2024/07/26

A insustentável leveza da hipocrisia


Há tempos, corria por aí um abaixo assinado reclamando a exclusão de Israel dos Jogos Olímpicos. Não sei qual foi o número final de assinaturas, mas na altura que o assinei eram já muitas dezenas de milhar. Este abaixo assinado era apenas uma das muitas manifestações visando a exclusão de Israel dos JO.

Confesso que nunca mais me lembrei do assunto. Mas hoje a curiosidade levou-me a tentar confirmar o que se passa no domínio das exclusões. Israel foi autorizado a participar, depois de ter liquidado (tenho a certeza que de forma pouco desportiva) centenas de atletas palestinianos.

Quando fui confirmar a lista de países participantes (já que pela transmissão da televisão essa informação não pareceu clara) veio nova surpresa: a Rússia e a Bielorússia foram banidas dos JO2024. A alternativa engendrada pelo COI foi a de convidar atletas dos dois países, a título individual, com o estatuto de Individual Neutral Athletes, com bandeira e hino próprios. Isto depois de passarem uma série de complicadíssimos testes. De apenas 60 atletas convidados, uns meros 15 aceitaram o vexame. Habitualmente, as delegações destes países incluem centenas de atletas. 

A delegação israelita inclui o atleta Peter Paltchik, "que assinava bombas lançadas contra os palestinianos com a frase “de mim, com prazer”". Hoje lá estava uma delegação israelita e uma delegação palestiniana, a a passar na cerimónia de abertura no Sena. Russos e ucranianos não poderão competir em paz e em espírito desportivo.

Que ganhem os melhores.

Assim vai o mundo...


2024/07/25

O carniceiro de Telavive

Se dúvidas houvesse sobre para que lado pende o poder americano, seja qual for, na questão da Palestina, basta ver o acolhimento dado ao Netanyahu no congresso americano, ontem e o desvelo com que foi saudado. Dir-se-ia que uma vasta maioria aplaudiu o facínora de pé.

Bastante significativo o desplante dele ao criticar os pouquíssimos congressistas que tiveram a coragem de se manifestar contra o carniceiro de Telavive, exibindo pequenos cartazes com o título que afinal lhe assenta melhor: war criminal. Sabe-se também que 70% dos israelitas o quer fora do poder e muitos acham que esta visita ficou aquém das expectativas, no que respeita à situação dos sequestrados.

E para quem tenha ilusões sobre a próxima eleição dos gringos e ao que a Kamala vem, saibam os mais incautos que não deixa de ser particularmente significativo que ela se tenha apressado a manifestar ontem contra manifestantes que tiveram coragem de chamar a Netanyahu o que ele é: um criminoso de guerra. Hoje, para completar o ramalhete, houve encontro entre ela e o nazi israelita (também com Biden e Trump). Diz ela que não ficará em silêncio perante o que se passa em Gaza. O que raio quererá isto dizer? Vai-se juntar aos manifestantes pró-Palestina a quem hoje ralhou? 

Por cá, faz dó ver alguns portugueses a vibrar com a nova candidata, como se se tratasse de política local e a Kamala fosse a nova Wonder Woman.

Basta!

2024/07/13

Um espectáculo de marionetas, de qualidade duvidosa

Claro que não se podemos afirmar que o problema é de hoje, daqui ou dali, em particular. Este que temos perante nós, agora, tem a ver com o apodrecimento crítico do sistema em que vivemos. Nem as palavras que se seguem serão verdadeiramente originais. Gente melhor do que eu e mais bem preparada do que eu, vem repetindo isto há décadas. Estas palavras pretendem ser apenas um desabafo, em consequência de factos recentes.

Assistimos nestes últimos dias a um número de variedades, abrilhantado pela orquestra da chamada "comunicação social", de tal forma nauseante, que nem todo o antiemético produzido no mundo nos pode valer.  É, portanto de vómito que vos falo.

Logo a seguir a um debate, amplamente divulgado para todo o mundo, em que vimos um presidente de um país, dito o mais poderoso do mundo (que quer fazer crer aos seus compatriotas que controla a sua recandidatura,) a fazer uma figura tristíssima perante um antigo presidente (que quer, igualmente, fazer crer que controla a sua recandidatura,) voltámos a ver o actual presidente, no encerramento do encontro de uma organização que se auto designa como a força de segurança do mundo, a repetir a mesma triste figura. 

Não estão em causa as gaffes. É um assunto sem importância. 

Biden está a concorrer, não o esqueçamos, contra o Trump. Trata-se de um corrida entre duas figuras patéticas, uma que, em circunstâncias normais, estaria num lar e outro, que, em circunstâncias normais, estaria na prisão. Mesmo que Biden acabe a ser substituído, esta “corrida,” as suas vicissitudes e a marca que está a deixar, dizem já bem do estado a que chegou aquele país.

Quando ouvimos falar no país mais poderoso do mundo, na economia mais forte, etc. e tal, é bom que a gente se vá lembrando em que mãos esse poder vai acabar a ser entregue. E é bom que não nos esqueçamos que esse poder é delegado pelos oligarcas, que o controlam verdadeiramente. O que revela a sanidade mental e a sua qualidade ética desta oligarquia.

Não há "luta pelo poder." Nenhum desses oligarcas vai perder. Não é por acaso que os fundos para as respectivas campanhas oscilam, para um lado ou para o outro, conforme as conveniências. Ainda há pouco se lia que estará em curso uma canalização dos fundos da campanha democrata para a republicana, perante a iminência de uma substituição e de garantida derrota.

Há o argumento estafado de que esta gente é colocada no poder pelos milhões que neles votam. É um argumento completamente tolo, insultuoso até para quem acredita verdadeiramente na Democracia. Primeiro, porque a escolha que é proposta aos votantes é falsa. Na verdade, não se trata de escolha entre duas candidaturas, mas sim de um condicionamento, meticulosamente executado, que fractura, fazendo crer que os eleitores estão perante duas visões diferentes do poder, mas que provoca divisões e desigualdades fatais, sem sustentação política legítima, entre povos, entre povos e governos e entre governos, pelos quatro cantos do mundo. Depois, e mais importante, porque, seja qual for o resultado, a marioneta de serviço, qualquer que ela seja, vai executar um e um único script. O sistema está totalmente viciado à partida. Não há escolha, não há voto útil, não há representatividade, não há diferentes visões da sociedade, não há debate, não há, em suma, Democracia. Como falamos de fantoches é legítimo falarmos de fantochada. O apoio ou rejeição dos cidadãos a qualquer uma destas candidaturas não faz qualquer diferença e o voto útil é tão fútil quanto o mergulho de Empédocles no vulcão.

Faz parte também da função da marioneta americana, que presta este serviço ocasional, escolher as "nossas" marionetas. Na Europa, a situação ainda é, talvez, pior: escolhe-se by proxy. As "escolhas" que condicionam a vida de todos nós, aqui na nossa terra, são entre duplas de marionetas pré formatadas, manobradas lá de longe, dando uma falsa imagem de luta pelo poder ou, pior ainda, de falsas duplas, co-optadas, como é o caso das estruturas de poder da UE.  

As marionetas encarregadas do poder na Europa são, desde há muito, as marionetas escolhidas pelas marionetas americanas. Que foram, recorde-se, escolhidas pelos oligarcas americanos, que não têm qualquer pejo em dar a "escolher" aos americanos um débil mental e um assaltante de estrada. O que diz bem, repito, dos seus valores e da sua sanidade mental. É a eles que, no fim, pagamos a nossa gasolina, os nossos carros, os nossos alimentos, as nossas portagens, é para eles que trabalha a maioria esmagadora da população, que vive nas cidades por eles controladas, nos bairros por eles desenhados, que circula nas estradas por eles construídas para chegar aos empregos por eles criados e destruídos, conforme a sua lógica perversa, que vive a vida na lógica deles, não na sua.

Não há, no mundo, lugar seguro, que nos proteja desta gente.

O resto é netflix, hbo, nyt, noite dos oscars, world series, foxnews, washington post, hollywood, cnn, e muitas outras ficções do género, para distrair o pagode. E futebol! Muito futebol! E quando o futebol vai a banhos, Jogos Olímpicos, para animar a malta e apaziguar conflitos e tensões internacionais...

2024/07/11

Teremos sempre Paris...

Numa semana marcada por duas das mais importantes eleições europeias do ano - no Reino Unido e em França - a vitória sorriu à esquerda, ainda que, no caso britânico, o resultado dos "trabalhistas" fosse, de algum modo, esperado. Já em França, onde Macron ensaiou uma "fuga em frente" (com a marcação de eleições antecipadas) as coisas não podiam ter corrido pior para o presidente francês. Depois da derrota nas europeias de 9 de Junho, onde se viu ultrapassado pela extrema-direita de Le Pen, o seu partido caiu, desta vez para a terceira posição e, surpresa das surpresas, a vitória caberia à (Nova) Frente Popular, constituída há menos de um mês.

No ano de todas as eleições, os resultados obtidos por forças progressistas em países como a Espanha, a Polónia, o Reino Unido e a França, mostram que o avanço das forças nacionalistas e populistas de extrema-direita, pode ser travado, ainda que nada esteja definitivamente ganho neste campo. Para que isso seja possível, há que reverter muitas das políticas actuais da União Europeia, onde a prioridade deixou de ser a inclusão e o combate às desigualdades, que durante anos constituiu um dos pilares da Europa, para passar a ser a defesa dos grandes monopólios e a discriminação social e étnica de parte significativa da população. 

São portanto estes dois vetores (economia e situação social) os que mais pesam na decisão final dos eleitores na hora da votação. Perante as urnas, os votantes pensam duas vezes: com a carteira e com a cabeça. Nada de novo aqui, ainda que a demagogia e (sede do) poder de alguns governantes os tornem insensíveis às reivindicações populares. 

Veja-se o caso do Reino Unido, onde uma decisão demagógica de Cameron conduziu a um Referendo (que ninguém pediu) sobre a permanência do Reino na União Europeia. O resultado do Brexit é conhecido e, oito anos depois, a maioria (53%) dos britânicos votaria hoje contra a saída da União Europeia. Entretanto, todos os índices económicos pioraram, o custo de vida aumentou exponencialmente, a exclusão social aumentou, a emigração ilegal também e a fuga de cérebros (brain drain) não parou desde então. Não é de admirar que, neste contexto, os 14 anos de governação "torie" tenham deixado o país em estado de negação que, se traduziu numa vitória esmagadora de um partido trabalhista e de um líder, sem carisma e reformista que baste.  

