2016/12/15

O Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa



Cumprindo o ritual mensal, dirigi-me no passado mês de Setembro à minha barbearia dos últimos vinte anos, a "Barbeiros Reunidos", situada ao fim da Calçada do Carmo, perto da Praça do Rossio. Uma barbearia antiga, algo decrépita, onde três diligentes barbeiros e duas "manicures", em idade de pré-reforma, atendiam com cumplicidade os habituais clientes. Ainda conheci a equipa original, constituida por cinco barbeiros que, nos "dias de brasa" do PREC, decidiram criar uma cooperativa. A cooperativa seria, entretanto, desfeita, mas o nome ficou.
Dos sócios originais, só o Sr. Alfredo ainda trabalhava. Era também o melhor profissional, ainda que raramente me cortasse o cabelo, pois estava sempre ocupado. Para não ter de esperar, optava pela primeira cadeira livre, o que me poupava bastante tempo. Em menos de meia-hora, estava despachado. Barba e cabelo por um preço, inalterado há mais de uma década, de 18euros.
Pouco passava das 17h. quando entrei na barbearia, vazia àquela hora. Literalmente. Nem clientes, nem "manicures", nem móveis. Nada. Apenas 5 cadeiras, outros tantos espelhos e 3 barbeiros, a conversarem entre si.
Perguntei se iam fazer obras e responderam-me que iam fechar.
- Vão de férias?
Não, vamos mesmo fechar. Definitivamente. O senhor vai ser o nosso último cliente. Pode escolher a cadeira...
- O quê? O negócio, vai assim tão mal?
Não, mas fizeram uma proposta ao Alfredo e ele aceitou o negócio...
- Mas, então, o que é que vão fazer?
Ele deve ir para o Algarve, onde tem uma casa. Eu ainda não sei, mas tenho uma irmã em Portimão, que ficou toda contente por eu deixar este trabalho (já o faço há 60 anos, sempre no Rossio) e o rapaz (apontando o elemento mais recente da equipa) não vai ter problemas, pois arranja sempre trabalho em qualquer lado...
- Nem quero acreditar. E os restantes inquilinos do prédio? Também se vão embora?
Não há mais inquilinos. O prédio está vazio e é património municipal. Para além de nós, só há aqui uma loja de telemóveis, que também terá de sair...
- Estou a perceber. Mais um hotel, com certeza, já há poucos na "baixa"...
Não, disseram-nos que vão fazer aqui o Museu da Conserva...
- O Museu da Conserva? Essa é boa...no Rossio?
Pois, é de um gajo da Murtosa, o mesmo que tem a "Loja das Enguias". Também já tem o "Museu da Cerveja" no Terreiro de Paço e aquela loja do "Pastel de Bacalhau com Queijo da Serra", na Rua Augusta...
- Inacreditável. Nem sei o que diga. 
Eu ainda não quero acreditar. Pensar que, amanhã, já não venho trabalhar...Há mais de 30 que trabalho com o Alfredo e há 60 que trabalho no Rossio. Só tenho vontade de chorar...
- Mas, então que idade tem?
Tenho 80, mas gosto do que faço e não sei fazer mais nada...e agora?
- Isso deve ser terrível, de facto, mas tem de ver o lado positivo das coisas. Vai receber uma indemnização e poderá gozar a reforma no Algarve...
É o que me diz a minha irmã: "vens para cá e podes ir à pesca"...
- Claro, parar é morrer. Já cumpriu a sua parte. Eu é que tenho de arranjar um novo barbeiro...
Cortado o cabelo, despeço-me dos três, enquanto recebo do Sr. Alfredo uma palavra de agradecimento: "obrigado por nos ter dado a preferência". Saio da barbearia, meio abananado pela notícia. 
Esta semana, amigas espanholas de longa data, que frequentemente visitam Lisboa, chamavam-me a atenção para as iluminações natalícias. Estavam muito impressionadas com a "profusão de luzes"...
No Rossio, parámos para os inevitáveis "selfies". À esquina da praça com a Calçada do Carmo, uma "loja" distinguia-se das demais. Em rigor, não é uma loja. É uma "barraca de feira", com muitas cores, carrosséis, música e uma roda gigante em miniatura. Lá dentro, de cartola e fardado de vermelho, um empregado convidava-nos a entrar para apreciar a colecção de latas de sardinhas do último século. Milhares de latas, ordenadas por décadas e agrupadas em cores garridas, que podem ser apreciadas e compradas a 5euros, cada. Há latas de sardinhas, de enxovas, de atum, de lulas e de cavala. Tudo em azeite virgem, claro. A "minha" barbearia tinha dado lugar ao "Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa".