objecto de qualquer reacção por parte dos responsáveis deste país. No entanto, trata-se de uma declaração que me parece ser bastante grave. O Presidente da ALM admite que cometeu uma ilegalidade. O Presidente da ALM confessa que irá "pressionar" um orgão de soberania (que, por acaso, até nem tem poder de iniciativa nesta matéria). O Presidente da ALM pretende a criação de uma lei que lhe dê prerrogativas especiais. Mendonça acha que o seu cargo confere impunidade total para dizer o que lhe apetece. Mas, não reconhece ipso facto essa faculdade aos outros parceiros do jogo. Mendonça cometeu, ele sim, uma ilegalidade explícita, mas diz que dorme tranquilo e que vai pressionar...
Lê-se e não se acredita. Tudo isto se passa no ano de graça de 2008, debaixo mesmo dos nossos olhos e nas barbas do poder! Quem, de boa fé, poderia agora condenar o deputado José Manuel Coelho? Como irão reagir os poderes com capacidade para intervir neste caso a esta ilegalidade cometida pelo Presidente da ALM? Que "novo estilo" pode este tipo de actuação inaugurar?

A síndrome da bola de berlim

Ricardo Costa escreveu no Diário Económico que em Portugal é mais simples conduzir um banco à insolvência, "do que vender uma bola de berlim na praia." Este comentário, dolorosamente verdadeiro, refere-se a um dos desportos a que os portugueses se dedicam com mais gosto: a contradição.
A síndrome da bola de berlim está por todo o lado. O Estado é o agente principal da sua disseminação.
Vejam lá se não é a volúpia da contradição que atrai uma Autoridade Marítima do Sul quando "ataca" o problema das massagens nas praias algarvias como se da causa maior da civilização humana se tratasse. Ou quando a ASAE avança com uma determinação e uma ferocidade verdadeiramente extraordinárias, apreendendo galheteiros, queijos frescos e alheiras. Ou ainda quando as Finanças, usando uma agressividade digna de um camisa castanha, penhoram sem contemplações e em prazo recorde um cidadão que não pagou 50 ou 60 euros.
Vejam lá se não é apenas por contradição que assistimos à actuação feroz desses organismos de Estado, por um lado, quando, por outro, verificamos que por deficiências na instrução dos processos, casos provados, gravíssimos, de prevaricação da Lei têm desfechos verdadeiramente caricatos, como aconteceu recentemente lá para o norte. Ou quando verificamos um inexplicável arrastamento no tempo da intervenção em processos como os do BCP ou do BPN. Ou quando vemos o mais alto magistrado da Nação declarar, sem corar, que aprovou a publicação da nacionalização do BPN "para salvaguardar os depositantes e assegurar o normal funcionamento das instituições financeiras", agora, de afogadilho, depois de anos de consabido funcionamento anormal dessa mesma instituição. Quando é que deixou então de haver vontade para manter o "normal" funcionamento das instituições financeiras e defender os depositantes?
Digam lá se não é por uma uma fé inabalável no princípio da contradição que se baixam as magras regalias de quem trabalha ou se regateia a ajuda mínima aos mais carenciados, mas se encontra dinheiro para compensar --perdão, garantir o normal funcionamento dos bancos que se meteram em apertos. Só faltava mesmo esta: serem os cidadãos a garantir com os seus impostos a credibilidade perdida dos bancos onde têm os seus depósitos... Deve ser isto o capitalismo popular!
E digam lá se não é esta síndrome da bola de berlim que leva determinados sectores da sociedade, civil e religiosa, a derramar lágrimas de crocodilo perante a pobreza galopante, ou a soar alarmes hipócritas por causa dos casos de endividamento "das famílias", depois de anos e anos a cultivar o efémero e a fazer vista grossa à publicidade escandalosa --onde se inclui a publicidade feita por esses mesmos bancos que agora necessitam do dinheiro dos nossos impostos para sobreviver--, destinada justamente a impingir às famílias as ferramentas do seu próprio endividamento.
Gostaria de ver menos fundamentalismo na actuação de certos falsos defensores da virtude pública, mais "tomates" no ataque aos verdadeiros problemas do país, mais determinação na punição dos verdadeiros autores dos erros que prejudicam a nossa vida colectiva e uma maior elevação dos padrões que regem as decisões políticas e a actuação dos responsáveis. E gostaria de ver a erradicação, pelo menos parcial, deste desporto que se joga entre nós com uma bola de berlim. Assim, não!

"Não" é não!

Aproximam-se as eleições europeias e os principais líderes europeus - Sarkozy e Barroso à cabeça - começam a mostrar-se impacientes. A menos de um ano da data prevista e na impossibilidade de aplicar as directrizes do "Tratado de Lisboa", devido ao "não" irlandês, veio agora o presidente francês sugerir uma solução para o impasse que não lembrava ao careca: a Irlanda deve alterar a sua Constituição, de forma a poder referendar o Tratado antes das eleições, única forma de poder pô-lo em prática em tempo útil.
Lê-se e não se acredita.
Alguém em consciência imagina o governo irlandês a claudicar perante a arrogância francesa e a exigir aos seus cidadãos que voltem às urnas e a votarem as vezes que forem precisas até obterem o almejado "sim"? Obviamente que não.
Nenhum povo do Mundo, educado na tradição democrática e em plena consciência dos seus actos, aceitaria tal humilhação.
É isso que esperamos que os irlandeses respondam a Sarkozy: "não" à alteração da sua Constituição que permita a alteração do resultado do referendo que disse "não" ao "Tratado de Lisboa".
O "Tratado de Lisboa" está morto e enterrado e é bom que o directório europeu perceba isso e respeite a opinião democrática dos seus membros, de acordo, aliás, com os próprios princípios consignados na Carta Europeia. É tempo dos cidadãos europeus recusarem o centralismo administrativo de Bruxelas, que impediu a maior parte dos países membros de referendar o Tratado. Não bastava já o "déficit democrático" português (que proibiu referendar o Tratado) e ainda tínhamos de aturar a ingerência francesa nos assuntos internos de um país democrático. Basta já!

2008/11/06

Missile, anyone...?

No exacto dia em que Obama festejava a sua inequívoca vitória, surge uma visão fugaz do que vai ser o futuro real. A dupla Putin-Medvedev --um adversário mais duro de roer do que foi a dupla McCain-Palin-- anuncia, sem cerimónias, a instalação de mísseis em Kalininegrado, bem junto à fronteira polaca.
Terá sido decerto o "telegrama de felicitações" mais expressivo que Obama recebeu...
Tudo isto parece tirado de um filme antigo, baseado num qualquer livro de John Le Carré. Mas, não nos iludamos, esta novela é real.
A Rússia parece apostada em seguir a doutrina Bush, mas com um Bush a sério, agora que o ainda inquilino da Casa Branca se prepara para voltar a casa, fechando as malas e metendo o Scottish Terrier na carrinha. Já noutras ocasiões tivemos ocasião de assistir a ensaios desta peça e observar o desempenho russo...
Vamos ver como é que o Presidente Obama irá lidar com esta matéria. A Rússia, mesmo com a sua rendição aos encantos do capitalismo, parece totalmente insensível (tanto no plano cultural, como no económico) aos apelos ao ressurgimento do "American dream" do novo presidente e mostra-se apostada em baralhar as contas dos que acreditam num futuro mais calmo.
Vejamos se os russos não estão persuadidos do mesmo que Obama e os seus seguidores: "yes we can!"