O mesmo processo se passou em França, ainda que as causas sejam algo diferentes. Depois de anos de alternância democrática, durante os quais republicanos e socialistas tentaram governar ao centro (desprezando as classes mais desfavorecidas e os direitos de minorias) os movimentos populistas e extremistas de direita cresceram. Paulatinamente, Marine Le Pen foi renovando o partido criado pelos seguidores de Pétain (entre os quais, Jean Marie Le Pen, seu pai) alterou o discurso e modernizou o "aparelho". Ela própria, que perdeu duas vezes para Macron, deixou a direcção do partido a um "jovem turco", que a substituiu e ganhou as eleições europeias do mês passado. Estava dado o mote para a ascensão da União Nacional ao governo de França, com a mais que provável candidatura de Le Pen à presidência em 2027. 

Macron, um presidente autoritário, que virou contra ele meia-França, depois do aumento da idade da reforma para os 66 anos, do aumento do preço dos combustíveis (que desencadearam as greves nacionais dos "coletes amarelos" e dos agricultores) e que nunca conseguiu apaziguar os guetos minoritários, onde grassa a exclusão social e a criminalidade, foi penalizado pela sua arrogância. 

Hoje, os conservadores britânicos e os liberais franceses, lamentam as derrotas e "lambem as feridas" das políticas erróneas seguidas nos últimos anos. Não foi por falta de avisos. Tantas concessões fizeram à (extrema) direita, que esta os ultrapassou. Um clássico: quando alimentas um crocodilo, arriscas-te a ser comido por ele.          

Acresce que, os anos de pandemia, a guerra da Ucrânia e a inflação (destas derivada), não vieram ajudar os tempos, já de si, difíceis. Tempos negros, que podem piorar, caso Trump seja eleito nos Estados Unidos. 

Entretanto, a esquerda (meia desfeita) tenta reerguer-se. Não será fácil, depois de anos de oposição em que não soube renovar-se e continuou a confiar nos velhos métodos. As ideologias dos anos sessenta e setenta, nas quais assentam muitos dos seus pressupostos, não disfarçam a incapacidade de lidar com os novos desafios. A utopia mantém-se, mas temos de ir sempre em frente, mesmo que o horizonte se afaste. Neste sentido, a vitória da "Nova Frente Popular" em França (quem diria?) é, para além da surpresa, um estímulo. Para já, mostrou que a unidade na acção é possível. Foi possível. Para que não se transforme numa "vitória de Pirro", há que continuar, se possível evitando os mesmos erros. 

Moral desta história: nunca devemos menosprezar os franceses. No futebol e na revolta. Por isso, lá voltamos sempre, à França da Liberdade, para podermos dizer, como Bogart: "we'll always have Paris..."


2024/06/28

Assange

Agora que Julian Assange se encontra (aparentemente) a salvo, não faltarão longos e elogiosos artigos sobre a sua postura e resiliência, demonstradas ao longo de 12 anos de cativeiro que passou em Londres. Primeiro, na embaixada do Equador (7 anos) onde lhe concederam asilo político e, mais tarde, na prisão de alta segurança de Belmarsh (5 anos), onde aguardou o desfecho do processo de extradição instaurado pelos EUA.

Um longo caminho, seguido por milhões de cidadãos em todo o Mundo, ainda que as notícias tenham sido parcas e nem sempre veiculadas da mesma forma pelos media internacionais. Hoje, percebe-se melhor porquê: Assange, através da agência Wikileaks (da qual é co-fundador) tornou-se o whistleblower mais famoso do Mundo, ao denunciar os crimes de guerra praticados pelas tropas norte-americanas no Iraque e no Afeganistão, factos comprovados e nunca desmentidos, que os media oficiais, coniventes com a guerra em curso, não publicavam. Milhares de documentos e vídeos encriptados, obtidos pela Wikileaks e postos à disposição dos media interessados na sua publicação. 

A história, para quem não a conhece, descreve-se em poucas palavras. Conta-a o El Pais, na sua edição de 26 de Junho último, ao longo de quatro páginas, para guardar, sob o título: "Uma cave, milhares de papéis e horas de investigação":

"Alguns dos jornalistas que, em finais de 2010, trabalharam na maior filtragem de documentos, a que tinha tido acesso à data El Pais, nem sequer conheciam aquela cave situado no Piso -1, da sede do periódico em Madrid. No dia 1 de Novembro daquele ano, Julian Assange, tinha convidado o periódico a juntar-se ao The Guardian, The New York Times, Le Monde e Der Spiegel, numa macro investigação com milhares de telegramas diplomáticos norte-americanos. Três andares abaixo da redacção, foi posta em marcha uma equipa com dezenas de repórteres, muitos chegados com recados de responsabilidade de meio-mundo, sem saber com o que iam confrontar-se. Havia que trabalhar contra-relógio para descodificar  alguns dos segredos da política externa dos Estados Unidos, antes do dia 28 de Novembro, data da publicação. O que aí teve lugar, foi um esforço de colaboração entre jornalistas e meios internacionais, sem comparação. O fenómeno Wikileaks tinha chegado ao seu cume, "uma montanha na Flandres", para um tempo novo no jornalismo de filtros (leaks) e investigação. O material que a Wikileaks pôs a disposição destes títulos, foi tal que obrigou a estabelecer mecanismos para garantir a total confidencialidade do projecto. Ninguém, nem fora nem dentro daquela cave, podia saber do que se tratava. Os documentos, mais de 250.000 telegramas do Departamento de Estado, só podiam ser examinados naquele espaço e nunca ultrapassar as suas portas. A comunicação com a equipa de Assange, então com 39 anos, fazia-se através de mensagens encriptadas. Um método a que não estavam acostumadas, à época, algumas das redacções, mas que, 13 anos mais tarde, se aceita com toda a naturalidade". 

E o articulista (Óscar Gutiérrez) continua: "El Pais foi o último, dos cinco media implicados, a receber os papéis. O desafio, em apenas algumas semanas, foi gigantesco. A direcção do projecto necessitou de envolver uma equipa técnica para que aqueles milhares de arquivos em texto corrido, fossem digeríveis pelos jornalistas. Os responsáveis tiveram de lidar com as pressões e versões da parte invocada, a administração de Barak Obama. O portal da Wikileaks foi vítima de pirataria informática. Finalmente, um erro de distribuição transportou alguns exemplares da revista alemã Der Spiegel aos quiosques, antes de tempo. O lançamento, teve de ser antecipado. Às sete da tarde, a informação estava no ar: falava de espionagem, manobras ocultas e corrupção; de dirigentes como o russo Vladimir Putin, o venezuelano Hugo Chaves, o iraniano Mahmud Ahmadineyad, o francês Nicolas Sarkozy, o chinês Hu Jintao, o italiano Sílvio Berlusconi, a alemã Angela Merkel... Criou, por fim, outro precedente: pela primeira vez, uma exclusividade histórica era publicada na internet. A Rede era o "habitat" de Assange e foi aí que surgiram, pela primeira vez, muitos dos seus filtros" (ibidem).

A partir daqui, a história, é conhecida. As sucessivas publicações Wikileaks, suportadas e filtradas com documentação comprometedora para diversos regimes do Mundo (em particular para o envolvimento dos Estados Unidos na guerra do Iraque e do Afeganistão, à revelia das leis internacionais), fizeram de Julian Assange o "inimigo a abater". Em Abril de 2010, sete meses antes de Assange ter compartilhado os documentos diplomáticos, a Web publicou o vídeo gravado por um helicóptero dos Estados Unidos, durante um ataque a Bagdad, no qual morreram 11 iraquianos entre os quais um fotógrafo da agência Reuters. Um ano depois desta notícia, o El Pais voltou a participar na divulgação de novos "filtros" do portal, desta vez mais de 700 ficheiros sobre a prisão de Guantánamo.              

"O trabalho, em 2010, destes cinco títulos com os telegramas do Departamento de Estado, disponibilizados pela Wikileaks, serviu, pelo menos, para duas coisas: em primeiro lugar, para abrir de novo a porta aos chamados whisteblowers ou "gargantas fundas", os informadores que, como a soldado Chelsea Manning (a origem desta macro-filtração) querem tornar públicas as actividades ilícitas da organização para a qual trabalham. A União Europeia aprovou precisamente uma directiva para protecção destas pessoas em finais de 2019; em segundo lugar, o Cablegate, lançou  uma nova era de jornalismo de colaboração entre grandes medias, que eram, a priori, competidores. A Manning seguiu-se, em 2013, Edward Snowden, ex-analista norte-americano da agência de espionagem NSA que filtrou informação sobre o programa de vigilância global dos EUA aos diários The Guardian e The Washington Post . Três anos mais tarde, outra aliança de media, publicou os chamados Panama Papers, a partir de documentos de uma firma de advogados do Panamá, especializada em paraísos fiscais. A análise desta investigação contou com a colaboração do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ na sua sigla inglesa). Em 2021, a ICIJ coordenou, com a colaboração de uma equipa do El Pais, juntamente com jornalistas de 17 países, a investigação de uma filtragem de 11,9 milhões de arquivos internos sobre fiscalidade opaca, os Pandora Papers, um dos melhores exemplos, até à data, deste novo panorama de filtragens e investigação com que a Wikileaks e Assange sacudiram o jornalismo naquele Novembro de 2010, a partir de uma cave de uma redação para o Mundo inteiro" (ibidem). 

Em todo este percurso, não faltaram detractores de Assange e dos seus métodos. Muitos jornalistas não gostavam dele e acusavam-no de ser um tipo antipático; depois, confrontados com notícias que não podiam desmentir, acusaram-no de não ser jornalista, mas apenas um "hacker" com acesso a servidores do estado e informação classificada; mais tarde, disseram que as suas informações punham em perigo as embaixadas e diplomatas dos países envolvidos; finalmente, e perante a evidência de factos (que nunca foram desmentidos) começaram os ataques ad-hominem, sobre uma pretensa misoginia e a violação de duas call-girls em Estocolmo, que lhe valeu uma acusação do tribunal sueco, o qual exigiu a sua presença naquele país para ser julgado. Assange não se recusou a depor perante o tribunal, mas recusou fazê-lo na Suécia, receando ser extraditado para os EUA, que também tinha pedido a sua captura. A própria Hillary Clinton, que perdeu as eleições contra Donald Trump, atribuía a sua derrota ao Wikileaks, por esta plataforma ter divulgado emails confidenciais do seu servidor em vésperas de eleições, um argumento que está por provar, já que a própria candidata não tinha o apoio unânime do partido democrata e muitos apoiantes preferirem Bernie Sanders, o outro candidato democrata. 

Voltando ao El Pais e a um artigo de Javier Moreno, director do jornal em 2010, quando se publicaram as informações baseadas nos telegramas filtrados por Wikileaks, com o título "Considerem-se avisados":

"Finalmente, o calvário do fundador do Wikileaks resulta em intimidação suficiente para os Assanges das próximas décadas. Limitará a investigação jornalística baseada em informação classificada. Quanto deixaremos de saber sobre o funcionamento do estado profundo? Em quem vamos delegar a fiscalização de tudo isto? No próprio estado e nas suas agências? Se as partes do estado que vemos e podemos examinar, raramente funcionam bem, porque havemos de supor que as que não vemos, funcionam? Se nas partes que observamos, se cometem abusos, como não suspeitar do que sucede naquelas em que não o fazemos? E esta última questão, mais do que aos jornalistas, afecta-os a todos, estimados leitores. Portanto, considerem-se avisados" (ibidem).

