2021/01/23

Eleições Presidenciais: contas (im)prováveis

Em dia de reflexão, as reflexões possíveis sobre umas eleições atípicas que, no último mês, mobilizaram os portugueses - candidatos e votantes - para mais um acto eleitoral. 

Desde logo a especificidade destas eleições, em meio de uma pandemia que, inevitavelmente, vai influenciar o resultado, dado o nível de abstenção esperado. O próprio presidente da república admitiu, esta semana, não ser improvável uma segunda volta, caso a percentagem de votantes seja inferior a 30%. Percebe-se o receio de Marcelo: se a abstenção ficar acima de 70%, é bastante provável que haja uma distorção das percentagens previstas e, nesse caso, o candidato mais votado (o próprio Marcelo) pode não atingir os 50%+1, necessários para eleger um presidente à primeira volta. A única vez que tal aconteceu foi em 1986, quando Soares e Freitas do Amaral necessitaram de uma segunda volta para apurar o vencedor. Todos os restantes presidentes (Eanes, Sampaio, Cavaco) ganharam sempre à primeira volta as eleições que disputaram, da mesma forma que todos (inclusive Soares) fizeram dois mandatos (dez anos no total). 

Depois, a pandemia em si, que nas últimas semanas atingiu números impensáveis há um mês e tornou Portugal o país do Mundo com mais mortes por milhão de habitantes (!?). Perante tal quadro, seria avisado adiar estas eleições ainda que, do ponto de vista formal, tal não fosse possível sem alterar a Constituição, o que, desde logo, se revelou uma impossibilidade de calendário. É, portanto, em clima de estado de excepção (próximo do estado de calamidade) que as eleições vão disputar-se amanhã. Com vista a reduzir as filas de votantes e os perigos de contágio implícitos, foi possível aderir ao "voto antecipado", no qual participaram cerca de 250.000 votantes, que já votaram no passado dia 17. De mal a menos. Como sempre acontece nestas coisas feitas em "cima do joelho", os votantes do passado fim-de-semana esperaram horas nas filas para poderem votar, o que não abona em favor da organização. Porque não prolongar a votação por dois dias (sábado e domingo, por exemplo)? 

Para além da pandemia, outra das razões que podem contribuir para a pouca participação, é o facto do vencedor ser conhecido antecipadamente. Marcelo Rebelo de Sousa é, de há muito, o político mais popular do país e, não por acaso, foi o último a anunciar a sua candidatura, pois sabe não necessitar de fazer campanha para ganhar estas eleições. Basta-lhe "estar". De resto, também aqui se repete a história: todos os presidentes, depois do 25 de Abril, foram reeleitos.

Finalmente, a campanha eleitoral, que decorreu ao longo de um mês e constou de duas partes distintas: os debates e as acções públicas, ao ar livre e em espaços confinados. Foi uma campanha atípica, como não podia deixar de ser, onde rapidamente se perceberam as tendências predominantes. Nos debates, em que os candidatos tentaram em 30 minutos (15 para cada lado) apresentar as suas ideias; e nas acções, onde não havia contraditório e as posições ficaram mais claras. 

Os debates

Foram "mornos" e pouco motivadores. Entre um presidente em funções, experiente em evitar provocações (Marcelo) e as arruaças de um candidato sem ideias, que fez da provocação a sua arma (Ventura), restavam cinco candidatos democratas, três dos quais representantes de forças partidárias (Marisa Matias, João Ferreira e Tiago Mayan) e dois independentes (Ana Gomes e Vitorino Dias). Mais do que apurar "vencedores", ainda que nalguns momentos a clarividência de Marcelo tenha sido evidente, a sensação que ficou, foi a da maior parte dos candidatos, terem um discurso mais próximo de um candidato a 1ª ministro do que um candidato a presidente da república. Pelos vistos, nem todos conheciam os poderes atribuídos pela Constituição. Neste campo, o único candidato que propôs alterar a Constituição (para limitar os poderes do Parlamento) foi o candidato da extrema-direita que, como todos os ditadores em potência, não gosta de ser escrutinado....Já ouvimos este discurso em qualquer lado.