2008/11/05

Obama

Ainda que a eleição de Barak Obama não tivesse constituido propriamente uma surpresa - afinal, todas as projecções lhe eram favoráveis - o modo como obteve esta vitória (estavam contados pouco mais de metade dos votos) é, em si, um facto histórico.
O Mundo está perante um acontecimento impar na história da nação mais poderosa do Mundo onde, pela primeira vez, um cidadão negro chega à "Casa Branca" em Washington.
Os números não enganam: com 338 grandes eleitores escolhidos (53%) contra 163 de McCain (47%), quando ainda decorre o escrutínio na Costa Oeste americana, os 270 lugares necessários para a sua eleição foram amplamente ultrapassados.
Esta é a vitória de uma candidatura que, desde o início, teve a oposição de parte significativa do próprio partido onde, entre outros, se reviam os apoiantes de Hillary. Essa foi, de resto, a sua prova de fogo e é nas "primárias" democratas que devemos procurar a explicação desta imparável dinâmica que terminaria já madrugada alta em Chicago.
Muitos foram (e são) aqueles que acusaram Obama de ter pouca experiência, ser vago nas intenções e ter um discurso redondo que diz tudo e o seu contrário. É provável. Conceitos como "change", "hope" e "yes, we can" não chegam para mudar a América, muito menos o Mundo. Mas, como dizia alguém esta semana a um observador da realidade americana, "tudo isso pode ser verdade, mas só o saberemos se ele for eleito. Primeiro temos de elegê-lo e depois podemos julgá-lo". Haja esperança.

2008/11/03

Magia Sevilhana

Não sei se Sevilha tem mais encanto na hora da despedida, mas a última WOMEX ali realizada será, certamente, lembrada como a feira onde esteve presente a maior representação portuguesa de sempre e a edição onde Camané foi responsável por um dos concertos mais apreciados do certame.
Seleccionado por um juri internacional, que reuniu em Berlim no passado mês de Maio, a actuação do fadista português não era de todo isenta de riscos. Desde logo, porque não possui o carisma das "divas" que o antecederam e, depois, porque em apenas 40 minutos, muita coisa pode correr mal. Juntem-se os nomes sonantes que tinham precedido o cantor português no palco do Teatro Lope de Vega, desde o Flamenco Miguel Poveda (Espanha) ao mago do cimbalon Kalman Balogh (Hungria), passando pelos fabulosos "La Filleta" (Córsega) ou o projecto Mike Marshal + Vasen (USA/Suécia) e pode imaginar-se a tarefa. Mas o "principe" do fado saiu-se bem e as pessoas que, pouco a pouco, foram enchendo a sala do prestigioso teatro, acabaram por ficar rendidas à intensidade da arte transmitida por Camané. Uma emoção que, no dia seguinte, ainda era comentada pelos delegados na Feira, surpreendidos por verem um homem cantar o fado melhor que muitas mulheres...
Depois, a WOMEX propriamente dita. No mais importante certame de "WorldMusic" estiveram presentes 2800 delegados que, durante quatro dias, circularam por entre os dois pavilhões do Centro de Exposições FIBES, onde em permanência estavam 320 "stands" (record absoluto) representando 650 companhias de produtores, agentes, empresários, editores e artistas. De Portugal, destaque para a Associação MUSICA PT, uma organização "chapéu-de-chuva" que congrega já 17 empresas e 5 associados individuais, naquela que foi a maior e mais bem sucedida apresentação lusa na história da feira.
Sábado à noite, foi dia de saída ao "tablao" mais famoso da cidade, "Los Gallos", para apreciar a arte de Choni, uma das muitas bailadoras da dança Flamenca presente em Sevilha. E como se dança bem em "Los Gallos"!
No último dia (ontem) tempo ainda para assistir à entrega dos prémios WOMEX 2008, desta vez autorgados à Academia Sibelius da Helsinquia (Finlândia) pelo seu trabalho em prol da música tradicional e ao grupo Muzsikás (Hungria) pelos seus 35 anos de carreira. Não faltou o concerto final, a provar que os embaixadores magiares estão para durar e que o legado de Bela Bartok continua a ser uma fonte inesgotável. Prémios merecidíssimos, pois, que relevam da força da (boa) tradição musical, em tempos conturbados na industria discográfica internacional.
Em 2009 a feira muda-se para Copenhagen, por um período de três anos. Logo agora, que estávamos a habituar-nos à Andaluzia e às suas "sevilhanas"...

2008/11/02

Episódios da democracia II

Ricardo Pais vai abandonar o TNSJ. O balanço que faz da política governamental na área da cultura é arrasador. Retenho em particular a sua afirmação de que "o governo conseguiu estar à altura de Carlos Fragateiro na maneira como o exonerou." Está consubstanciado nesta frase tudo o que o governo Sócrates tem feito nesta matéria e o que se pode esperar daqui para a frente.
Subscrevo totalmente as apreciações que Ricardo Pais faz.
Não me espantaria que o PM viesse admitir que a política do governo para a área da cultura tem grandes lacunas, que é o primeiro a reconhecê-lo, mas que o país está a braços com as prioridades há muito definidas, que o governo está a fazer o possível no quadro de restrições em que vivemos, os portugueses compreendem-no, etc e tal. O orçamento projectado para a cultura é que já deixou uma marca que não vai sair nem com lavagem a quente.
No meio disto tudo ficará interrompido um trabalho sem paralelo, levado a cabo por Ricardo Pais à frente do TNSJ.

Episódios da democracia I

Não deixa de ser surpreendente verificar que em 2008, 34 anos depois de Abril, volte a haver movimentações da tropa. É também revelador da qualidade da nossa democracia.
A tropa foi, e pretende manter-se, uma das poucas instituições portuguesas que sempre funcionou num quadro de padrões de exigência pouco habitual no país. Por razões várias, à instituição militar não se podem apontar, de um modo geral, os defeitos e vícios de que a generalidade da sociedade portuguesa e das suas instituições padecem e de que todos nos queixamos "no civil".
Contudo, há nas queixas dos militares ressonâncias mais profundas. Eles sabem-no e nós também. E sabe-o o governo. Estas queixas não são de hoje, é justo admiti-lo, mas é significativo que estas movimentações ocorram agora e que seja neste preciso momento que o seu tom de voz sobe.
Não me espantaria que o PM viesse dar toda a razão aos militares, afirmando que é o primeiro a reconhecer a bondade das suas queixas. Não me espantaria também que contrapusesse, como gosta de fazer para baralhar o esquema, o quadro de restrições em que o país vive e a conjuntura difícil que todos os portugueses conhecem, para manter tudo na mesma.
É certo que hoje vivemos em democracia e a ansiedade dos militares tem um outro carácter, menos "underground", se quiserem. E também é certo que o papel dos militares na sociedade portuguesa está muito mais claramente enquadrado e definido. Mas, também não é menos certo que, como diz o general Loureiro dos Santos, os militares "sentem uma certa injustiça relativamente a outras pessoas do serviço público (...) que não correm os riscos que eles correm, nem têm a restrição de direitos que eles têm" e queixam-se de "ignorância e de incompetência no tratamento dos seus assuntos."
O que tem piada é que, para além dos militares, também os outros servidores públicos se queixam do mesmo. E o que tem ainda mais piada é que a sociedade portuguesa, no geral, manifesta exactamente as mesmas razões de queixa.
Já não me lembro bem, mas acho que foi uma situação assim que desembocou no 25 de Abril e gerou depois uma coisa chamada unidade Povo-MFA...