2024/06/26

A hipocrisia, em episódios


O que se segue vem propósito deste vídeo, que chegou ao meu conhecimento através do meu companheiro de redacção, Rui Mota. 

Os russos acabam de ordenar a suspensāo da RTP e dos sites do Público, do Expresso e do Observador. Estamos em 2024.

Desde 2022 (Dois mil e vinte e dois!) que na terra da « liberdade de expressão » os canais russos RT e 1Russia estão bloqueados, por via do Regulamento UE 2022/350. A UE em estado de hipocrisia.

Não há ilusões: de cada lado deste conflito, os canais informativos difundem a informação que lhes interessa. Mas a terra da « liberdade de expressão » deveria, acho eu, dar o exemplo. Cada um de nós que decida. No caso português, aliás, liberdade de expressão é apontada, muito justamente, como uma das conquistas de Abril, depois de décadas de vergonhoso lápis azul. Eu, por mim, gostava de poder escolher as minhas fontes de informação, sem constragimentos. Sobretudo se estou a pagar por um serviço, como é a televisão por cabo. A sensação que dá é a de que os distribuidores de televisão de cabo se transformaram numa coisa a fazer lembrar aqueles restaurantes de prato único. Podes escolher desde que seja o prato do dia.

Ora, na RTP 3, ontem, a apresentadora de um dos serviços noticiosos questionava o correspondente da RTP na Rússia, um tal Evgueni Mouravitch. Perguntava ela, com ar pimpão, ao Evegueni: « Moscovo está a isolar os russos? » E o camarada Evgueni lá foi respondendo dizendo, entre outras coisas, que as pessoas têm medo das câmaras… A Rússia é um país em guerra, se calhar as câmaras não são aquilo que os russos mais temem neste momento. Mas o Evgueni inspira este temor, é sabido. 

Portugal, por outro lado, é um país que anda, há muito, apenas numa guerra sem quartel consigo próprio… Permitir ao povo português saber o que se passa no mundo, disponibilizando as ferramentas necessárias para averiguar a fundo todos os lados destes conflitos, que não são nossos, seria um dever elementar. Constitucional, diria até.

Conclusão do camarada Evgueni: a proibição do poderoso broadcaster, instituição a quem toda a comunidade internacional tira o chapéu, tal o seu peso no mundo mediático, que é a RTP, é « propaganda russa, ao estilo da URSS ». A proibição dos canais russos em Portugal é, por seu lado, perfeitamente legítima, certamente, uma ordem dos deuses, reunidos no Olimpo… Poderíamos perguntar, assim, da mesma forma, quem é que a UE quer então isolar, ao proibir a RT e a 1Russia. A RTP em estado de hipocrisia.

O camarada Evegueni fala de tudo isto, com ar grave, mas sofrido, mostrando umas olheiras que lhe conferem um ar apropriadamente amedrontado. Fala de tudo, incluindo das "enormes dificuldades" do seu esforçado trabalho, directo de Moscovo, sem que vejamos, porém, qualquer cano de espingarda apontado à sua cabeça ou um agente do KGB, por detrás dele a sabotar a emissão… E fá-lo há anos. O testemunho do camarada Evegueni está aqui. Aposto que o camarada Evegueni vai ter as suas credenciais renovadas.

Voltando ao vídeo...

Assange está livre. Celebrar a sua libertação passa por perceber a essência do que ele aqui refere. Estas palavras são um complemento do que refiro acima, relativamente à proibição de órgãos de informação, quer do lado da chamada “comunidade internacional” quer do lado da Rússia. Os objectivos são os mesmos, embora a UE, que apregoa outros valores, tenha sido pioneira na tomada desta medida. 

O exercício que nos pode levar a perceber melhor as causas dos diferentes confrontos e tentativas de confronto que ocorrem hoje por todo o mundo, não é fácil e esbarra, sobretudo, desde logo, nos imensos preconceitos que cada um de nós carrega. Se entrarmos nele com ideias feitas nunca chegaremos a qualquer conclusão útil. E tudo isto se agrava com a absolutamente intolerável e hipócrita sonegação das ferramentas. Portanto, ouvir estas palavras do Assange e celebrar, ao mesmo tempo, a sua libertação será sempre um acto de repugnante hipocrisia. 

A libertação de Assange foi fruto de uma intensa campanha dos povos do mundo. “As guerras são quase todas resultado das mentiras dos média”, diz ele. A falta de solidariedade desses média para com ele, ao longo destes anos explica muita coisa… 

2024/06/11

Taxi Driver (33)

- Bom dia.

Bom dia? Chuvinha não falta... 

- São só uns "pingos", não vale a pena exagerar. 

Até ontem, esteve bom, mas desde há dois dias, tem chovido sempre. Logo agora, que eu e a minha família estávamos a planear os feriados no "monte".

- A chuva também faz falta e no Alentejo chove  pouco...

Lá isso é verdade. Mandei a minha mulher e os meus filhos à frente para "limpar" uma casa que temos lá. Eu não posso ir agora, pois estou a trabalhar, mas em Julho vou lá passar umas semanas e espero que não chova...

- Em que região fica a sua casa?

No Alto Alentejo. É uma pequena aldeia, a 12km de Portalegre. Entre Portalegre e Nisa.

- Não conheço bem essa região. Estive em Portalegre e Nisa, mas aí deve chover pouco. A chuva faz muita falta. Pelo menos no Alentejo e no Algarve, que estão desertos. Não há população, não há agricultura e por isso os campos estão secos. Sem chuva, pior um pouco, pois a terra seca e ninguém a pode aproveitar. A desertificação do interior, é um desastre, humano e ecológico.

Nas aldeias, é pior. Em Portalegre e em Nisa, que são cidades, a população é estável, pois sempre há comércio, escolas, correios, bancos...mas nas aldeias em redor, é uma tristeza. As crianças da minha aldeia, não têm transporte para irem à escola e, se não fossem as câmaras a disponibilizar um autocarro, nem à escola podiam ir.

- Sim, é dramático. Há anos que é assim. Toda a gente sabe, mas ninguém parece encontrar soluções para repovoar o interior. Para além disso, há outro problema, que é a demografia. Portugal está a envelhecer e não há gente nova. Sem pessoas, não há desenvolvimento. Talvez, com a nova imigração. Muita gente já está a ir para o interior. No Baixo-Alentejo, há cada vez mais imigrantes a trabalhar na agricultura. Nas estufas, são milhares de pessoas. Não há imigrantes na sua zona?

Sim, eu sei. Mas esses imigrantes, de que está a falar, são todos de países asiáticos. Em Portalegre e em Nisa, também há, mas são mais de países de Leste. Ucranianos, na maioria. Já lá estão há muitos anos.

-  Não sabia, mas se lá estão há muitos anos é porque há emprego na região e isso é bom, não?

Sim, é bom, mas eles integram-se melhor. Falam todos português e os filhos vão à escola. Os outros, do Nepal e do Paquistão, é mais difícil a gente percebê-los. Só falam a língua deles ou inglês. Também deve ser uma questão de religião, penso. Rezam muito. Mas, são gente simpática, sim. Não falam com ninguém, mas portam-se bem...

- Claro, porque é que haviam de portar-se mal? Eles querem é trabalhar e por isso vieram para Portugal. Como nós fazíamos há 50 anos atrás. Também íamos por essa Europa fora e também nos portávamos bem. Eu vivi muitos anos na Holanda e os portugueses eram muito bem vistos na sociedade holandesa. É sempre assim, é preciso dar-lhes condições de trabalho, habitação e papéis para poderem trabalhar. Mais cedo ou mais tarde, integram-se.

Não sei, mas penso que muitos asiáticos não ficam cá muito tempo. Trabalham nas colheitas e nos frutos "vermelhos", depois desaparecem e voltam no ano seguinte. Alguns, quando recebem os papéis de legalização, emigram para outros países europeus. 

- Sim, essa história é conhecida. Vão para países onde ganham mais, claro. Mas, se os legalizarem rapidamente e não tiverem de esperar anos por uma licença de estadia, muitos ficam cá. Além disso, a maior parte dos trabalhadores das estufas estão ilegais, não descontam e recebem ordenados miseráveis, como deve saber. 

Eu sei. Tenho familiares no Baixo-Alentejo e dizem que, em Beja, ao fim da tarde, são dezenas de indianos a andar pela cidade, quando regressam de trabalhar na agricultura.

- Qualquer dia, chegam à sua aldeia, vai ver...

Já chegaram! Ainda este ano, na Páscoa, fui passar uns dias ao "monte" e a minha mulher chamou-me a atenção para um indiano, de turbante laranja, que andava na aldeia. Nunca lá tínhamos visto nenhum. Se calhar andava à procura de alguma casa para comprar...

- Se calhar. Ou estava à procura de emprego, quem sabe? Há sempre algo para fazer. 

Lá isso é verdade. Nem que seja a trabalhar numa quinta...

- Bem, já chegámos. Boas férias e, se chover, não desanime. Água, é preciso.

2024/06/08

Eleições à porta, trancas nas janelas...

Em dia de reflexão, mais do que apostar nos partidos concorrentes, importa saber para onde vai a Europa em tempos de turbulência. 

Depois de uma campanha morna, onde os maiores partidos apostaram em equipas renovadas e os pequenos partidos procuraram manter os deputados que restam, não será difícil fazer prognósticos.

Assim, na noite eleitoral, teremos dois "vencedores" absolutos (Chega e IL) que, pela primeira vez, terão representantes no parlamento de Estraburgo; dois partidos que podem vencer estas eleições (AD e PS) e os restantes partidos, que podem (ou não) conseguir um deputado (BE, CDU e Livre). Aparentemente, o PAN será o único partido que não deverá eleger qualquer representante. 

A acreditar nas sondagens, os 21 lugares de Portugal no Parlamento Europeu, poderão ficar distribuídos da seguinte maneira: 7 deputados para o PS, 6 deputados para a AD, 3 deputados para o Chega, 2 deputados para a IL, 1 deputado para o BE, 1 deputado para a CDU e 1 deputado para o Livre. Caso os pequenos partidos não consigam eleger deputados, os votos remanescentes reverterão para os maiores partidos e, nesse caso, o PS poderá ter 8 deputados, a AD 7 e o Chega 4, restando 2 lugares por distribuir, provavelmente para a IL.

A confirmar-se esta distribuição de lugares, poderemos concluir que houve uma deslocação de votos para o centro do espectro político ("voto útil" nos partidos europeístas), em detrimento de votos nos partidos nacionalistas e eurocépticos. Não há grandes novidades aqui, já que a taxa de aceitação da União Europeia em Portugal é das maiores da UE (fundos generosos e oportunidades de emprego no espaço europeu), ao contrário do que acontece em muitos países do centro e norte da Europa, onde o sentimento anti-federalista é maior. 

Foi entre estes "dois mundos" que a campanha eleitoral, se desenrolou: uma primeira semana, onde a política nacional e os ataques pessoais dominaram os comícios; e uma segunda semana, onde os problemas europeus ganharam relevo, devido às guerras em curso (Ucrânia e Gaza) e à Lei Europeia das Migrações, recentemente aprovada e subscrita por Portugal.

Se os problemas nacionais (saúde, educação, habitação, justiça...) são temas centrais em todas as eleições, a "Europa", parece não interessar muito ao português médio, já de si pouco informado e nada internacionalista. 

Sim, as guerras são um "horror", mas são lá longe e quem morre são os estrangeiros ou os "árabes" (uma categoria à parte), pelos quais não podemos fazer muito. Organizamos umas colectas à porta da igreja e no Banco Alimentar, enviamos uns camiões com medicamentos e fornecemos material militar caduco para combater os "russos". Sobre a posição de Portugal em conflitos armados no continente (do qual fazemos parte) seguimos a "cartilha" de Washington e Bruxelas ou, na melhor das hipóteses, escutamos os generais na reserva, que pululam diariamente nos estúdios de televisão e analisam o "avanço das tropas". Compreende-se: depois da última campanha a sério (guerra colonial em África) nunca mais tiveram oportunidade de mostrar os seus "dotes". A maior parte morreu ou reformou-se e, os que ainda restam, limitam-se a traduzir em linguagem popular os "briefings" dos quartéis-gerais da NATO. Porque a guerra não acaba nunca (o que seria da industria do armamento sem guerras?) os mais belicosos lembraram-se de sugerir o regresso do SMO (serviço militar obrigatório, para quem não sabe). Ora, aí está, a solução para todos os problemas! Ninguém fala em paz, mas todos acreditam na guerra, Vão mesmo mais longe, pois dizem que para conquistar a paz, temos de fazer a guerra ("pax romana", para quem não sabe). Uns cómicos, estes generais e políticos tristes.

Para além da guerra, questão central nestas eleições, o problema das migrações foi outro tema discutido na campanha. Portugal não é excepção, uma vez que se tornou um país de imigrantes nas últimas décadas, sem que a situação legal de grande parte destes trabalhadores tenha sido resolvida. De acordo com os números, fornecidos pelos serviços respectivos, existirão cerca de 400.000 processos pendentes na AIMA (ex-SEF), alguns dos quais aguardam anos (!?) para serem processados. Ou seja, estes imigrantes esperam por uma autorização oficial, que garanta a sua permanência, mas entretanto trabalham, descontam para a segurança social, têm os seus filhos na escola, mas estão ilegais!

Por que é que isto acontece? A explicação mais óbvia é a burocracia existente, um mal que não conseguimos erradicar e da qual os nacionais também padecem. Depois, a falta de organização congénita, num país "habituado" a emigrar, mas que só há poucos anos se viu confrontado com o fenómeno da imigração. Faltam estruturas de apoio especializadas, nomeadamente nos grandes centros urbanos, que são aqueles onde há mais imigrantes. Acresce que estes "novos" imigrantes são oriundos de países que não pertencem ao espaço "Schengen": entram por via terrestre, não falam a língua, desconhecem as leis laborais e são aliciados por intermediários (redes mafiosas) para trabalhar em serviços não qualificados, a maioria na agricultura, na hotelaria e na restauração, onde são sujeitos a regimes de exploração terceiro-mundistas. Muitos vivem em condições de habitação deploráveis e já fazem parte da população dos sem-abrigo, uma situação diariamente denunciada pelos órgãos de comunicação social, que nenhum governo pode ignorar.

É neste "caldo cultural", que crescem os partidos racistas e xenófobos, como o Chega e o ADN (de inspiração evangélica), que passaram a campanha eleitoral a falar da situação dos imigrantes, eles que nunca se preocuparam com a sua exploração! A demagogia dos populistas parece ter dado frutos, dado que o actual governo, certamente assustado com as sondagens, resolveu decretar uma lei proibindo a imigração temporária, para quem não tenha um contrato de trabalho adquirido no país de origem. Solícito, o presidente da república aprovou-a em 24h! Extraordinário. Desta forma, o governo, que já tinha um problema, criou outro: continua sem resolver a legalização de 400.000 imigrantes residentes e não poderá impedir a entrada da imigração ilegal, que continuará a chegar através dos "passadores" habituais. Ou seja, os ilegais deixam de entrar pela porta e passam a entrar pela janela...  

Restam as eleições, propriamente ditas. Amanhã, saberemos os resultados. Porque estas coisas estão todas ligadas, não haverá surpresas. Surpresa, seria, se as políticas europeias mudassem...

2024/05/14

Nem tudo vai mal em Portugal (de acordo com a imprensa espanhola)

Não abundam as referências a Portugal na comunicação social espanhola. Nem mesmo as desportivas, onde os feitos lusos são de forma olímpica ignorados, a menos que se trate de uma contratação milionária para um clube de Espanha, esse sim, o centro das atenções.

No ano do cinquentenário da revolução portuguesa (et pour cause) o foco sobre Portugal redobrou, o que em si não deixa de ser uma boa coisa, segundo o velho princípio "não importa que falem mal, desde que falem de nós". 

Acontece que, desta vez, não só "falam", como falam muito. Esta redobrada atenção, com que determinados acontecimentos em Portugal são seguidos no país vizinho, ilustra uma tendência crescente nas publicações espanholas em diversas áreas, da política à cultura, da economia ao clima, passando, como não podia deixar de ser, pelo desporto-rei e a Eurovisão, eventos planetários por definição. Vem isto tudo a propósito de dois extensos artigos, publicados nos últimos dias, sobre a situação económica e a diplomacia portuguesa do novo governo.

Sob o título "O vagão da cauda é agora a locomotiva económica europeia", o suplemento"Negócios" do jornal "El País", dedicou um extenso artigo à situação actual dos "PIGS" (acrónimo pejorativo dos nomes de Portugal, Itália, Grécia e Espanha, durante a crise do euro), onde analisa a situação das respectivas economias, em franca recuperação (depois da crise financeira de há dez anos), face aos países do Norte da Europa.

Assim, e no que a Portugal diz respeito, a articulista (Tereixa Constela) constata que "dez anos depois da marcha  dos homens de negro, aqueles gestores internacionais da Troika, que sanearam as contas públicas com mais golpes de machado do que bisturi, Portugal emerge como o aluno mais diligente do Sul da Europa". Segue-se um enunciado dos resultados obtidos nos últimos nove anos: "(Portugal) conseguiu em 2023 que a dívida pública baixasse de 100% do PIB para 98,7% e contabilizou um superavit histórico, o mais alto desde a queda da ditadura em 1974. Portugal e Irlanda são os únicos membros do antigo clube dos PIGs que colocaram a dívida pública abaixo dos níveis anteriores à Grande Recessão. A economia vive um momento dourado graças às exportações, com o turismo batendo recordes. O ano de 2023 foi o melhor da história, com mais de 30 milhões de visitantes e 25.000 milhões de euros de receita. O desemprego continua em níveis baixos, com uma taxa de 6,5% em Março. Também a inflação desacelerou mais rapidamente do que em países como a Alemanha, França, Países Baixos, Espanha e Grécia e situa-se em 2,29%". A articulista não deixa, no entanto, de apontar pontos negativos: "Em contrapartida, o país sofre uma crise grave de habitação, com os preços a disparar e fora do alcance dos baixos salários de Portugal, onde o salário médio, em 2023, foi de 1505 euros, face aos 2128 euros em Espanha. A intervenção internacional salvou o país da bancarrota com um resgate de 78 000 milhões de euros (o terceiro solicitado em meio século de democracia), mas exigiu medidas que arruinaram a vida de milhares de pessoas que perderam casas e empregos. Nos três anos do programa de ajustamento (2011-2014) destruíram-se mais de 330 000 postos de trabalho e desapareceram 90 000 empresas. O desemprego disparou entre os jovens e atingiu 42%. A única saída, que muitos encontraram, foi o velho caminho da emigração. Mas, se nos anos da ditadura, partiam os trabalhadores com pouca formação, no século XXI partiram licenciados universitários em idiomas e profissionais qualificados. Uma perda, em muitos casos irreversível para o país que os formou e que se traduziu num sismo demográfico que condiciona a economia e a sociedade do presente". Estas e outras preocupações, são corroboradas por analistas portugueses (i.e. André Freire) que confirmam o diagnóstico: "a obsessão pelos superavits orçamentais, contribuiu para a erosão do poder de compra das classes médias e a qualidade dos serviços públicos".  Até aqui, nada a contrapor.

De outro índole, é a entrevista do mesmo jornal ao ministro dos negócios estrangeiros Paulo Rangel, sobre temas cadentes da política internacional. Questionado sobre a possibilidade de Portugal acompanhar a posição de Espanha e da Irlanda, no reconhecimento do estado palestino, Rangel refugia-se na conhecida posição do "nim", uma característica da diplomacia portuguesa: "Nós temos uma posição muito próxima da posição da Espanha e Irlanda, ainda que não seja exactamente a mesma. Há uma diferença temporal. Temos consultas com outros Estados membros para ver qual é o momento mais oportuno para dar o passo". A jornalista insiste: "E o que é necessário para que esse momento se considere oportuno?".  Rangel, torneia a questão e diz que Portugal não quer criar uma fractura na Europa (!?). Acrescenta que o governo português pediu um cessar-fogo imediato e a libertação dos reféns "porque estamos perante uma catástrofe humanitária e uma situação de urgência e emergência do povo palestino de Gaza, que é inocente na sua imensa maioria". A jornalista concretiza: "Para além de uma catástrofe humanitária, crê que é um genocídio?". Rangel: "O genocídio pressupõe a vontade de eliminar um povo. Seria muito injusto dizer que Israel pretende eliminar o povo palestino".  

Estamos conversados. Se o que se passa em Gaza - onde já morreram 35 000 pessoas (15 000 dos quais crianças) e 1,5 milhão de pessoas não têm acesso a água, comida, electricidade, habitação ou hospitais - não é uma limpeza étnica, então o que falta para ser considerado um genocídio? Um traste, sem escrúpulos, o Paulo. Tenho vergonha destes governantes.

2024/04/24

25 de Abril, sempre!