As campanhas 

Foram esparsas e confinadas, o que não aumentou a interesse pelo acto eleitoral. Marcelo (vencedor antecipado) deixou praticamente de fazer campanha de rua, limitando-se a aparecer em lugares ou cerimónias escolhidas, enquanto os restantes candidatos procuraram um contacto mais pessoal, ainda que reduzido em participantes. Foram utilizados mais meios tecnológicos (plataformas "zoom" e outras) o que permitiu abrir o leque de participantes, mas nem tudo correu bem. Ter trazido a campanha para a rua, ajudou, no entanto, a melhor compreender a mensagem e o comportamento dos candidatos. Isso foi mais visível na campanha de Ana Gomes (a candidata democrata, mais bem posicionada, depois de Marcelo) e na campanha de André Ventura, que usou e abusou da demagogia habitual, para chamar as atenções dos incautos. Aparentemente, o "tiro saiu-lhe pela culatra", seja pelas manifestações de repúdio que encontrou em Serpa, Coimbra, Évora e Setúbal (foi o único candidato vaiado), seja pela perda nas intenções de voto, onde seria ultrapassado por Ana Gomes, que recolhe desta forma os dividendos do "voto útil" de outras candidaturas democratas. 

Chegados aqui, resta-nos esperar por domingo. De acordo com a maioria das sondagens, publicadas na última semana, os resultados não devem afastar-se muito do quadro abaixo. Isto, no que respeita o lugar dos candidatos. 

Partimos de um cálculo simples: somámos as percentagens, de cada candidato, apuradas pelas quatro principais sondagens publicadas (RTP/Público/Católica, SIC/ISCTE/ICS, TVI/Pitagórica/Observador e TSF/JN/DN) e dividimos o total de cada um, por 4. Os resultados, deste inquérito "caseiro", foram:

Marcelo Rebelo de Sousa - 61,5%

Ana Gomes - 14%

André Ventura - 10%

João Ferreira - 4,9%

Marisa Matias - 4,2%

Tiago Mayan - 3,1% 

Vitorino Dias - 1,5% 

Vale o que vale, mas podia ser pior...

Até lá e para quem possa votar: máscara, gel, caneta e cartão de cidadão, bastam. 

Votem! 

2021/01/19

EUA: Aftermath


Em vésperas da tomada de posse do presidente Joe Biden, a cidade de Washington mais parece uma fortaleza, do que a moderna capital de um estado liberal e democrático, como são os Estados Unidos da América. Não é caso para menos. Depois da invasão do Capitólio do passado dia 6, levada a cabo por milhares de manifestantes, instigados por um presidente paranóico que se recusou reconhecer a derrota nas urnas, as autoridades nacionais (após informações fornecidas pelo FBI) puseram em marcha a maior operação de segurança em cerimónias congéneres: para além das barreiras e sebes, levantadas em redor dos edifício do congresso, foram mobilizados 25.000 elementos da Guarda Nacional, parte dos quais já dorme permanentemente dentro do Capitólio. Os moradores de Washington não se lembram de uma coisa assim e teremos de recuar a 1871 (Guerra Civil) para encontrar medidas similares em cerimónias oficiais.

Como chegámos aqui,  é a pergunta que todos fazem, dentro e fora do país, onde foi fundada a primeira democracia dos tempos modernos. Uma sociedade assimétrica, caracterizada por uma cultura de violência estrutural, primeiro dos colonos europeus contra os seus habitantes originais (os índios de diversas etnias) e, mais tarde, contra outros povos e países, um pouco por todo o planeta, sempre que os seus interesses geo-estratégicos são ameaçados. É esta, a par dos feitos e conquistas, a História do país mais poderoso do Mundo, hoje em decadência económica, mas ainda suficientemente forte, militarmente, para impor a sua lógica de "xerife" mundial. 

Como todos os impérios, também o americano já conheceu dias melhores e, fatalmente, irá perdendo influência, agora que novos actores surgem na arena política e económica mundial. É a "lei da vida dos impérios" e a História está cheia de exemplos, dos Gregos aos Romanos, dos Otomanos aos Britânicos, não esquecendo Portugal e Espanha, os impérios dominantes nos séculos XV e XVI. 

A cronologia é extensa, mas, resumidamente, podemos afirmar que a duração média dos impérios, ao longo da História, oscila entre os 100 e 150 anos. Segue-se a decadência, seja por factores externos como invasões, epidemias, cataclismos naturais (como aconteceu com as civilizações Inca, Maia e Asteca, na América do Sul); seja por implosão dos próprios regimes (caso da ex-URSS) incapazes de renovação interna e a consequente degeneração dos modelos adoptados.