2008/10/30

Controleiros da era digital

As empresas Google, Microsoft, Yahoo, a France Télécom e a Vodafone planeiam, juntamente com grupos de direitos humanos, introduzir um "código global de conduta na internet que proteja a liberdade de expressão e a privacidade contra a intervenção dos governos." Este grupo inicial procura alargar a base de participação.
Esta iniciativa faz parte da Global Network Initiative que se destina, segundo o New York Times, a "evitar ou minimizar o impacte das restrições governamentais na liberdade de expressão." Pese embora o facto de algumas organizações terem já criticado este esforço, descrevendo-o como "pouco mais do que uma afirmação geral de princípios, sem nenhum mecanismo que assegure o cumprimento das regras", a verdade é que este é um tema a que não será nunca demais prestar toda a atenção. Afecta-nos a todos e vai-se tornar cada vez mais importante. Todas as iniciativas destinadas a debater e demonstrar a importância deste assunto são, pois, bem vindas.
O big brother anda aí há muito tempo. Por vezes veste-se de democrata, mas, hoje com ontem, o que pretende é cortar-nos o pio. Digital ou analógico o big brother gosta de ter a última (quiçá, a única!) palavra. O outro lado do hacking pode ser igualmente sórdido.
E há por aí muitos aspirantes a controleiro. Em Portugal, a tentação é mesmo nódoa que cai no melhor pano...

2008/10/26

E contudo...

Quando se faz uma balanço da actuação do Primeiro Ministro, do Presidente da República, dos partidos da oposição e das restantes forças sociais (designadamente os sindicatos) nesta legislatura, ficamos com uma certeza: ninguém consegue segurar Sócrates.
Estão todos à altura uns dos outros, ninguém está à altura do País, mas o Primeiro Ministro consegue reduzir a um grande zero qualquer tentativa de contrariar a sua política. Ele continua a ditar (como se diz em "politiquês"), com uma aparentemente enorme convicção, a agenda política.
A longa entrevista dada ao DN/TSF, a resposta da oposição e a actuação das restantes forças sociais deixam prever que não vai surgir alternativa credível a este governo. E mais: forçam mesmo o recrudescimento da sua popularidade, de tal maneira a reacção da oposição se revela pífia.
Do lado do PSD, já se percebeu perfeitamente que a dupla Cavaco/Ferreira Leite não tem pedalada para Sócrates. Tê-lo-ão subestimado e terão julgado que os seus tiros no pé iriam ser suficientes para o obrigar a coxear. Enganaram-se. Quanto mais directas e indirectas Cavaco e Ferreira Leite lançam nesta sua estratégia claramente concertada, mais nítida se revela a sua total incapacidade para o (este) jogo político. É verdadeiramente patético.
Do lado da restante oposição o panorama é, de igual modo, totalmente confrangedor. Faz lembrar aqueles jogos de futebol em que uma equipa que ganha vai trocando a bola a meio campo, controlando inteiramente o jogo, mas concedendo ocasionalmente a iniciativa ao adversário para o apanhar num contra-ataque mortífero.
Se isto é a oposição, estarão a pensar decerto muitos portugueses, se é isto que têm para contrapor, mais vale ficar na mesma... Chega a fazer pena a maneira como têm sido sistematicamente comidos.
No que toca às forças sindicais, parece-me a mim que estão longe de constituir ameaça. Sobra-lhes em carga ideológica o que lhes falta em capacidade de intervenção. A actuação no terreno é desastrosa. Que é feito dos assanhados professores de há uns meses? E os furiosos polícias? E os abespinhados funcionários públicos? Os médicos? Os juízes? Gastaram os cartuxos todos e agora nem à fisga... Os sindicatos não podem fazer o papel dos partidos da oposição. É tão ridículo como é ridícula a tentativa de alguns partidos da oposição, em tempos recentes, de fazerem sindicalismo de ocasião.
E contudo... estamos fartos de Sócrates e das sua políticas. E contudo, assistimos, furiosos, a esta degradação contínua das condições de vida e dos padrões de funcionamento deste País. E contudo, as nossas perspectivas de futuro, sentimo-lo claramente, estão abaixo da cota de alerta.
E contudo... muitos dos que assim pensam, irão, face ao panorama real que desfila perante os nossos olhos, continuar decerto a depositar na urna o votozinho no senhor engenheiro.
Dificilmente me parece possível contrariar esta tendência. As eleições de 2009 ameaçam mesmo constituir uma parada de vitória...

2008/10/11

The queen

Os socialistas não param de nos supreender. Agora é o director-geral do FMI, o socialista Dominique Strauss-Kahn que, a propósito da crise financeira, afirmava ontem que ela "é uma falha da supervisão, uma falha da regulação, uma falha na crença de que o mercado se pode regular autonomamente."
"A lição a tirar," acrescentou, "é que para fazer o mercado funcionar, teremos de ter mais Estado e mais poder público."
Mas, não é esta esquerda travesti não assumido, não é a esquerda das privatizações, não é o socialismo "moderno" e a social-democracia conservadora in drag, a primeira responsável por todo este clima de incerteza? Não é a esquerda transsexual, medrosa e mais papista que o Papa, que veste roupas do sexo político oposto às escondidas e se deslumbra secretamente com os "valores do mercado", esquecendo os seus valores primeiros, que capitulou e foi juntando os ingredientes da receita para o desastre?
Nos E.U., entretanto, o governo do senhor Bush prepara-se para "nacionalizar" mais uns bancos. O que virá a seguir? Vamos vê-los de punho erguido a cantar a Internacional?

2008/10/10

Nim

Alberto Martins (lider da bancada do PS):
"Sou intransigentemente a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas voto contra". Ou seja, "voto contra, apesar de ser intransigentemente a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo".
Perceberam? Eu também não. Ou melhor, o PS no seu pior.

2008/10/05

"Foram todos na onda"

A intervenção do senhor presidente da CML na última edição do programa "Quadratura do Círculo" constituiu um momento particularmente infeliz.
Sou o autor da Petição sobre a Maria Keil, que 1) ao contrário do que afirmou o presidente da CML, 2) como se pode constatar pela sua simples leitura e 3) como fica, se as dúvidas continuarem a subsistir, definitivamente esclarecido pelo presente post, não é anónima. Sou, justamente, aquele que levantou esta onda toda atrás da qual foram aqueles milhares de pobres criaturas sem personalidade e volúveis que o presidente da CML referiu.
Devo dizer, antes de mais, que fiquei profundamente chocado com algumas afirmações que foram proferidas. Em particular, acho que o senhor presidente exagerou quando me apelidou de mentiroso e caluniador (foi isso que objectivamente disse; está gravado!). Quero crer que não seria essa a sua intenção, nem será esse o seu estilo normal... E quero ainda crer que se tivesse pensado no meu potencial voto o presidente da CML não me teria chamado mentiroso, nem caluniador. 
Mas, o que me interessa aqui, sobretudo, relevar são outros aspectos desta sua intervenção.
Pergunto-me por que raio de carga de água o presidente da CML "impôs" (a expressão é de Carlos Andrade) este assunto na agenda do referido programa? O assunto era com ele? Com o organismo a que preside? É matéria de alguma área do exercício governativo em que tenha tido responsabilidade? Ou, fruto de uma enorme apetência pelo submundo, será que o presidente da CML não terá querido, ele próprio, perder a onda? Mistérios que gostaríamos todos de desvendar...
Uma outra hipótese de justificação para esta intervenção canhestra e insultuosa: pode ser que a quantidade de assinantes da petição esteja próxima de um qualquer número mágico a partir do qual começam a soar os alarmes e é preciso agir...
A verdade é que perante a acutilância das acusações que nos fez, esperar-se-ia outra coisa que não aquele completo vácuo de ideias, aquela avalanche de clichés, aquela espantosa ligeireza, aquela desconcertante confusão técnica e aquelas imprecisões que ouvimos. O tema, os espectadores, o país merecem muito mais. 
De tudo isto fica apenas a prova de que o exercício da cidadania num país como Portugal, no quadro institucional que temos, é algo que continua a incomodar. Fica a ideia que o escrutínio dos cidadãos não suscita o esclarecimento dos escrutinados, gera antes escárneo e insulto. Fica finalmente a convicção que o uso da inteligência não é, afinal, para todos. No melhor pano, é certo, cai a nódoa. 
Uma certeza: saímos de tudo isto com a determinação reforçada em continuar a batalha pelo valor da cidadania. A determinação em não ir na onda, compreendem...?

2008/10/02

Kadaverdiscipline

Por mais que o porta-voz do Partido Socialista se esforce, a disciplina de voto imposta aos membros da bancada parlamentar (na questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo) não consegue apaziguar alguns dos deputados mais inconformados. A descer nas intenções de voto de há seis meses a esta parte, o PS sabe, que, numa conjuntura desfavorável, não pode arriscar uma guerra com a sua ala mais conservadora.
Paradoxalmente, é um partido de direita e teoricamente mais conservador em questões de costumes, o PSD, que dá liberdade de voto aos seus deputados.
Algo não bate certo nesta lógica de calculismo político seguida pelo maior partido do parlamento. A justificação dada por Alberto Martins, sobre a oportunidade da votação, é uma declaração acabada da hipocrisia que domina o voto socialista.
Longe vão os tempos em que o PS criticava os partidos estalinistas pelas suas práticas de centralismo democrático. O argumento, segundo o qual o PS seria um partido de opiniões livres, deixa assim de fazer sentido. Na antiga Europa de Leste, chamava-se a este método "kadaverdiscipline": disciplina de ferro. Deputados assim, não são de ferro, são "mortos vivos".

2008/09/28

A ARTE PÚBLICA É UMA PRERROGATIVA DOS CIDADÃOS!

A petição "Reposição dos painéis de azulejos de Maria Keil pelo Metropolitano de Lisboa"  vai ser retirada logo que isso seja tecnicamente possivel. Como promotor desta iniciativa, queria desde já pedir a todos os que se envolveram nesta Petição, publicitando-a ou assinando-a, que fizessem o favor de divulgar agora este post

A retirada da Petição tem propósitos claros. É para mostrar esta transparência de propósitos, para que se saiba o que verdadeiramente me move nesta tomada de decisão, que escrevo estas linhas.

1- Retirar a petição não significa capitulação. 

Quando, reagindo à leitura dos blogs que estiveram na origem deste movimento, criei a Petição, estavam por trás desta minha decisão muitos anos do exercício, sempre difícil, de ser Português. Sou, somos todos, testemunhas de muitos casos de livre arbítrio, de desrespeito, de incúria, de injustiça e de desleixo neste País. Temos um capital de experiência que nos imuniza contra a surpresa perante este tipo de acontecimentos. Só por ingenuidade poderíamos pensar que não é possível acontecer algo semelhante em Portugal. "Painéis de Maria Keil" destruídos há-os por todo o reino e para vários os gostos. Assistimos todos a muitos casos de destruição de património. Presenciámos inúmeros atropelos às prerrogativas dos cidadãos (a arte pública é também uma prerrogativa dos cidadãos). Observámos o fingido respeito que é votado aos artistas, verdadeiros cidadãos de terceira categoria na hierarquia social do País. Assistimos a inúmeras perdas irreparáveis dos testemunhos culturais, materiais e imateriais, da história da nossa vida colectiva. Tomámos conhecimento dos múltiplos saques e pilhagens de património, com a complacência e mesmo, por vezes, com o beneplácito das autoridades. Somos testemunhas permanentes do desleixo e da boçalidade que imperam na nossa vida colectiva em tantos domínios. É assim o "sistema".

A experiência mostra que, em Portugal, qualquer desvio a este padrão ocorre apenas perante um cerrado escrutínio dos cidadãos. Quando entregue a si próprio, o "sistema" puxa imediatamente da pistola.

Não foi, pois, com surpresa, nem com incredulidade, que recebemos um alerta dando-nos conta da utilização da inovadora técnica da picareta na preservação dos painéis de azulejos de autoria de Maria Keil pelo Metropolitano de Lisboa. Apenas com revolta. 

2- Retirar a petição não significa que os seus signatários tenham sancionado a criação de uma qualquer mentira.

Nem significa que tenham legitimado, com a sua participação, um qualquer acontecimento fantasma. Não! Os painéis da Maria Keil foram efectivamente destruídos! Como a própria empresa Metropolitano de Lisboa admitiu, quando foi sobre isso questionada por apoiantes da Petição (os factos estão aliás descritos com detalhe no seu site) e o filho de Maria Keil veio também depois confirmar publicamente. Ninguém inventou o problema.

3- Retirar a petição não significa que os motivos últimos, mais íntimos e profundos, que me levaram a criá-la, tenham sido ultrapassados. 

O problema levantado está longe de ter ficado totalmente clarificado. O Metropolitano de Lisboa deve-nos uma explicação, que continuaremos a aguardar. Mais ainda: a questão dos painéis levantou até, curiosamente, problemas novos que não deixaremos passar sem análise cuidada. As minhas dúvidas em relação a todo o processo que se seguiu à destruição dos painéis são agora maiores. 

4- Retirar a Petição não significa que concorde com o princípio de que o processo dos painéis de Maria Keil tem "prazo de validade". 

Somos acusados de um pecado original neste movimento que ajudámos a criar. Os factos terão ocorrido há dez anos, mais coisa menos coisa. Num artigo recente da revista Atlantic intitulado "Is Google Making us Stupid?", Nicholas Carr escreve: 

A concepção do mundo que resultou do uso generalizado de instrumentos de medição do tempo constitui [como diz Joseph Weizenbaum no seu livro "Computer Power and Human Reason: From Judgment to Calculation" (1976)] 'uma versão exaurida da concepção antiga, porque se baseia na rejeição da experiência directa em que assentava, ou melhor, que era a própria substância da realidade anterior.' Quando decidimos a hora de comer, de trabalhar, de dormir e de acordar, deixamos de escutar os nossos sentidos e passamos a obedecer ao relógio.

Falando dos painéis de Maria Keil, o sentimento genuíno de revolta que escutámos dentro de nós, gerado por esta acção do Metro, esta reacção imediata dos sentidos, não parece impressionar os críticos da Petição. Para eles o calendário lavou a evidência do crime. Não interessa que sintamos que ao crime tem de corresponder julgamento e condenação. Não interessa que ao não ser sancionado este crime -- tenha ele ocorrido há dez anos ou há dez minutos-- esteja aberto o caminho para a sua mais que provável repetição. Há bem pouco tempo a RTP mostrou um outro problema grave, envolvendo novamente o Metro e um artista plástico português. Quem nos garante que a origem remota deste novo incidente não reside na condescendência, na irresponsabilidade e na leviandade com que o caso de Maria Keil foi e continua a ser encarado? Aceitar que o "prazo de validade" deste processo expirou é o mesmo que aceitar que, desde que se jogue bem com o tempo, o crime já pode compensar. 

5- Razões que me levam a retirar a Petição.

Não posso de todo aceitar a teoria do "prazo de validade". Mas, tenho de admitir que ela pode ter algum eco na opinião pública. Receio que o argumento tenha sobre essa opinião pública efeitos perversos, antes mesmo de serem criadas oportunidades para uma reflexão mais aprofundada sobre este tema. 

