2022/02/21

Portugal: uma relação difícil com migrantes

 foto Gérald Bloncourt

Como se não bastasse o "chumbo" do Orçamento de Estado para 2022, que conduziu à convocação de eleições antecipadas que ninguém desejava, Portugal vê-se confrontado com um novo (e inesperado) problema: o da repetição da votação do Círculo Eleitoral da Europa, destinado a eleger dois deputados para a Assembleia da República.

A necessidade da repetição decorre da ilegalidade detectada na contagem dos votos enviados por correspondência, o que levou vários partidos a recorrerem ao Tribunal Constitucional. O conteúdo de envelopes de votos, que chegaram sem fotocópia do cartão de cidadão, foi misturado com o conteúdo de outros que se faziam acompanhar, como manda a lei, por uma prova de identificação do eleitor. 

Recordemos: nos dias 8 e 9 de Fevereiro, as mesas de apuramento dos resultados, confrontadas com uma queixa do PSD sobre a legalidade da votação, tiveram entendimentos diferentes, sobre aceitar ou não como válidos os votos sem cópia do documento de identidade. Perante esta dúvida, a mesa do Círculo de Fora da Europa, indeferiu a queixa do PSD (decidindo aceitar todos os votos) e a da Europa recusou-os. Ou seja, os votos com fotocópia do Bilhete de Identidade foram misturados com os votos sem fotocópia e votos "maus" contaminaram os "bons". Resultado: toda a votação das 139 mesas espalhadas pelos países europeus acabou anulada e o Tribunal Constitucional mandou repetir o acto eleitoral nos dias 12 e 13 de Março. Uma trapalhada inadmissível, que reflecte a irresponsabilidade dos partidos (todos!) com assento na AR, que preferiram um "acordo de cavalheiros" (!?) à alteração da Lei Eleitoral, que podia ter sido feita após 2019, quando foram detectados problemas semelhantes nas últimas eleições. Em 2019, foram anulados 30.000 votos da emigração e, este ano, 157 000 votos! Um escândalo.

Consequências imediatas: enquanto os emigrantes do Círculo da Europa não votarem, a atribuição dos dois lugares disponíveis na AR, não poderá ser concluída, pelo que o governo não poderá ser nomeado. Contas feitas, a contagem dos votos só estará concluída na segunda quinzena de Março, pelo que o governo (PS) só poderá tomar posse em Abril. Até lá não haverá Orçamento de Estado (chumbado em Outubro) e o governo (em gestão), terá de governar com duodécimos (só pode gastar 1/12 do OE em cada mês). Sem governo e orçamento aprovado, os salários, pensões de reforma e outros apoios sociais, ficarão suspensos e só serão pagos (retroactivamente) em Maio. Ou seja, perante este calendário, o OE2023 nunca será apresentado e discutido antes de Junho ou aprovado antes de Julho! Pior, era impossível. 

Resta saber se os emigrantes da Europa, que viram os seus votos invalidados, estarão na disposição de votar de novo, depois desta triste experiência que nos devia envergonhar a todos. 

Mas não são apenas os emigrantes portugueses que se podem queixar da forma como são tratados pelo governo. Também os imigrantes que escolheram Portugal para melhorar as suas condições de vida (no fundo a razão última da migração para outros países) são confrontados com a burocracia e a exploração a que são submetidos em muitas zonas do país. É o caso dos imigrantes oriundos de países asiáticos  (bengalis, nepaleses, indianos, paquistaneses, mas também brasileiros) que trabalham em condições deploráveis nas estufas do Sudoeste alentejano. 

As más condições de trabalho nas explorações agrícolas em Odemira não são uma novidade. A novidade aqui é que houve 300 trabalhadores que perderam o medo e foram pedir explicações à administração, no fim da jornada de trabalho.   

Em 2021, as más condições em que imigrantes trabalhavam ou estavam alojados, nas próprias instalações de algumas grandes empresas, motivaram reacções quando um surto de Covid-19 entre os trabalhadores trouxe a realidade laboral em Odemira, para as primeiras páginas dos jornais. Desta vez foi diferente. As queixas fizeram-se ouvir pelos próprios trabalhadores: "No dia 11 de Janeiro, no final da jornada de trabalho, Birat Khatri (Nepal) e largas dezenas de trabalhadores dirigiram-se aos escritórios da empresa para falar com a administração. O movimento ganhou força pela visibilidade dada por uma reportagem da SIC (a estação que esteve no local refere 300 manifestantes). Neste protesto pacífico, em movimento compacto, quiseram perguntar por que motivo, para as mesmas horas de trabalho, receberam uma menor quantia no mês de Janeiro; entre 200 e 400 euros a menos consoante os casos" (in "Público" d.d.19 Fevereiro). Ainda de acordo com a reportagem, a justificação dada pela empresa foi que, a isso eram obrigados, devido a suposta aplicação de um imposto novo decidido pelo governo português (!?). Segundo Birat e outros trabalhadores, ninguém sabe de que imposto se trata e continuam à espera de uma explicação. 

Mas, há mais: "Os trabalhadores sentem-se igualmente injustiçados por nunca lhes ter sido explicado como são contabilizadas as horas; e quando contabilizados os totais, não percebem porque são retiradas quantias (apresentadas como subsídios de vários tipos) aos 6,22euros que o trabalhador julgava ser o valor líquido a receber por hora. Enquanto descrevem a situação comprovam o que dizem mostrando os recibos de vencimento" (...) "O contrato prevê um horário flexível, em que o trabalhador é convocado de véspera. Da mesma forma, pode ser dispensado, se a mensagem pretendida pelo patrão for de penalização ou intimidação" (...) "Querem que a gente ande cada vez mais depressa, a colher as bagas com movimentos de braços sem parar. Estão em cima de nós a gritar: "Mais depressa, mais depressa", conta Thapa, também napalês, disposto a protestar" (...) "É muito duro. Estamos a trabalhar num ambiente quente, dentro das estufas, e só podemos beber a água que trazemos de casa. Às vezes por mais de oito ou dez horas. Se bebemos toda a que trazemos, pedimos, mas eles não nos dão, recusam. Se protestamos, chegam a mandar-nos para casa" (...) "Quem não cumpre o objectivo de encher um determinado número de caixas numa hora, ou percorrer uma determinada distância nesse mesmo intervalo, sem deixar uma só baga na árvore, é dispensado para o resto do dia e no seguinte, segundo o testemunho de alguns trabalhadores" (ibidem). Quem é dispensado, não tem direito a transporte para casa e tem de voltar a pé, muitas vezes quilómetros, até chegarem aos contentores onde a maior parte deles habita durante metade do ano. 

Muito mais haveria para denunciar nesta história, que nos envergonha. Até ao ano passado ninguém "sabia", mas toda a gente convivia bem com esta triste e degradante realidade. Agora, toda a gente sabe e não há desculpas. Nem mesmo a do famigerado ministro Cabrita, ex-responsável pela Administração Interna que supervisionava os actos eleitorais e as autorizações de trabalho concedidas aos migrantes. Portugal, um país de (e)migrantes não pode esquecer e tratar mal os (i)migrantes que fazem o trabalho que nós não queremos fazer. Só denunciando e penalizando estas prática de negreiros, poderemos ter moral para proclamar princípios civilizacionais que devíamos tomar como referência.