O caso recente da presidência de Trump (depois de oito anos de Obama) ainda que em contra-ciclo, insere-se na onda populista (de direita) que atravessa grande parte do Mundo Ocidental: dos Estados Unidos ao Brasil, da Hungria à Polónia, do Reino Unido à Itália, todos estes países são, ou foram, em dado momento, governados por partidos cujos líderes partilham de uma ideia comum: a oposição ao que eles apelidam de "sistema". 

Porque o "sistema" é, por definição, o modelo de sociedade que estes líderes rejeitam, a pergunta que se impõe é: qual o modelo de sociedade que os populistas têm em mente? Consultados os seus programas e ouvidas as suas proclamações, é fácil concluir que (quase todos eles) afinam pela mesma diapasão, a saber: todos são contra a corrupção (quem não é?); todos defendem uma sociedade de pessoas de "bem" (de preferência, homens de cor branca); todos têm um bode expiatório, a quem culpam pelos males da sociedade (negros e imigrantes na América, estrangeiros na Hungria e em Itália, imigrantes e argelinos em França, muçulmanos e marroquinos na Holanda, ciganos em Portugal, negros e índios no Brasil). Todos, em maior ou menor grau, têm discursos sexistas, homofóbicos e xenófobos; todos exercem um poder autocrático, não permitindo vozes discordantes dentro dos seus partidos; quando chegam ao poder, rapidamente tentam silenciar os orgãos independentes, como a Justiça e a Imprensa e (pormenor importante) raramente criticam ou atacam os poderosos que controlam e (mais) corrompem as sociedades onde vivem. Nalguns países, chegam a defender a pena de morte e a prisão perpétua, assim como a liberdade de porte de arma e a existência de milícias populares, ao arrepio do estado de direito; desrespeitam as Constituições existentes e pedem uma "nova ordem" política. Ou seja, sabemos o que detestam, mas raramente obtemos respostas concretas sobre o modelo de sociedade que propõem, ainda que possamos adivinhar o que desejam. 

Num recente artigo, "O presidente que tornou a verdade irrelevante" (NRC-Handelsblad, 15/1/21) o jornalista Bas Blokker, faz um balanço do mandato de Donald Trump e o que fica após a sua passagem pela Casa Branca. O resumo é devastador e, ainda que a maior parte dos factos sejam conhecidos da opinião pública, rememorá-los agora, torna mais claro (se ainda fosse preciso) a personalidade do homem que incitou os seus seguidores a invadirem o Congresso, para impedirem a confirmação de um acto eleitoral, legalizado por todas as instâncias jurídicas e políticas do país. 

Alguns números, citados no artigo: segundo o "fact-checking" publicado pelo "The Washington Post", Trump teria mentido (ou afirmado não-verdades) mais de 30 000 vezes, em todo o seu mandato (em  "twitters", nas conferências de imprensa, em entrevistas e em discursos, dentro e fora do país). Não é caso único, claro: todos os presidentes anteriores, mentiram: Richard Nixon (Watergate), Billy Clinton ("affaire" com a estagiária), W. Bush Jr. (armas de destruição maciça no Iraque), mas como Trump não há memória.

A carreira política de Trump começou com uma mentira, não sendo pois de admirar que terminasse com outra: a negação da vitória de Biden, que recusou validar, acusando os democratas de fraude eleitoral, mesmo depois dos votos por correspondência terem sido recontados e validados. O mesmo, já tinha acontecido, relativamente a Obama. Em 2011, quando não era ainda candidato pelos Republicanos, acusou Obama de não ter a nacionalidade americana e de ter nascido em África. Mentira, claro. Obama nasceu no Hawai, um estado americano. Também afirmou à imprensa ter enviado uma equipa ao Hawai investigar as origens de Obama (quando o seu advogado lhe lembrou que não podia provar isso, ele respondeu que o que interessava era a notícia sair nos jornais. Depois, as pessoas não se lembravam de mais nada). Relativamente ao doutoramento de Barak, na prestigiada universidade de Harvard, Trump afirmou que tinha sido obtido por "discriminação positiva". Também disse que Obama tinha vindo do nada e não era ninguém, pois não o conheciam na escola. Interrogados os alunos das escolas, frequentadas por Obama, todos se lembravam dele como bom aluno. Mais uma mentira. 