A par do argumento do "prazo de validade", ouvimos um outro --malévolo ou míope-- de que tudo isto teria perturbado a própria Maria Keil. Qualquer pessoa medianamente inteligente perceberá que uma iniciativa que pedia a reparação de um mal que lhe foi efectivamente causado (mas de que somos todos, nós e ela, vítimas), não pretende magoá-la. Porém, eu não quero que sobre essa matéria subsista qualquer dúvida. Se 4.000 pessoas expressam de forma espontânea e exuberante o seu carinho e o seu apreço por Maria Keil e pela sua obra, e esse seu acto pode, mesmo assim, ser interpretado como hostil, que não restem dúvidas: não era essa (penso que posso falar por todos) a nossa intenção... 

Temo que o eco do argumento do "prazo de validade" possa, nesta era de memória curta e causas efémeras, afastar a generalidade da opinão pública da reflexão aprofundada e necessária sobre esta matéria. Pressinto que a argumentação mesquinha que a iniciativa também gerou tenha acabado por suscitar reservas e dúvidas que conduziram ao afastamento de muitos que estão próximos dos nossos pontos de vista e que interessa que estejam junto de nós neste debate. E não quero que os milhares de signatários da Petição sintam o seu apoio a esta causa traído porque os nossos objectivos foram desfocados por "controvérsias" ridículas e protagonismos frustrados, que conduzem a discussão para territórios indesejados e originam a perda de eficácia desta ferramenta. Por isso (e só por isso!) a retiro. 

Mas, a luta por um papel activo da arte no desenvolvimento da consciência cívica dos portugueses irá prosseguir. Outros iniciativas irão ser postas em marcha e outros instrumentos serão encontrados para tratar esta questão que nos uniu e nos une a todos.

Até breve.

2008/09/27

The Hustler

Entre os muitos actores que descobri nos longínquos anos cinquenta - a década do cinema - dois ou três permaneceram para sempre no meu "hall" da fama. A maior parte já não pertence ao Mundo dos vivos, mas continuam vivos nos filmes que os tornaram imortais. O último desses heróis faleceu hoje, com 83 anos. Chamava-se Paul Newman e era um actor do caraças. Um verdadeiro "hustler".

2008/09/24

O crime de incúria não prescreve

O fenómeno do "aquecimento global" já há muito que chegou a Portugal. Antes afinal de se tornar preocupação à escala planetária, antes de todos os outros países, já Portugal padecia das consequências do fenómeno. 
Outros países "aqueceram" com a mecanização, a dinâmica económica, com o desenvolvimento do conhecimento e com a inovação. "Aqueceram" com a proliferação, certamente desregulada, de novos meios, que vieram, no fim de contas, proporcionar um maior bem estar material às respectivas populações. 
Portugal passou à margem de tudo isto. "Aqueceu" com o mal estar gerado pelo aumento da  injustiça, do desleixo, da irresponsabilidade, da indiferença, da corrupção e da ignorância. Há de facto quem fique em braza com toda esta bandalheira. Aqui no Face, somos apenas mais um blog a olhar também as causas e os instrumentos deste "aquecimento" à Portuguesa e a analisar e denunciar alguns epifenómenos daí resultantes. 
Este pequeno "furacão" gerado pela questão dos painéis da Maria Keill veio mostrar que, apesar de tudo, os agentes responsáveis pelo aquecimento à portuguesa estão debaixo de olho e que uma parte nada despicienda da população está sempre atenta e tenta, ela também, com todos os meios que tem à sua disposição, combater este fenómeno sui generis, que é resultado desta nossa triste e manhosa natureza. Uma parte significativa da população pratica o tal direito à indignação. Tão somente... 
A internet, não é só o motivo de encantamentos serôdios --a internet já tem mais de 40 anos, a pacovice portuguesa é que acha que ela só começou com o "cabo"--, nem o tal fenómeno marginal e incontrolável como muitos a classificam --para disfarçar, quiçá, a vontade que teriam em controlá-la, eles próprios; o pé de muito boa gente desliza para o chinelo do fascismo e do "controleirismo" com enorme facilidade... As pessoas que assinaram a petição fizeram-no de forma consciente e sabem que esta é uma arma que não atira balas, mas que pode até talvez ser mais acutilante do que as armas que o fazem. Sabemos para quem a estamos a apontar. 
O caso da destruição dos painéis da Maria Keill passou-nos ao lado na altura em que ocorreu. Paciência. Mas, foi e é um crime! O modo como foi tratado pelo Metropolitano, os acordos a que esta instituição terá chegado com a autora não acrescentam, nem retiram, nada à gravidade deste caso. Os painéis faziam parte do património artístico do País. Não eram do Metropolitano, nem já sequer da autora. Eram nossos. 
Por um conjunto fortuito de circunstâncias, acabámos por ter conhecimento de tudo isto, a maior parte de nós, apenas agora. Através, imaginem, dos blogs. E reagimos. Para admiração, inclusivamente, de alguns camaradas bloguistas, que parecem achar que, opiniões, só as deles...
E, vejam lá!, somos muitos! Aparentemente, somos muitos a reagir e a mostrar a nossa enorme indignação. Somos muitos dentro do País e são muitos os que, pelos vistos, estão também atentos lá fora às tropelias que por aqui se vão fazendo. Tropelias que ainda há pouco, se repetiram, com outros autores e com outros painéis. 
Porquê reagir agora? O crime da incúria e da leviandade não prescreve. Ontem foram os painéis da Maria Keil, amanhã será o quê, de quem? Ou serão só os Budas do Afeganistão que devem merecer o repúdio das almas piedosas? 
O que pedimos é de uma enorme singeleza e clareza. Queremos uma resposta.

2008/09/19

Chapeladas

A proposta do PS relativamente ao voto dos emigrantes é, no mínimo, bizarra. O partido maioritário, que agora governa Portugal, pretende alterar uma lei, que funcionou bem durante trinta anos, com o argumento que esta é passível de fraude ou, até mesmo, de "chapeladas"!
Vivi (e votei) no estrangeiro durante trinta anos e sempre votei por correspondência. Não vejo porque é que este meio não há de funcionar. O método era, inclusive, elogiado por outros emigrantes com quem eu contactava (italianos, por exemplo) que tinham de deslocar-se ao seu país sempre que havia eleições.
O boletim de voto chegava, normalmente, um mês antes das eleições e eu só tinha de preênche-lo e reenviá-lo, dentro de outro envelope dos serviços, para a Comissão Eleitoral em Lisboa. Para serem considerados válidos, os votos tinham de ser enviados para Portugal até à véspera do escrutínio. O que acontecia depois, não sei. Até admito que tenha havido as tais "chapeladas" de que fala Vasco Franco...mas, se as houve, foram praticadas em Portugal!
E, das duas uma: ou a Lei actual não serve e não se compreende que, só ao fim de trinta anos, o governo tenha dado por isso; ou a Lei é boa, mas não serve os interesses eleitorais do PS que arrisca perder a maioria actual nas próximas eleições.
Há aqui outra questão importante: os votos dos emigrantes (que são diminutos, mas representam quatro deputados na AR) tornar-se-ão ainda mais residuais, se a Lei for alterada. Não por acaso, foi o actual governo que reduziu drasticamente o número de consulados no estrangeiro. Se já era difícil aos emigrantes deslocarem-se aos consulados para tratarem dos seus assuntos, calcule-se o que será para votarem...Ninguém lá vai!
Se calhar, é isso mesmo que o Partido Socialista deseja. Mas, se é assim, estamos perante uma "chapelada" do actual PS, na qual é secundado pelo inefável PCP que, como sabemos, sempre foi avesso a eleições. E esta, hein!?

2008/09/18

Maria Keil: silenciar o acto é pior que tê-lo cometido!