 

Grândola vila morena, Terra da fraternidade  

O povo é quem mais ordena, Dentro de ti ó cidade

 

Dentro de ti ó cidade,  O povo é quem mais ordena 

Terra da fraternidade, Grândola vila morena

 

Em cada esquina um amigo, Em cada rosto igualdade

Grândola vila morena, Terra da fraternidade

 

Terra da fraternidade, Grândola vila morena

Em cada rosto igualdade, O povo é quem mais ordena

 

À sombra de uma azinheira, Que já não sabia a idade

Jurei ter por companheira, Grândola a tua vontade

 

Grândola a tua vontade, Jurei ter por companheira

A sombra de uma azinheira, Que já não sabia a idade 


Autor: José Afonso

2024/04/23

O "25 de Abril" visto de Espanha

Quando, no dia 25 de Abril de 1974, os militares portugueses derrubaram um regime fascista de 48 anos, a Espanha vivia sob outra ditadura, que só viria a terminar com a morte de Franco, a 20 de Novembro de 1975. A partir dessa data, o chamado "processo de transição" espanhol, decorreu praticamente em paralelo com o português pelo que, em 1976, já era possível falar de uma Ibéria democrática. 

Pesem as especificidades de cada um dos regimes (a ditadura portuguesa mais longa e envolvida numa guerra colonial que durou 13 anos e causou dezenas de milhares de mortos e exilados; a ditadura espanhola, saída de uma guerra civil fratricida, entre 1936 e 1939, a que se seguiu um dos períodos mais repressivos da sua história recente), a verdade é que o balanço, após todos estes anos, é positivo, pelo que deve ser lembrado e, mais do que tudo, comemorado.

Teremos, assim, dois anos de comemorações de ambos os lados da fronteira, que se estenderão ao longo de 2024 e 2025, destinados a assinalar as datas mais importantes da instauração da democracia em Portugal e em Espanha. 

Para quem segue de perto a actualidade espanhola, é grato verificar a atenção que "nuestros hermanos" têm dado a Portugal, nos dias que correm. Para além dos factos, que vão marcando a agenda política portuguesa (demissão de Costa, eleições antecipadas, crescimento da extrema-direita e constituição do novo governo), constatamos uma cobertura atenta do caso "influencer" e das suas consequências para a eventual candidatura de Costa a um cargo europeu, que tem como um dos seus maiores apoiantes, Pedro Sanchez, o actual primeiro-ministro espanhol. Interesses comuns, portanto. 


Outra coisa, bem diferente, é a comemoração dos "50 anos do 25 de Abril". O suplemento literário "Babelia" (El País), dedicou-lhe um número especial, sob o título: "La libertad llegó en Abril hace 50 años. La Revolución de los Claveles tumbó en Portugal la dictadura más longeva de la Europa occidental y aceleró la transición española. La magia de aquel golpe pacífico se conmemora en libros, conciertos y exposiciones". São diversas páginas, onde Tereixa Constenla (correspondente do El País em Portugal), descreve em pormenor as múltiplas iniciativas a decorrer por estes dias em Lisboa: desde as grandes exposições fotográficas de Eduardo Gageiro e Alfredo Cunha, aos concertos nas principais salas lisboetas e às edições em livro, de tudo um pouco escreve Tereixa. 

De assinalar ainda, a edição espanhola de diversas obras relacionadas com a efeméride. Destaque para a tradução de "Fado Alejandrino" de António Lobo Antunes, "Mojar la Pólvora" de Alfonso Domingo, "La Revolución de los Claveles" de Diego Carcedo e "La revolución amable" de Ricardo Viel. Previstas para Maio, estão ainda as traduções de "La ciudad de los prodigios" de Lídia Jorge (actualmente cronista do El País) e "Fábrica de Criadas" de Afonso Cruz.  

Também a rádio fez um programa sobre as canções que marcaram a revolução, onde podiam ouvir-se as vozes de José Afonso, Sérgio Godinho, Vitorino e João Afonso, para além da história sobre a escolha da senha para a operação militar (Grândola) e do seu estratega Otelo Saraiva de Carvalho. 

No próximo dia 25, o restaurante "Uma Casa Portuguesa" de Sevilha, associa-se às comemorações, com um jantar especial, onde as cantoras locais Emma Alonso e Rosario Solano, interpretarão canções alusivas à data. José Afonso, fará parte da ementa.

Para quem acha que "de Espanha nem bom vento, nem bom casamento", é tempo de descobrir o que nos irmana. A democracia, ora aí está! 

2024/04/07

Taxi Driver (32)

Boa tarde, para a estação de autocarros de Sete-Rios, sff.

- É para entrar na garagem?

Pode ser. Tanto faz, já que a distância é curta.

 - Vamos lá, então. Finalmente, parece que chegou a Primavera...

É verdade, já não era sem tempo. Estava farto de chuva, ainda que faça falta...

- Pois faz, mas isto agora anda tudo trocado. Já não há estações do ano e a culpa é toda nossa. O Homem dá cabo de tudo...

Bom, o Homem é como quem diz...alguns homens, talvez...

- Há pessoas que só pensam nelas. Querem tudo para si. A ganância, é terrível.

É verdade, mas nós dizemos sempre que os "outros" é que são culpados. Nós nunca fazemos nada de mal. Somos os "puros". Quem são os "outros"? Os "maus da fita", os políticos que nos governam? Bem, é uma hipótese, mas quem os escolheu, não fomos nós? Do que é que nos queixamos, agora? 

- De mim, não é, porque não voto. Deixei de votar há mais de 10 anos...

É uma escolha. Tem direito a recusar, mas não sei se será a melhor escolha. Assim, será sempre governado pelos mesmos de quem diz mal...

- O senhor sabe quanto é que recebem os partidos por cada voto?

Penso que sim, à volta de 4 euros, se não estou em erro...

- Oito euros! Oito, por cada voto. Agora, multiplique por milhões de votos e veja só...

Sim, é bastante dinheiro, de facto. Fora as ajudas de custo, as mordomias (habitação, carros, etc...). Quantos mais votos, mais apoios. É proporcional. Até há um partido, que elegeu deputados, que  recebem 3800euros e que criticam quem recebe 189euros por mês...

- Ora essa, quem é que diz isso? 

Não sabe? Os deputados do partido racista, que recebe 4 milhões de euros de apoios estatais. Dizem ser contra o "sistema", mas, aproveitam-se dele. Ou seja, temos 50 "mafiosos" no parlamento, que dizem que os mais desfavorecidos da sociedade não devem ser ajudados pelo estado. Acha isso bem?

- Não, não acho, mas quem é que ganha assim tão pouco?

Olhe, por exemplo, os dependentes do RSI (Rendimento Social de Inserção), os mais desfavorecidos da sociedade.

- Isso, do rendimento mínimo, tem muito que se lhe diga...veja os ciganos...

Os ciganos? Não me diga, que também acredita nessa treta dos ciganos viverem à conta do RSI?

- Então, não é verdade? 

Não. Não é verdade. Sabe quantos ciganos há em Portugal?

- ....?....

Não sabe? Eu digo-lhe: de acordo com o Observatório Europeu de Minorias, existem à volta de 52.000 ciganos em Portugal. Ou seja, 5% da população total. Ainda de acordo com os dados da Segurança Social, existem cerca de 135.000 pessoas a receber o RSI em Portugal. Sabe, quantos dessas pessoas, são ciganas? Cerca de 6.000! Ou seja, 4% do total. Acha que é isso que arromba as finanças em Portugal?

- Eu não sei, mas é o que dizem...

Ah, sim? Então responda-me lá: conhece algum cigano no governo de Portugal? Já viu algum ministro ou secretário de estado, cigano? E nos bancos, conhece algum banqueiro cigano? E nas televisões e nos jornais, já viu ou ouviu falar de ciganos nas redações de jornais? Não viu, claro. A razão é simples: os ciganos têm menos educação escolar e são discriminados na procura de emprego e na habitação. A maior parte deles trabalha, só que em trabalhos mal remunerados e vivem em casas insalubres, porque ninguém lhes quer dar emprego ou alugar uma casa. A população cigana é a que mais doenças tem. Talvez não saiba, mas a idade média de vida dos ciganos é de 60 anos, muito abaixo da esperança de vida de um português médio, que é de 76 anos...

- A raça deles, é toda assim...

A raça deles? Mas, os ciganos são portugueses, como o senhor e eu. Qual é a diferença? Terem a pele mais escura, ou uma cultura diferente? Já agora, aproveito para informar que só há uma raça, a raça humana. Somos todos humanos. Se não acredita em mim, basta consultar a NET e informar-se. Estão lá todos os dados que necessita. 

- Já vi que defende os ciganos...

 (!?) Defendo todos os cidadãos, ciganos ou não, que são discriminados. O que eu não defendo, são partidos racistas e xenófobos, que apoiam o fascismo. Aconselho-o a ler menos o "Correio da Manhã" e a ver menos a CMTV. Já agora, leia mais, informe-se melhor e deixe de acreditar nos vendedores da "banha da cobra". Acabou a conversa e a "corrida". Quanto é que lhe devo?

- São 7 euros e 20 cêntimos.

Bom dia e passe bem. 

   

2024/04/04

Governo novo, Logo velho



Menos de um mês após as eleições legislativas, que deram a vitória à coligação de direita (AD), o novo governo tomou posse esta semana. 

Pelo meio, a contagem de votos do círculo de emigração (4 deputados) e um final renhido, a exigir um "photo finish" digno de prova de atletismo (88 mandatos para a Direita Democrática, 92 para a Esquerda Democrática e 50 para a Extrema-Direita populista). Dado que, ao contrário dos plebiscitos anteriores, a disputa não se resumiu a dois partidos, a grande incógnita residia nas coligações possíveis, uma vez que eram três os cenários prováveis: uma coligação alargada de direita (AD+IL+Chega) que garantia uma maioria confortável na AR (138 deputados); uma coligação minoritária de esquerda (PS+BE+CDU+Livre+PAN) insuficiente para formar maioria (92 deputados) ; e uma coligação minoritária de direita (sem o Chega) igualmente insuficiente para formar maioria (88 deputados). 

Consultados os partidos, o Presidente da República decidiu em conformidade: indigitar o partido mais votado (AD) para governar, de resto uma prática decorrente do próprio texto constitucional, que prevê o convite do PR ao partido vencedor para constituir governo e apresentar um programa governamental, sujeito a posterior aprovação parlamentar. 

A decisão do Presidente, ficou desde logo facilitada pela posição do Partido Socialista que, na noite eleitoral, anunciou não pretender governar, mas querer ser oposição. A razão desta decisão parece óbvia: mesmo tendo mais deputados do que a Direita Democrática, a Esquerda Democrática sabia que um governo de esquerda não passaria, dada a maioria da direita existente na AR.

Restava o Chega, que não tendo suficientes deputados para governar, só o poderia almejar em coligação com a AD. Acontece que a AD (e a IL) sempre se recusou governar com a Extrema-Direita, dadas as suas propostas inconstitucionais e anti-democráticas, sugerindo inclusive uma "cerca sanitária" ao partido fascista.

Perante os cenários possíveis, Montenegro decidiu aceitar o repto (também porque ganhou as eleições) sabendo que o esperam negociações difíceis (à esquerda e à direita), que lhe permitam "levar o barco a bom porto". Desde logo, tentando cumprir as promessas feitas durante a campanha eleitoral (que incluem satisfazer as reivindicações corporativas de professores, polícias e médicos), não esquecendo o investimento público em sectores como a habitação, a saúde, a educação ou a justiça, para nomear os mais urgentes.

