2021/12/22

No vacinar é que está o ganho (business as usual)

Como era expectável, o governo anunciou mais medidas restritivas para o período de festas que vai iniciar-se esta semana. A coisa já estava a ser preparada com alguma antecedência, mas a súbita explosão da variante Ómicron veio alterar os planos governamentais. Assim, em vez de confinarmos apenas na quadra natalícia e na primeira semana do ano, quando as escolas e a "vida normal" deviam recomeçar, eis-nos perante um novo plano de contingência.

Desta vez, António Costa, após auscultar o conselho de ministros, pôs o fato azul dos momentos solenes e anunciou, sem se rir, as novas medidas para a próxima quinzena. Estas incluem tele-trabalho obrigatório,  encerramento de escolas e ATLs para crianças, encerramento de bares e discotecas, limitação do número de clientes e distanciamento em restaurantes, proibição de ajuntamentos de mais de 10 pessoas na via pública, proibição de festas de fim-do-ano e de espectáculos e eventos desportivos. O controlo fronteiriço será retomado e os testes para entrar em determinados espaços passam a ser exigidos. Quem não fizer testes e não tenha certificado digital, não entra. Para pior já basta assim...

Para sublinhar a gravidade da situação, o primeiro-ministro pôs um ar ainda mais compungido e revelou os planos para a sua ceia de Natal que, este ano, não terá mais de 6 pessoas, a saber: ele, a mulher e a filha, o sogro, a mãe e o padrasto. De fora, ficará o irmão Ricardo (e respectiva família) que, à mesma hora, deve estar a fechar a edição da SIC-notícias. Era difícil imaginar pior cenário.

Depois de um ano memorável, em que Portugal começou com um dos piores índices de contágios a nível europeu, para se tornar o campeão da vacinação mundial, com uma percentagem de vacinados a rondar os 90% da população, eis-nos de volta ao local de partida! Mas, então, as vacinas não têm um efeito duradouro? E qual é a duração da vacina, que nos venderam como a solução milagrosa para os tempos mais próximos? E só algumas é que são efectivas, ou são todas? Ou, não é nenhuma? Estas e outras questões, são hoje alvo de polémica e acesas discussões nos Fora internacionais, com os especialistas das mais diversas áreas, a opinarem sobre o vírus e a melhor forma de o combater.

Uma das explicações mais óbvias, tem a ver com o aparecimento de novas variantes do vírus original, do qual já foram detectadas 4 ou 5 estirpes, entre as quais a Alfa, a Delta e, mais recentemente, a Ómicron. Porque o vírus se adapta e transmuta, é de esperar o aparecimento de mais estirpes num futuro próximo. Uma das formas de combatê-las, é através da vacinação. Neste campo, muitos progressos foram obtidos no último ano, com uma campanha de vacinação em massa a nível mundial. Só que, a sua distribuição, deixa muito a desejar. Num recente artigo sobre o tema, o cronista Daniel Oliveira (Expresso, d.d. 4/12), lança alguma luz sobre a desigualdade na distribuição das vacinas a nível mundial e os efeitos perniciosos desta política:

"O açambarcamento das vacinas para usar em grupos cada vez menos eficazes deixa o vírus à solta nos países mais pobres, que se tornam em viveiros de novas variantes potencialmente mais poderosas ou contagiosas". (...) "Mesmo com elevadas bolsas de resistência, 66% da população da UE tem a vacinação completa. Em África, são 6%. O número de pessoas dos países mais ricos que já receberam o recente reforço da vacina é quase o dobro dos que têm a vacinação completa nos países mais pobres. Gastamos dezenas de milhões de doses em crianças cada vez mais novas, com eficácia discutível, enquanto o vírus ganha força descontrolada nos países pobres". E, mais à frente: "uma das consequências da pandemia foi o reforço do poder dos Estados, que compreensivelmente limitam as liberdades individuais  e o funcionamento da economia. Mas, não beliscam as sacrossantas patentes de vacinas financiadas por fundos públicos. Junta-se a isto, o "neocolonialismo" denunciado há uma semana por Gordon Brown no "The Guardian": países que precisam de vacinas, como a África do Sul, são obrigadas a entregar à Europa as que eles próprios produzem. Em apenas um ano, a vacina Pfizer tornou-se o medicamento com maior volume de vendas em todo o Mundo: 36 mil milhões de dólares em 2021. É responsável por 80% das inoculações  na UE e 74% nos EUA". (...) "De acordo com o "Financial Times", longos meses depois do início da comercialização da vacina, a UE aceitou que o valor por dose passasse de €15,50 para €19,50. Numa nota aos accionistas, a empresa diz que conseguirá aumentar ainda mais as margens de lucro com o fim da pandemia" (...)

"Recusando abrir mão das patentes, a "solução" encontrada pelo G7 foi a doação. Mas o objectivo proclamado em Junho - 40% de vacinação para os 92 países mais pobres - está irremediavelmente comprometido. Os EUA estão em 25% do prometido, a UE 19%, o Reino Unido 11% e o Canadá 5%. Ao contrário do que acontecia no início, o problema já não é a produção, que está nos dois mil milhões de doses por mês. O problema é o açambarcamento. Os EUA têm 162 milhões de doses em stock, a UE 250 milhões e o Reino Unido 33 milhões. Que esta medida é completamente irracional, é o facto de 100 milhões de vacinas terem, entretanto, ultrapassado o seu prazo de validade em Dezembro, segundo a COVAX". (...) "O egoísmo vacinal está a concentrar as vacinas nos países mais vacinados. A Pfizer tem um esquema de preço distinto pelo nível económico dos países, variando entre os €19,50 na Europa, €9 nos países em via de desenvolvimento e €6 nos países mais pobres. É fácil perceber a quem lhe compensa mais vender e como as novas doses compradas pela UE para crianças e para a terceira toma passam à frente de encomendas mais antigas e mais urgentes dos países pobres". 

Ou seja, por mais vacinas que o Mundo desenvolvido produza e por mais vacinados que estejamos, as mutações do vírus vão continuar a infectar-nos, enquanto 1/3 da população mundial continuar por vacinar.  Nas palavras do articulista: 

"Tentamos combater a pandemia como não resolvemos as crises migratórias: julgamos que nada do que se passa "lá fora" nos incomodará. Mas, para o vírus não há muros ou o medo da morte no Mediterrâneo. Se não for a Ómicron a recordar-nos será outra variante qualquer". (...) "Mas, se o egoísmo mata, não deixa de ser lucrativo. E para boa parte dos governo o poder das farmacêuticas conta mais que o interesse comum".         

Moral desta história: quando virem o Costa, com ar circunspecto, a anunciar mais vacinas e mais um confinamento, pensem naqueles que nem sequer a primeira dose da vacina tomaram...