Não resisto a transcrever aqui ipsis verbis uma mensagem que hoje me enviaram. Não sei quem é o autor (*), mas vale a pena divulgá-la.



Maria Keil


Esta senhora bonita é a nossa compatriota Maria Keil, artista plástica. Em 1941, via-se a si própria desta maneira...

Maria Keil (gosta que a tratem apenas por Maria) nasceu na cidade de Silves, em 1914. Partilhou a maior parte da sua vida com o arquitecto Francisco Keil do Amaral, com quem se casou, muito jovem, em 1933. De lá para cá fez milhares de coisas, sobretudo ilustrações, que se podem encontrar em revistas como a “Seara Nova”, livros para adultos e “toneladas” de livros infantis, os de Matilde Rosa Araújo, por exemplo, são em grande quantidade. Está quase a chegar aos 100 anos de idade de uma vida cheia, que nos primeiros tempos teve alguns “sobressaltos”, umas proibições de quadros aqui, uma prisão pela PIDE, ali... as coisas normais para um certo “tipo de pessoas” no tempo do fascismo.

Para esta “história”, no entanto, o que me interessa são os seus azulejos. São aos milhares, em painéis monumentais, espalhados por variadíssimos locais. Uma das maiores contribuições de Maria Keil para a azulejaria lisboeta, foi exactamente para o Metropolitano de Lisboa. Para fugir ao figurativo, que não era o desejado pelos arquitectos do Metro, a Maria Keil partiu para o apuramento das formas geométricas que conseguiram, pelo uso da cor e génio da artista, quebrar a monotonia cinzenta das galerias de cimento armado das primeiras 19, sim, dezanove estações de Metropolitano. Como o marido estava ligado aos trabalhos de arquitectura das estações e conhecendo a fatal “falta de verba” que se fazia sentir, o Metro lá teve de pagar os azulejos, em grande parte fabricados na famosa fábrica de cerâmica “Viúva Lamego”, mas o trabalho insano da criação e pintura dos painéis... ficou de borla. Exactamente! Maria Keil decidiu oferecer o seu enorme trabalho à cidade de Lisboa e ao seu “jovem” Metropolitano. Estes pormenores das estações do “Intendente” (1966) e “Restauradores” (1959), são bons exemplos.


Parêntesis: Qualquer alteração na “Gare do Oriente” do Arq. Calatrava, ou nas Torres das Amoreiras, do Arq. Tomás Taveira, só a título de exemplo, têm de ser encomendadas ao arquitecto que as fez e mesmo assim, ele pode recusar-se a alterar a sua obra original. Se os donos da obra avançarem para a alteração sem o acordo do autor, podem ter por garantido um belo processo em tribunal, que acabará numa “salgada” indemnização ao autor.

Finalmente, a história! Recentemente a Metro de Lisboa decidiu remodelar, modernizar, ampliar, etc, várias das estações mais antigas e não foram de modas. Avançaram para as paredes e sem dizer água vai, picaram-nas sem se dar ao trabalho de (antes) retirar os painéis de azulejos, ou ao incómodo de dar uma palavra que fosse à autora dos ditos. Mais tarde, depois da obra irremediavelmente destruída, alguém se encarregaria de apresentar umas desculpas esfarrapadas e “compreender” a tristeza da artista.
A parte “realmente boa” desta (já longa) história é que, ao contrário de quase todos os arquitectos, engenheiros, escultores, pintores e quem quer que seja que veja uma sua obra pública alterada ou destruída sem o seu consentimento, Maria Keil não tem direito a qualquer indemnização.
Perguntam vocês “porquê, Samuel?” e eu tão aparvalhado como vós, “Porque na Metro de Lisboa há juristas muito bons, que descobriram não ser obrigatório pedir nada, nem indemnizar a autora, de forma nenhuma... exactamente porque ela não cobrou um tostão que fosse pela sua obra!!!
Este país, por vezes consegue ser “ainda mais extraordinário” do que é o seu costume! Ou não?

(*) Já sei entretanto mais sobre a autoria deste escrito. Veio daqui e o seu autor é o Samuel.

PS - Enquanto falávamos aproveitei para elaborar uma Petição dirigida ao Metropolitano de Lisboa que está em http://www.petitiononline.com/MK2008PT aguardando a vossa eventual assinatura...



O poder na ponta da mangueira

A acreditar no ministro Manuel Pinho, se as petrolíferas não acompanharem a descida internacional do preço do crude e reduzirem os preços de acordo, o governo poderá ter de "intervir" para ajudar a "regular" o mercado. Mercado que, lembre-se, foi liberalizado pelo governo anterior com o apoio do PS e o argumento que essa liberalização iria beneficiar as petrolíferas e o consumidor. Como sabemos hoje, o que se verificou foi o contrário: uma cartelização de preços que continua a favorecer as petrolíferas e o governo que, desta forma, arrecada mais dinheiro em impostos. Quem perde, como sempre aliás, é o consumidor, o elo mais fraco nesta cadeia de interesses.
Interrogado sobre a forma como iria intervir, Pinho, o ministro do discurso desconcertante, refugiou-se numa citação clássica tão ao gosto da esquerda estatizante: "a política comanda sempre a economia". Querem ver que o homem é mesmo socialista?

2008/09/12

Podium

O que está a acontecer na China, a exemplo do que tinha acontecido em Atenas, devia fazer corar de vergonha alguns dos nossos atletas do desporto-rei, pagos a peso de ouro, além de outros para quem a "caminha" é o lugar possível.
Dos jornais de futebol, a que muita gente insiste em chamar desportivos, não vale a pena falar. Apesar da evidência, continuam a dedicar as suas capas a uma selecção de "ouro" que nunca ganhou nada.
Estamos a falar dos atletas portugueses para-olímpicos, de quem vamos sabendo que já ganharam 5 medalhas em Pequim. Eles são os verdadeiros heróis, neste país de vilões onde a Federação Portuguesa de Futebol exige 1500 euros a um jovem alemão para poder jogar no nosso campeonato amador. Haja vergonha!

2008/09/10

O Google hoje...


Buraco Negro

No mesmo dia em que, na Suiça, centenas de cientistas portugueses integram a equipa internacional responsável por uma das mais espectaculares experiências da física contemporânea - a recriação, num túnel acelerador de partículas, dos primeiros momentos da humanidade - outras notícias (bem menos optimistas) sobre o nível de formação dos portugueses, passaram despercebidas nos meios de comunicação nacional.
Assim, e de acordo com o último relatório publicado pela OCDE, Portugal continua a ocupar um dos lugares mais baixos no "ranking" europeu de qualificações escolares:
Mais de 60% da mão-de-obra portuguesa não tem qualquer formação específica (atrás de nós, só a Turquia com 63%).
Apenas 13% da população portuguesa é licenciada (atrás de nós, só a Turquia com 10%).
Somente 28% da mão-de-obra portuguesa é qualificada (também aqui, só a Turquia tem menos: 25%).
Ou seja, em três dos indicadores mais importantes, ocupamos sistematicamente o penúltimo lugar entre mais de trinta países europeus escrutinados.
Se juntarmos a esta notícia, a do INE, que nos diz que 9% da população (cerca de 1 milhão de portugueses!) continua estruturalmente analfabeta e 48% é analfabeta funcional, isto após mais três décadas de democracia e mais de duas décadas de quadros comunitários de apoio, é caso para perguntar: como é isto possível?
Bem pode o governo do "engenheiro" continuar a oferecer computadores "magalhães" e simplificar os exames para melhorar as estatísticas. Perante esta dramática realidade, não há acelerador que resista ao negro do nosso túnel. Um verdadeiro buraco!

2008/09/09

Protões à solta daqui a pouco na Suiça!