Uma tarefa hercúlea para qualquer governo, independentemente da sua cor política, para a qual não chegaria uma legislatura de 4 anos, quanto mais um mandato que se prevê curto (dadas as contradições entre os diversos blocos que, neste momento, disputam a arena política portuguesa).

Acresce que, para além das boas intenções e dos "cofres cheios", que o anterior governo deixou em herança, Portugal não passa de um peão no xadrez internacional, sem qualquer peso político ou económico de relevo. Na actual conjuntura, em que os apelos à guerra se fazem ouvir dos lados de Washington e Bruxelas, não tardará que os portugueses sejam chamados a contribuir com mais dinheiro e soldados, para "defender o Ocidente" (leia-se interesses americanos na Europa). A NATO, hoje reunida para comemorar mais um aniversário, espera um aumento da contribuição do PIB nacional (2%) para os cofres da Aliança e, no ministério da defesa, discute-se abertamente a reintrodução do serviço militar obrigatório (!?). A psicose da guerra está em curso e, como na história do lobo, tantas vezes nele se fala, que um dia ele aparece...

Também para este facto, Marcelo (que não dá ponto sem nó) advertiu no seu discurso de posse do governo. Lá estiveram todos, com a "pompa e a circunstância" dos momentos solenes. Todos não, alguns faltaram (vá lá saber-se porquê...) e outros, nem sequer foram convidados, como o fadista Da Câmara Pereira, o "patinho feio" da coligação vencedora. Não se faz...  

Iniciada a governação, o novo executivo não perdeu tempo: como primeira "grande" medida (!?) o Logótipo governamental foi alterado. Ou melhor, voltou ao que sempre foi (o escudo, a esfera armilar e os cinco castelos). Sim, que com a "pátria" não se brinca. Só faltava mesmo "mexer" em Deus e na Autoridade...   

2024/03/12

Uma outra leitura urgente das eleições de 10 de Março


Ontem, num dos directos das intervenções finais dos líderes partidários, o cavalheiro, que aqui não vou nomear, que parece ter-se atribuído o  papel de capo do “bom povo português” afirmou, com pose estudada e perante o aplauso dos seus pares, que o seu partido reduziu “a extrema esquerda à sua insignificância.” Mas acrescentou, logo a seguir, que conquistou “eleitorado de direita e do centro-direita no centro e no norte do país.” Para ele, a eleição de domingo foi “um ajuste de contas com um país silencioso (…), de muitos que viram a esquerda dominar todas as nossas instituições, sem que houvesse qualquer pensamento crítico ou contraditório.” Disse ainda que “este país cujas instituições foram sequestradas, começará agora a ser libertado, pouco a pouco, em todas as instituições (sic)” E, rematou, “começaremos já amanhã a libertar Portugal da esquerda e da extrema esquerda.” 

É preciso ver estas afirmações pelo significado que, efectivamente, têm. Não se trata de conversa fiada. O tom e a pose revelam, sem margem para dúvida, ao que vem.

Não é preciso ser particularmente inteligente para perceber o alcance de tudo isto, o quanto esta conversa cai fora do funcionamento legal dos princípios da República, quem está ameaçado por este posicionamento terrorista e quais as consequências que, a qualquer momento, este palavreado pode ter para a nossa Democracia e para a vida das nossas comunidades. O fundo sonoro da bota cardada ouve-se distintamente. As afirmações do führer de Algueirão, feitas assim, às escâncaras, perante a escandalosa passividade de todos os partidos e instituições democráticas, não podem ficar impunes. E que triste exemplo de modelo nos estamos a permitir a dar à juventude, quando deixamos que uma figura deste calibre se dê ao luxo de se exibir desta forma!

Só há um responsável por termos batido tão baixo na nossa Democracia. Está na foto oficial. Só há um responsável pela total perda de controlo sobre todo este processo. Só há um responsável por termos visto um governo, legitimamente eleito, com maioria absoluta, tombar a meio do seu mandato. Só há um responsável por toda a confusão que está neste momento gerada, que dá azo a intervenções como aquelas que cito no início. E se tudo isto foi, como se diz por aí, instigado por esse responsável, essa manobra inqualificável, no vocabulário político, só tem um significado possível. 

A figura, politicamente já toda esfarelada, que habita transitoriamente o Palácio de Belém, tem contas a prestar aos Portugueses. Sem metáforas, sem jogos florais ou malabarismos de linguagem, cumprindo tão somente a Lei. É bom que o faça, e já. 

2024/03/11

Uma vitória de Pirro e um imbróglio presidencial


Os portugueses foram a votos e os resultados são conhecidos:

A Aliança Democrática (AD) ganhou por uma "unha negra" (29,5%) e conseguiu 79 deputados.

O Partido Socialista perdeu por uma "unha negra" (28,7%) e conseguiu 77 deputados

O Chega, foi o grande vencedor da noite (18,1%) e quadruplicou os deputados (48) 

A Iniciativa Liberal (5,1%), o Bloco de Esquerda (4,5%) e o PAN (1,9%), mantiveram o mesmo número de deputados (respectivamente 8, 5 e 1).

O Livre foi o segundo vencedor da noite (3,3%) e quadruplicou os deputados (4)

A CDU (3,3%) foi o segundo grande derrotado da noite (4 deputados). 

A abstenção foi de 33,8%, uma diminuição relativa a 2022 (42%). 

Contas feitas, a Direita (AD/IL/Chega) tem 135 deputados e a Esquerda (PS, BE, Livre, CDU e PAN), tem 90 deputados. Nestas cálculos, não estão incluídos os votos pelo Círculo de Emigração (4 deputados).

Surpresa pelos resultados? Só parcialmente. 

Há semanas que as sondagens apontavam para uma tendência de vitória à direita, com crescimento exponencial do Chega e uma disputa cerrada entre os dois maiores partidos (PS e AD). Restava saber qual a composição final do Parlamento, já que a entrada do Chega para o governo é altamente improvável. Neste capítulo, a Esquerda (90 deputados) tem mais deputados do que a Direita Democrática (87), mas não pode crescer mais, enquanto a AD pode crescer à sua direita. 

Resta saber, qual será a decisão de Marcelo, após ouvir os partidos com representação parlamentar. 

De acordo com a tradição, o presidente da república, convida o partido mais votado para formar governo. Acontece que, neste caso, nenhum partido conseguiu uma maioria, pelo que se não houver acordos entre partidos, o futuro governo terá de negociar à esquerda e à direita, para obter os consensos necessários à sua sobrevivência. Não parece fácil e, o mais provável, é haver eleições ainda este ano. 

Este é o dilema de Marcelo, que ao dissolver o parlamento em condições polémicas (ainda por esclarecer) arriscou uma solução estável que não resultou. Pior: a interrupção da legislatura a meio, não só não deu uma vitória clara ao seu partido (PSD) como ajudou a extrema-direita populista a crescer mais do que o desejado. 

Marcelo, o criador de factos políticos, pode ter ficado prisioneiro da sua própria estratégia: queria a direita democrática no poder e arrisca-se a perder o controlo dos acontecimentos, caso Montenegro dê o dito por não dito (não é não) e negoceie à sua direita para poder sobreviver. 

Uma última palavra sobre a governação socialista. A maior responsabilidade por este resultado negativo é do PS, que teve todas as condições para governar (uma maioria absoluta, quatro anos de legislatura, apoios europeus, turismo e "contas certas"), mas não conseguiu resistir aos inúmeros casos que atingiram o seu governo, minado por episódios que acabariam por abalar a confiança dos portugueses. O episódio, despoletado pelo caso "Influencer", acabaria por ser a gota de água que fez transbordar o copo. Ainda que as acusações estejam por provar, a imagem da governação ficou definitivamente manchada e a demissão do primeiro-ministro foi apenas a sua consequência lógica.    

Resta, agora, esperar pela nomeação do próximo primeiro-ministro e do governo que vai dirigir. Uma tarefa ciclópica que não augura bons tempos. 

2024/03/08

Opções e Incógnitas de uma campanha inconclusiva


Termina hoje a campanha dos partidos concorrentes às eleições do próximo domingo. 

Após meses de agitação frenética, entre congressos partidários, eleição de novos líderes, debates e campanhas de rua, a pergunta que se impõe é esta: estarão os eleitores, hoje, melhor informados após a maratona iniciada há quatro meses?

Teoricamente, sim. Nunca como nestas eleições, a informação foi tão extensa e diversificada: da imprensa escrita às redes sociais, da rádio à televisão, dos cronistas aos "comentadores", que disputaram horários de "prime-time", atribuindo"notas" (!?) aos candidatos, houve de tudo um pouco. Não nos podemos queixar, ainda que questões importantes tivessem ficado por discutir. Discutiram-se temas como a saúde, a educação ou a habitação, mas faltaram outros, não menos relevantes: a guerra em curso na Europa, o papel de Portugal na UE, a inflação que afecta toda a zona Euro, as alterações climáticas e a seca no Sul do país, a desertificação do interior, a imigração, a cultura, etc...

Acontece que o panorama político português mudou. Se não radicalmente, pelo menos na intenção de voto. Desde logo, pelo número de partidos que, à "esquerda" e à "direita", disputam a arena política. Se até 2015, a situação era estável, com 5 partidos representados na AR, desde então (apesar do desaparecimento temporário do CDS) surgiram quatro novos nomes, o PAN, o Chega, a Iniciativa Liberal e o Livre. 

É esta maior diversidade, que explica a "pulverização" do voto, agora distribuído por oito partidos com possibilidade de eleger deputados. Serão os partidos mais pequenos a beneficiar, ao mesmo tempo que diminui a influência dos partidos tradicionais. Por outras palavras, Portugal "deixou" de ter dois grandes partidos do governo (PS e PSD) e passará a contar com três partidos de tamanho médio (PS, PSD e Chega), para além dos restantes cinco pequenos, que serão fundamentais nas contas finais para a formação do governo. 

Esta é a conclusão provisória das sondagens publicadas ao longo dos últimos meses, que demonstram uma tendência inequívoca: não haverá maiorias absolutas de nenhum partido (ou coligação), da mesma forma que o partido (ou coligação), que ganhar as eleições, não poderá governar sem alianças. Resta saber, que coligações poderão ser formadas e, em consequência, que governo terá mais viabilidade no longo prazo.

A acreditar na última "grande sondagem", da responsabilidade da CESOP e Universidade Católica, para o Público, TSF e Rádio Renascença, hoje mesmo tornada pública, as contas são fáceis de fazer (nesta projecção já estão incluídos os votos dos indecisos, que rondam os 16%):  

A direita (AD+IL) está à frente nas intenções de voto (34%) e deve ganhar ao PS (28%), mas não é líquido que possa formar governo, a menos que faça uma coligação com o Chega (partido com quem ninguém quer governar) o que lhe daria 56% de votos,   

Resta uma coligação dos partidos de esquerda (PS, BE, CDU, LIVRE e PAN) que podem somar 42% das intenções de voto, muito perto da maioria absoluta e suficiente para governar, uma vez que a soma dos partidos à esquerda é maior do que a dos partidos à direita (sem o Chega).