Em 1455 dias de presidência, Trump teria mentido 30 529 vezes (média de 21 vezes ao dia!).  

Logo no primeiro dia da presidência, mentiu, através do seu acessor de imprensa, ao declarar que tinha havido mais público na sua tomada de posse, do que na tomada de posse de Obama, em 2008. As fotos que circularam por esses dias nas redes sociais e nos jornais, desmentem categoricamente tal afirmação. 

42% foi a média da sua popularidade nos anos que esteve na Casa Branca. Teve a mais baixa taxa de todos os presidentes, depois de 1945, quando o Instituto Gallup iniciou as sondagens 

Retirou apenas 3200 militares do Afeganistão, Iraque e Somália, apesar de afirmar que iria retirar todos os militares dessas guerras, que ainda continuam. Mais uma mentira.

Anunciou 453 milhas do muro que faz fronteira com o México, mas destas, só 80 milhas foram realmente construídas, já em finais de mandato. As restantes 373, foram reparações e aumentos no muro existente. 

750 dólares, foi a quantia paga em impostos, nos anos 2016 e 2017, de acordo com a sua declaração fiscal publicada pelo "New York Times". 

Durante o seu mandato, Trump esteve ausente 298 dias, para jogar golfe, na sua propriedade da Florida. 

Apesar de declarar não usar dados contra os seus adversários, obtidos no estrangeiro, tentou convencer o presidente Zelesky (Ucrânia) a comprometer o filho de Biden, num negócio que nunca se efectuou e foi desmentido pelo próprio presidente ucraniano. 

A célebre "Trump Tower", foi anunciada na sua inauguração, em 1988, como tivesse 68 andares. Na realidade só tinha 58. 

 Enfim, a lista é infindável, e tornar-se-ia exaustivo, repeti-la. Como afirmou um dos seus biógrafos, "Trump não tornou a mentira, verdade; ele tornou a verdade, irrelevante". Não importava que fosse mentira ou "bluff", o importante é que as pessoas acreditassem.

Porque mentia Trump? A sua sobrinha Mary Trump, no livro "Too Much is Never Enough", explica que Trump mentia para fugir às críticas do pai, que o castigava por ele ser muito burro. Era o mais tonto dos quatro irmãos. Mentia, para provar que era melhor, do que na realidade era. Numa entrevista em directo ao NRC, Mary declarou que toda a família sabia que ele era um tonto: "O homem nunca lia um livro. Toda a gente sabia disso. Não tinha nada na cabeça. Ele é um tonto, mas é o "nosso" tonto". 

O seu narcisismo patológico, fez dele um mentiroso compulsivo, que desdenhava dos adversários, despedia colaboradores que o criticavam, ofendia mulheres e minorias, discriminava negros e mexicanos, proibia a imigração de muçulmanos e refugiados e apoiava movimentos supremacistas brancos, como aqueles que, juntamente com fundamentalistas cristãos e negacionistas, invadiram, no passado dia 6, o Congresso em Washington. Nas últimas eleições teve 74 milhões de votantes a apoiá-lo (contra 77 milhões de Biden), que acreditaram até ao fim que ele estava a dizer a verdade. Depois de tanta mentira, acabou por sofrer dois processos de "impeachment", o segundo dos quais ainda decorre.

Trump saiu, mas o "trumpismo" não morreu. Está enraizado nos milhares de americanos, que sentem não fazer parte do "sistema" (os "descartáveis" nas palavras de Hillary Clinton em 2016): os menos letrados, os rurais, que na sua maioria não possuem a escolaridade média e que, nas últimas décadas, foram ultrapassados por mulheres letradas, pelas minorias étnicas e pelos imigrantes mais classificados. Americanos de uma América profunda, que se sentem ameaçados pelo desemprego, pois o seu trabalho foi deslocado para outros países de mão-de-obra barata e por "robots" que ocupam, hoje, o seu lugar. São estas populações, na margem do "welfare state", que sentem ter perdido o "combóio da História" e esperam agora por um novo líder, que as convença a acreditar nas suas palavras. Mesmo que estas sejam mentira.