É desta que o Large Hadron Collider (LHC) , o super acelerador de partículas, vai começar a funcionar. Daqui a pouco, pelas 3.30h (suponho que hora da Europa Central), os primeiros protões vão ser lançados no túnel do acelerador a velocidades muito próximas das da luz. Por agora vão apenas circular para aquecer. Mais tarde dar-se-á a colisão. Das duas uma: ou acaba o mundo, engolido por um qualquer fenómeno provocado pela zanga dos deuses que não suportam que se brinque com as suas prerrogativas, ou então, como diz o director-geral do CERN, Robert Aymar "qualquer sugestão de que possa constituir um risco é pura ficção." A hipótese de se gerar um buraco negro ou outra coisa ainda mais medonha não passará portanto de especulação...
Eu sei que "protões" lançaria de bom grado, a velocidades próximas da da luz, por estes túneis do Hadron, até à colisão fatal. Mas, não digo!
Por agora fiquemos com os factos...
O LHC foi concebido para acelerar protões que irão gerar uma energia da ordem dos 7.000.000.000.000 electrões-volt. Estamos perante um projecto que dura há vinte anos e custou a módica quantia de 8 mil milhões de dólares. Nele trabalharam mais de 7.000 físicos de 80 nações. O túnel do LHC --com tamanho suficiente para nele poder passar um comboio-- tem 27 quilómetros de perímetro e está a 175 metros da superfície. As temperaturas geradas serão um milhão (um milhão!) de vezes mais altas que o núcleo do Sol. Os ímanes supercondutores que balizam o percurso das partículas lançadas a velocidades próximas da velocidade da luz são arrefecidos a temperaturas mais baixas que as que se verificam no espaço (-193.2º C). 
O "espetáculo" poderá ser visto em http://webcast.cern.ch/ para quem gostar de emoções fortes. Será, seguramente, bem mais excitante que o discurso de encerramento da "universidade de verão do PSD" pela dra. Manuela Ferreira Leite...

(a imagem é do CERN)


PS- A primeira experiência desta "máquina da descoberta" foi um sucesso. Pode ser tudo lido aqui. Imagens para quem estiver interessado aqui. Mais info interessante aqui.

2008/09/07

O tigre de papel

A América está a mudar? Vai mudar? Já mudou? Ou nunca mudou? Em véspera de eleições americanas, numa altura em que se ouvem cidadãos de outros países, que não têm direito a voto na América e que, se calhar, nem votam nos seus próprios países, proclamarem a sua preferência por este ou por aquele candidato, ou zurzirem no candidato que, no seu entender, não corresponde às suas simpatias ideológicas, surgem sinais de que as coisas na América já não são o que foram. Talvez nunca mais voltem a ser o que foram. Talvez mesmo nunca tenham sido aquilo que a gente pensa que foram....!
Entre as notícias sobre vices com mais ou menos viço, surgiram recentemente outras dando conta da preocupação de diversos analistas sobre o declínio da capacidade de inovação da sociedade americana. Embora alguns sectores ponham em causa a legimtimidade destas preocupações, o certo é que há diversos factos objectivos que demonstram que os E.U. estão hoje longe de ser o país onde reside a força que faz mover as rodas do progresso. As vozes que proclamam a sua preocupação sobre o que chamam de "défice de inovação" na América multiplicam-se.  
Interessante nesta matéria um recente artigo do NYT sobre um livro há pouco publicado de autoria de Judy Estrin, uma dessas vozes críticas, chamado "Closing the Innovation Gap". É desse artigo que retirei a maior parte dos dados que cito aqui. Os cépticos dizem que não, que os E.U. mantêm uma liderança inquestionável em matéria de ciência e inovação. 40% do total dispendido no mundo na área da ciência provém da América. 70% dos prémios Nobel são americanos. A América tem 75% das 40 melhores universidades do mundo. Mas, a história pode não ser bem assim. A liderança dos E.U. em matéria de ciência e inovação é conseguida à custa de conhecimentos e tecnologias desenvolvidos há décadas. O que acontecerá quando o efeito se esgotar? A verdade é que, como diz um relatório encomendado pelo Congresso norte-americano, o financiamento em áreas como a física, por exemplo, era 40% inferior em 2004 ao que se verificava em 1976 e que 93% dos alunos entre o 5º e o 8º ano aprendiam ciência de professores sem as necessárias qualificações.  
A actual liderança parece, pois, estar baseada numa estrutura montada há décadas, cujos efeitos se fazem agora sentir. Essa estrutura afigura-se não estar a ser sustentada e assim os americanos parecem começar a sentir uma mudança nos eixos do progresso científico, que agora parecem inclinar-se mais para os lados da China e da Índia. 30 a 40% dos graduados das universidades chinesas e indianas têm títulos na área das engenharias, contra os 5% dos graduados americanos. Mais: 60% dos títulos das universidades americanas são atribuídos a estudantes de outros países que não ficam na América a trabalhar, uma vez que a dinâmica económica americana não se compara com a desses países.  
"Neste momento o país parece estar num lento declínio -nas suas infraestructuras, na investigação básica, na educação- lento suficientemente para nos levar a pensar que temos todo o tempo do mundo para andar a brincar em Tbilisi, Georgia, mais do que em Atlanta, Georgia," escreve Thomas L. Friedman, também nas páginas do NYT, a propósito do investimento americano de mil milhões de dólares para reconstruir a Georgia depois do conflito com a Rússia.
A internet é um exemplo interessante e talvez paradigmático. Trata-se de uma criação americana dos anos 70. O tráfego de dados na internet passou durante estas três primeiras décadas de existência pelos E.U.. Até o tráfego nacional de dados, num qualquer país com a sua própria rede, passava pelos servidores americanos. A falta de investimento em infraestruturas modernas e problemas de segurança têm levado grandes regiões económicas como o Canadá, a Europa e o Japão a criar as suas próprias redes e a curto-circuitarem as redes americanas. Os E.U. assistem hoje a uma mudança nos fluxos do tráfego de dados, com claros efeitos na sua economia e até na sua segurança. Cito de um outro artigo do NYT de que me socorro para alinhavar estas notas, Yochai Benkler, director adjunto do Berkman Center for Internet and Society at Harvard, que diz, relativamente ao esforço que neste domínio tem sido feito por países como a China e a Índia, o seguinte: “nós, por comparação, estamos militarmente mais fracos, economicamente mais pobres e tecnologicamente menos inovadores do que éramos. Ainda somos um parceiro maior, mas já não somos nós a controlar."
Mas, será que alguma vez os E.U. estiveram, verdadeiramente, a controlar? Será que se pode falar, verdadeiramente, de inovação no caso dos Estados Unidos? Ou será que outros factores entraram em jogo para conferir a este país a sua hegemonia tecnológica? Não serão antes o bloqueio mental e o preconceito europeus os factores decisivos que contribuíram para dar aos E.U. essa sua vantagem? A inovação americana começou por assentar basicamente em conhecimentos desenvolvidos e em massa crítica existente noutras paragens. Onde estaria ela, a inovação americana, sem os Von Braun e os Von Neumman made in Europe? E teria, por seu turno, Turing tido o fim que acabou por ter se não fosse o preconceito e a estreiteza de horizontes dos ingleses?
Esgotado que está o efeito desse período inovador, não podendo continuar a atrair e a manter os actuais e futuros Von Braun e os Von Neumman, se calhar não é só o domínio do tráfego da internet que os E. U. vão perder. O que constitui uma boa nova para o mundo. 
Já agora, uma pergunta: enquanto os E.U. andam entretidos a resolver o problema das hipotecas nacionalizando o Fannie Mae e o Freddie Mac, alguém quer aproveitar esta "nova oportunidade", ou vamos já começar a prestar vassalagem ao novo líder antes de o ser?