Neste quadro, ganha relevo a decisão do presidente da república que, como é seu hábito, "dá uma no cravo e outra na ferradura", afirmando que dará posse ao partido mais votado, mas não quer o Chega no governo (?). Descodificando: Marcelo (sempre hipócrita) não se importa que a direita seja apoiada pelo Chega (governo de incidência parlamentar), desde que o partido fascista não tenha ministérios...

Estes são os cenários e nenhum deles garante um governo estável. A confirmarem-se estas projeções, o próximo governo será de coligação e terá curta duração. Daqui a um ano, poderá haver novas eleições.

Domingo, saberemos mais pormenores. Até lá, boa reflexão e melhor votação.

2024/02/23

O José Afonso, da nossa memória

Na madrugada de 23 de fevereiro de 1987, fui acordado, em Amsterdão, por um telefonema de Lisboa. Era o Carlos Neves, um ex-camarada do exílio. Atendi, ainda estremunhado, e perguntei-lhe se aquilo eram horas de acordar uma pessoa...

"O Zeca morreu", foi a sua lacónica resposta. 

Depois de uma curta conversa, para saber pormenores do sucedido, passei a informar alguns músicos que, por coincidência, estavam alojados em minha casa. Na véspera, tínhamos organizado um concerto na sala "Paradiso" de Amsterdão, com o guitarrista Pedro Caldeira Cabral, a Brigada Victor Jara e a "Rusga da Serra D'Arga" (integrados no projecto "Portugal: Roots and Time") e uma parte dos intervenientes estava alojada em casas particulares.  

Lembro-me bem do efeito da notícia, que muitos de nós receava poder acontecer a qualquer momento, dado o estado de saúde do cantor, já conhecido de todos.

Seguiram-se as mais diversas histórias, contadas por quem de perto conviveu, no palco e na vida, com o Zeca. Das memórias, então evocadas, recordo um traço comum: a influência do seu exemplo e do seu legado, em todos nós.

Essa, é, de resto, a melhor homenagem que lhe podemos prestar: continuar, hoje, a divulgar a obra e o homem, em todas as suas vertentes - musical, poética e cívica.

No ano de todas as comemorações, José Afonso é, hoje, consensual e um nome incontornável. Sempre foi. Agora, mais do que nunca. Por isso, não o esquecemos. 

2024/01/28

Taxi Driver (31)

 


Boa tarde. Então, para onde vamos? 

- Vamos para a Buraca. 

Muito bem. Tem alguma preferência pelo trajecto?

- O melhor é seguir em frente, até às Amoreiras. Depois, entrar na A5 até Monsanto. Terá de ir ao Rato primeiro, mas, seguindo em frente, não pode entrar directamente na praça. Tem de passar pelo Príncipe Real. 

Pois é. Aquela praça está mal resolvida. Bastava fazer duas rotundas, uma no topo norte e outra no topo sul, e passarem as vias do "bus" para um dos lados. Só que está lá a sede do PS e eles não iam deixar...   

- O PS já está ali há muitos anos. Tem direitos adquiridos de "usucapião"... 

Mandam na cidade. Sempre mandaram. Já é assim há muitos anos. São os "barões" de Lisboa.

- "Barões", parece-me uma boa definição. Há lá muitos, sim. Mas não é só no PS...

Pois não. É em todos os partidos. Isto está uma selva. E depois admiram-se que a justiça seja lenta...

- A nossa justiça também não se recomenda. Precisa de uma grande reforma.

De que maneira! O senhor não vai acreditar, mas eu conduzo muita gente e uma das minhas clientes era uma juíza da relação. Ela tinha muitos processos entre mãos e alguns eram de gente importante. Pois, até a casa lhe vasculharam. Foram lá os agentes da PJ e viraram-lhe a casa do avesso...  Isto, no tempo do governo do PS!

- Acredito, mas se fosse assim, então não era a justiça que mandava na política, mas o contrário...

Quer mais um exemplo? Eu sou de Mação e a minha família dá-se muito bem com o juiz Alexandre, (processo "Marquês")  que tem lá uma casa. Nem imagina o que fizeram ao homem, depois de ele ter acusado o Sócrates! Fazem-lhe esperas, escrevem-lhe cartas e ameaçam-no pelo telefone. Uma vergonha!

- Talvez, no início do processo, mas ele agora teve uma vitória...

Uma vitória? Onde?

- O Ministério Público apelou da decisão do juiz Ivo Rosa e considerou a maioria das acusações do juiz Alexandre como válidas. O processo voltou à "estaca zero" e agora vai mesmo haver julgamento. 

E o senhor pensa que o Sócrates vai ser condenado?

- Não sei. Terá de haver julgamento e uma decisão final.

Isso é coisa para durar anos... e depois? Veja o que aconteceu ao Lula...

- O Lula foi julgado pelo juiz que instruiu o próprio processo, em primeira e segunda instância. O processo ainda não tinha transitado em julgado e ele já estava preso. Isso seria impossível em Portugal. Por isso, os acusados que têm dinheiro vão até ao Supremo, que é o último recurso. O Lula apelou da decisão para o Tribunal Superior da Justiça e este absolveu-o. A partir daqui não há mais recursos. É o estado de direito a funcionar. Podemos não concordar, mas é assim que deve ser uma democracia...

Mas, isso é para quem tem dinheiro. Eu andei 10 anos em processos, gastei todas as minhas economias e perdi o emprego. Passei muita fome e até dentes perdi...      

- Isso é que é mau. Lamento por si. Também sei o que são os tribunais de trabalho. Bem, já chegámos. Pode ficar por aqui. 

Boa tarde e obrigado pela conversa.

2024/01/26

2024, o ano do pato

A menos de dois meses de eleições legislativas, marcadas para 10 de Março, na sequência da demissão de António Costa e posterior dissolução do parlamento decretada por Marcelo Rebelo de Sousa, as máquinas partidárias desdobram-se na elaboração das listas de deputados e na afinação dos programas que irão apresentar no decorrer das próximas semanas. 

Um ritual conhecido, que não parece entusiasmar grandemente o "homem da rua", mais preocupado com as contas a pagar ao fim do mês, com o estado dos serviços de saúde, com a falta de professores ou com a escassez de habitação a preços razoáveis. Um ciclo infernal, que parece ter-se agravado nos últimos anos, apesar de resultados assinaláveis conseguidos na redução da dívida pública, na contenção do défice, no aumento do turismo, ou na redução do desemprego. Um país a duas velocidades, onde os sucessos macro-económicos não conseguem disfarçar as desigualdades gritantes da sociedade portuguesa.

Sim, é verdade que o PS, após 8 anos de governação, conseguiu a proeza de diminuir a dívida de 132% para cerca de 100% do PIB (a maior baixa da zona euro), reduzir o défice a menos de 1% e manter um crescimento económico acima da média europeia. Também é verdade, que beneficiou de um crescimento exponencial do turismo, que voltou aos valores de 2019 (antes da pandemia) e conseguiu reduzir a taxa de desemprego para menos de 6%, uma das mais baixas da última década. Esta é a parte do "copo meio-cheio". 

A parte do "copo meio-vazio", está relacionada com o "estado social", que os sucessivos governos deixaram degradar, ao ponto dos mais diversos sectores (saúde, habitação, educação e transportes), serem hoje um foco de contestação permanente, dos utentes ao pessoal que os servem. Tudo parece funcionar mal: o atendimento personalizado, a crónica falta de pessoal nos diversos sectores, os tempos de espera nas consultas e nas repartições do estado, a escassez de bens de primeira necessidade (a habitação é dos mais gritantes exemplos), a manutenção da ferrovia ou os preços exigidos por serviços, completamente desajustados do poder de compra do cidadão médio. Um rol de insuficiências e completo desprezo pelos contribuintes, que pagam impostos europeus, mas auferem ordenados romenos. Não é pois de estranhar que as mais diversas corporações, dos médicos aos professores, dos oficiais da justiça aos polícias, protestem um pouco por todo o país. Como se esta situação não fosse já de si grave, parte dos jovens a que pomposamente chamam "a geração mais preparada de sempre", continua a abandonar o país (a uma média de 70.000/ano) como não se via desde os anos sessenta do século passado. 

Para contrabalançar esta hemorragia de mão-de-obra qualificada, Portugal importa mão-de-obra barata estrangeira, que maioritariamente trabalha na hotelaria, restauração e agricultura, serviços que os portugueses (porque mais qualificados) se recusam a fazer. Sem eles, a economia portuguesa não poderia simplesmente funcionar. É graças a estes imigrantes, vindos de países tão diversos como o Brasil, Cabo-Verde, Ucrânia, Bangladesh, Paquistão ou Nepal, que a demografia (num país envelhecido como o nosso) é compensada por novos cidadãos, que ainda contribuem para o equilíbrio da Segurança Social (€1600 milhões em 2023). No entanto, nesta como noutras áreas, os governos portugueses seguem uma política laxista: convidam os estrangeiros a imigrarem para Portugal e procurar trabalho, sem lhes garantir qualquer tipo de garantias ou protecção. Muitos deles caem nas mãos de intermediários mafiosos, que aproveitando-se da sua vulnerabilidade (desconhecimento da língua e das leis) sujeitam-nos a condições infra-humanas e de verdadeira escravatura. 

É neste caldo cultural (crise social e económica que atinge cerca de metade da população activa) que surgem movimentos populistas como o Chega, um partido racista e xenófobo que, a exemplo de outros partidos congéneres europeus, fez das minorias imigradas (porque mais vulneráveis) o "bode expiatório" de todos os males da sociedade portuguesa. Começou por ser uma dissidência do PSD (partido de direita democrata), tornou-se um partido de protesto contra o "sistema" (ao qual sempre pertenceu), elegeu os ciganos como seu "ódio de estimação" e, porque ganhou visibilidade (mercê dos votos que entretanto granjeou), alargou a discriminação às minorias asiáticas muçulmanas. Um mentiroso compulsivo, o Ventura, sem qualquer ideia ou estratégia para o país, que se limita a seguir o guião dos populistas da extrema-direita internacional (Trump, Bolsonaro, Milei, Le Pen, Meloni, Wilders) a quem ninguém compraria um carro em segunda-mão. 

Até ver, o líder do Chega (um partido acéfalo que elege o "chefe" com maiorias albanesas) está a crescer. As últimas sondagens dão ao partido uma percentagem acima dos 16%. Poderá crescer mais, mas dificilmente será governo, dado que a direita mais tradicional (AD+IL) já declarou não querer governar com a extrema-direita (!?). Há, no entanto, razões para duvidar da política de alianças, caso as próximas eleições confirmem uma maioria de direita na Assembleia de República. Nesse caso, dificilmente Montenegro resistirá a governar, pois a alternativa é deixar de ser secretário-geral do partido. 