2008/09/04

Liberdade Angolana

Nao é a recusa de "vistos" angolanos aos jornalistas portugueses que deve constituir uma surpresa. A reacção do regime cleptocrata de Eduardo Santos às críticas veículadas pela imprensa de Balsemão é em tudo coerente com a política silenciadora e repressiva de uma ditadura. O que deve constituir uma surpresa é o constante bajular dos nossos representantes políticos - do Presidente da República ao Primeiro-Ministro - que tudo fazem para não ter uma opinião sobre um dos governos mais abomináveis do continente africano.
Pior mesmo, só a opinião do jornalista angolano David Borges que, nos estúdios da SIC (impedida de entrar em Angola), conseguiu defender o regime sem ousar defender os seus colegas jornalistas. É preciso coragem!

2008/09/02

Por quem os sinos dobram

Há mais de 20 anos trabalhei no departamento de ruído da então Secretaria de Estado do Ambiente (S.E.A.). Uma das áreas que mais preocupações nos dava era a das reclamações. Não se tratava de nenhuma brincadeira: o ruído era a causa principal de reclamação dentro da S.E.A.. As consequências desta disfunção ambiental podem ser extremamente sérias. Desde problemas gravíssimos de saúde até casos de tentativa de homicídio (consumado, num caso ocorrido na Amadora na altura em que trabalhava nesta área), passando por desavenças entre vizinhos (por vezes até entre familiares!) que acabavam em tribunal, houve de tudo um pouco.
Em dado momento começámos a receber um número crescente de reclamações relativas ao que foi classificado como "sinos electrónicos". O "sino electrónico" (descobri-o no terreno...) era um vulgaríssimo relógio de pêndulo, com um pequeno badalo, daqueles que se penduram na sala ou no corredor, que uns quantos espertalhões equipavam com um microfone barato, ligado a um amplificador, por sua vez ligado a uma dessas "cornetas" acústicas de feira. As "cornetas" eram montadas nas torres sineiras tradicionais, o relógio e o restante equipamento era geralmente montados na sacristia. O preço de um sistema destes ultrapassava largamente o milhar de contos... 
R. Murray Schafer, o conhecido teórico da área da ecologia acústica e criador do conceito de "paisagem sonora", diz numa das suas obras que o espaço acústico de um sino de uma igreja tradicional definia a área da paróquia. Schafer fala também no sino como "som sagrado", um som tornado símbolo pelas suas características, mas também pela autoridade de quem tem o poder de o fazer soar. Mas, é Alain Corbin quem no livro Les Cloches de la Terre nos desvenda os complicados mecanismos que estão por detrás do campanário da igreja. Os sinos são efectivamente sinais de poder e de autoridade e elementos estruturadores do território. Foram pretexto para sérios confrontos locais entre o poder eclesiástico e o poder civil. Quem os faz soar tem o poder de silenciar os outros, sob o ponto de vista simbólico e real. O sino evoca respeito, mas pelas suas características físicas silencia efectivamente tudo à sua volta. É um factor fulcral na definição de pertença a uma determinada comunidade e, finalmente, ao marcar um território, a sua operação define as hierarquias dentro da comunidade que o habita. 
Ora, o "melhoramento" do "sino electrónico" procurava aparentemente subverter a ordem vigente ditada pelas relações de poder geradas no contexto da utilização do sino tradicional. O território alargava-se (o sino passou a ser ouvido nas paróquias vizinhas) e todos e ninguém o podiam faziam soar. No espírito de muitos, tratar-se-ia de uma conquista de Abril, portanto...
O que estes novos democratas esqueceram foi que o aumento do impacto sonoro do "sino electrónico", para chegar aos "territórios" vizinhos e assim satisfazer estes desejos "expansionistas" de subjugação dos vizinhos e de esmagamento por via "electrónica" de velhas rivalidades, iria começar por ter consequências perniciosas no seu próprio território e a suscitar desavenças dentro das suas próprias casas. Os efeitos dos sistemas pomposamente designados por "sinos electrónicos" são insuportáveis mesmo para os novos paroquianos com desejos expansionistas  e, afinal de contas, um "sino electrónico" não é, de facto, um sino. Tivemos um caso verdadeiramente caricato de um morador abastado que pagou um destes sistemas, mas acabou por levar a aldeia a tribunal porque não conseguia dormir e as tentativas para fazer desactivar o sistema, que ele próprio num primeiro impulso tinha pago e que o impediam a si e à sua família de dormir, foram totalmente infrutíferas... 
Não há, com efeito, nada de verdadeiramente único que materialize este "símbolo": o som é igual ao de todos os outros, e o "objecto" é agora um amontoado de fios e aparelhómetros de terceira categoria, guardados num armário de uma qualquer sacristia, longe de todos os olhares.
Fica apenas a capacidade (colectiva, agora expandida e não despicienda) de "democratizar" a marcação de um território e de poder silenciar os outros.
Vem isto tudo a propósito de um caso que agora anda aí nos jornais, ocorrido em Vilar de Perdizes onde foi instalado um destes sistemas. Pelo que pude constatar, trata-se de um sistema semelhante ao que descrevi acima. 
Como não podia deixar de ser, o "melhoramento" gerou uma série de reclamações --do próprio padre da paróquia, imagine-se!, o padre Fontes, promotor dos congressos de medicina popular. Mas, uma parte significativa da população opõe-se ao silenciamento do "sino" porque este mantém implicitamente a aludida capacidade de marcar território e silenciar os outros. Entre os argumentos explícitos a favor desta "guerra", uns invocam o prazer que lhes dá ouvir o toque da corneta acústica, outros saúdam o facto de, por serem analfabetos e não saberem ver as horas num relógio, poderem ouvir as horas de noite para tomar um remédio...
Esta capacidade de fazer soar estes novos "sinos" pode não ser, em si mesma, um factor negativo. Antigamente seria o pároco ou o regedor que teriam a chave do campanário e com ela a capacidade de fazer soar o sino. Agora será o povo que manda, ou tem a sensação que manda. O que me parece singular (e os sociólogos e antropólogos terão aqui uma palavra a dizer), e ilustra sem dúvida o que é este Portugal real em que vivemos, no ano de graça de 2008, é que se gere um conflito destas proporções porque há analfabetos que não sabem ver as horas num relógio e necessitam, portanto, das badaladas de um relógio público para poderem tomar um comprimido de noite, e gente sensível e de gosto educado a quem dá prazer ouvir a solenidade do toque das Avé-Marias através de uma corneta acústica manhosa, feita de lata. 
Bronze para que te quero! Glória a todos estes portugueses, que controlam agora o som sagrado, que se emocionam ao som do relógio da sala e por quem a corneta acústica dobrará a finados quando morrerem...



(a foto foi picada do blog "Ferrado de Cabrões")

2008/08/30

A Bela e o Monstro

Decididamente, os americanos não param de surpreender-nos. Depois de elegerem o primeiro candidato democrata negro (Barak Obama) é a vez da candidatura republicana mostrar o seu trunfo eleitoral feminino (Sarah Palin, ex-miss Alaska). Uma verdadeira "arma secreta"! Com esta nomeação, a todos os títulos desarmante, McCain prova que está ali para as "curvas" e, quem sabe, mudar o rumo da história nestas eleições...Seja qual for o resultado final em Novembro, uma coisa é certa: o "politicamente correcto" já ganhou e a América nunca mais será a mesma. Cocteau não podia imaginar melhor "remake" do seu já clássico filme.
(foto: NYT)