Um dilema para a AD, que só pode crescer à sua direita, agora ocupada pelo Chega. Como conciliar valores democráticos com ideias anti-democráticas? É verdade que o Chega, ainda não é "completamente" fascista. Mas, os sinais estão lá: um partido autocrático, onde o chefe é omnipotente nas suas decisões; a defesa da trilogia Deus, Pátria e Autoridade, usada até à exaustão por Ventura nos seus discursos; a simbologia utilizada (saudação romana dos nazis); as declarações xenófobas contra os estrangeiros (pobres) em Portugal; a defesa da Ordem, presente nos apoios às forças policiais através do sindicato Zero, que nunca escondeu a sua ideologia; o cerco à sede do PS no Rato, em clara violação da lei, etc. 

Não, o partido de Ventura, ainda não será "completamente fascista", mas, como nos ensinou Umberto Eco ("Como reconhecer o fascismo", Ed. Relógio de Água, 2017) em que identificava 14 características do "Ur Fascismo" ou "fascismo eterno", não é necessário ter todas as suas características. Se tiver algumas delas, é caso para desconfiar. No fundo, é como a história do pato: voa como um pato, grasna como um pato, tem penas de pato, se calhar é mesmo um pato... 

2023/12/18

Taxi Driver (30)

Bom dia, para onde vamos? 

- Para Sete-Rios, estação de autocarros...

Por onde deseja ir? Eu pergunto sempre isto aos clientes. Cada um tem a sua preferência...

- Pois, mas como não ando no trânsito diariamente, não o posso ajudar muito. Eu costumo ir pela Carolina Michaelis, ao longo da linha férrea...

Vamos embora. A esta hora já não deve haver muito trânsito. O pior são as "compras" do Natal. 

- É preciso é consumir. O resto, logo se vê...

Andam todos a queixar-se, mas há sempre dinheiro para o bacalhau e para as "broas".

- O que é que o pessoal há-de fazer? Não tem dinheiro para muito mais. O melhor é comer. Sempre morrem mais satisfeitos...

São 11 da manhã e o senhor quer acreditar que este é o primeiro serviço que faço hoje? Ainda por cima, andam aqui estes "chico-espertos" (apontando para um "uber", que tenta ultrapassá-lo pela direita), que nem guiar sabem...

- Não sabem guiar? Mas, têm carta, não?

Sim, devem ter carta, só que não respeitam as leis de trânsito (enquanto abre a janela do lado direito): "Ouve lá, ó parvalhão, julgas que passas à minha frente?".  

- Realmente, pelo menos podia ter feito sinal...

Qual quê? Isto é a lei da selva. Agora, na praça do Jardim Zoológico, vai ser a confusão total. 

- É sempre. Ainda por cima com as obras na praça, que duram há anos... 

Veja só quantos homens estão a trabalhar. Quatro ou cinco. Assim, nunca mais acabam as obras. As obras em Portugal não é para se fazerem, é para ir fazendo. Deve ter sido um "ajuste directo", feito pela câmara. Quanto mais tempo durar, mais os "amigos" ganham...

- Essa do "ajuste directo", faz-me lembrar as obras para o palco das Jornadas Mundiais da Juventude. Ainda hoje, estamos à espera das "contas finais". 

Bem podemos esperar sentados. O senhor acredita mesmo que algum dia vamos saber as contas exactas? 

- Bem, pelo menos foi o que disse o bispo que coordenou as Jornadas. Entretanto, já foi nomeado Cardeal e está em Setúbal. Ele afirmou que, em "tempo útil", seriam apresentadas todas as contas...

Pois, pois... em "tempo útil" para a igreja, deve querer dizer a "eternidade"... eles prestam "contas" depois de morrerem. Uma vergonha, aqueles farnéis que deram aos voluntários nas Jornadas. A televisão mostrou os pacotes com a ração. Eu alimento melhor o meu cão.

- Isto é um país de irmandades e corporações. Foram 350 anos de Inquisição e 50 de Fascismo. São quatro séculos de ignorância e subserviência. O "pessoal" aceita tudo. Muito medo e respeitinho. Esta mentalidade já está nos "genes" dos portugueses. A Igreja, indirectamente, continua a controlar as mentes...

E de que maneira! Não viu as fotografias da benção da perfuradora nas obras da conduta em Lisboa? Lá estava o padre a abençoar a máquina... que coisa mais parva!  

- Por acaso não vi, pois não estava em Portugal, mas ouvi falar. Não me admira, com estes governantes beatos. De resto, é uma tradição que vem de longe. Todos os governantes convidam padres para abençoar as suas obras...

Sim, mostram-se na televisão e escondem os pecados internos. Nunca se sabe nada e, quando se sabe, é preciso ser alguém a denunciá-los. Uma cambada, que vive à custa da fé que apregoam, mas não praticam...

- Quanto maior a ignorância, maior a crendice. É dos livros.

Bem, parece que chegámos. Se não se importa, deixo-o aqui à porta, senão nunca mais saímos daqui...

- Acho bem. São só cinquenta metros. Bom dia e Bom Natal.

2023/11/23

Europa: uma crise nunca vem só


Que o Mundo não é um lugar seguro, já o sabemos. Que a situação actual seja pouco propícia a optimismos, não passa de uma verdade de La Palisse.

Crises financeiras, inflação, pandemia, alterações climáticas, guerras, migrações, crescimento de partidos  racistas e xenófobos, crise de ideologias e do sistema partidário, o cardápio é longo...

E, no entanto, o panorama não podia ser mais pessimista. 

Só na Europa, três países da UE atravessam crises, não negligenciáveis, que estão longe de terminar. São eles, Portugal, Espanha e Países Baixos, ainda que por motivos diferentes.

Vejamos o caso de Portugal: depois da demissão abrupta do primeiro-ministro (PM) no passado dia 7 de Novembro (no seguimento de um relatório do Ministério Público (MP) no qual, alegadamente, o seu nome era mencionado numa rede de tráfico de influências com origem no governo), o Presidente da República decidiu dissolver o parlamento. Formalmente, António Costa não era obrigado a demitir-se, da mesma forma que Marcelo Rebelo de Sousa poderia ter optado pela continuação do governo PS, com outro primeiro-ministro. Nada disto aconteceu, seja porque Costa não quis continuar (reservando-se para outros cargos, quiçá europeus) seja porque Marcelo viu aqui uma oportunidade de convocar eleições e dar, assim, oportunidade ao seu partido de formar um governo de direita. 

O pior veio depois: afinal, o nome no relatório não seria o de Costa, mas o de um ministro do seu governo com o mesmo apelido (!?), ao mesmo tempo que outros arguidos no processo viram as acusações serem revogadas pelo juiz de instrução do processo, que não considerou suficientes os argumentos aduzidos pelo MP! A partir daqui (e já lá vão duas semanas) as especulações não têm parado. Mas, então, a Procuradora Geral da República (PRG) não controlou o conteúdo das acusações que estiveram na base da investigação? Pior, não leu e não escreveu ela o famigerado parágrafo que despoletou toda esta crise institucional? Se leu e deixou passar tamanho equívoco, porque continua a refugiar-se em desculpas insustentáveis, sobre o papel do MP em todo este caso, que tresanda. Como tudo isto não fosse suficiente, Marcelo convocou eleições para daqui a 4 meses (!?), com o argumento de que o PS (com um secretário-geral demissionário) necessitava de tempo para se organizar. Entretanto, Costa, pode manter-se no poder, assegurando um governo de transição que terá de aprovar o Orçamento de Estado (OE), em fase de discussão. Simultaneamente, os partidos começaram a organizar os seus congressos, com vista a constituir as listas eleitorais para o dia 10 de Março de 2024. Uma trapalhada sem nome, que lançou (desnecessariamente) o país numa crise institucional gravíssima, que irá provavelmente alterar o panorama político de forma radical.

Já em Espanha, a situação parece ter estabilizado, ainda que seja cedo para extrair conclusões. Depois das eleições legislativas de Julho, que deram a vitória ao Partido Popular (PP) de Alberto Feijóo, este não conseguiu formar um governo maioritário no Congresso. Pesem as suas tentativas, junto de Pedro Sanchez (PSOE) para se abster nas votações e, dessa forma, deixar o PP governar, o líder do partido socialista espanhol recusou sempre. Perante tal cenário, só restava ao Rei convidar o segundo partido mais votado para formar governo. Após meses de negociações e cedências aos partidos à sua esquerda (Sumar, Bildu, ERC) e à sua direita (Junts), Sanchez conseguiu uma vitória improvável, que os analistas designam por "quadratura do círculo": uma maioria confortável (179 deputados, num parlamento de 350 lugares), que poderá dar-lhe alguma folga nos tempos mais próximos. Para isso, teve de "engolir diversos sapos", dos quais o maior foi a "amnistia" concedida aos independentistas catalães, julgados e condenados pelo tribunal constitucional, após a organização de um "referendo" sobre a independência no 1 de Outubro de 2017. Na altura, foram julgados e condenados 300 políticos catalães, alguns dos quais continuam a viver no exílio. A "amnistia" concedida continua a ser contestada pelo PP e pelo VOX, os principais partidos de direita, que, há mais de quinze dias, protestam junto das sedes do PSOE em Espanha, acusando Sanchez de traição e de fomentar um "golpe de estado". Resta acrescentar, que a lei terá ainda de ser aprovada pelo senado espanhol, dominado pelos partidos de direita, o que poderá só acontecer daqui a dois meses... Entretanto, a coligação governativa, terá de fazer "prova de vida", o que não se afigura fácil dadas as contradições programáticas dos oito partidos que a compõem. Um "bico de obra", num país literalmente dividido ao meio. A crise, continua, pois...

Finalmente, a situação nos Países-Baixos, depois das eleições de ontem. Convocadas no Verão passado, após a queda do governo de coligação, liderado por Mark Rutter (VVD), na sequência de uma crise devido às leis de imigração e reunificação familiar, estas eleições tiveram como temas principais a imigração, o clima e questões sociais, como a inflação e o aumento de custo de vida, provocados pela guerra na Europa. Contados os votos, a vitória (ainda que não surpreendente) coube a Geert Wilders (PVV). Wilders é um político veterano, conhecido pelas suas ideias racistas, xenófobas e islamofóbicas, que há mais de 20 anos dirige uma agremiação cujos principais pontos do programa se resumem à proibição do Corão, à expulsão de imigrantes e à saída da União Europeia (!?). O mais surpreendente, é o número de deputados obtidos (37), uma duplicação de lugares em relação às eleições de 2021. Se, até agora, o partido de Wilders nunca fez parte de nenhuma coligação governativa, devido ao "cordão sanitário" que os restantes partidos sempre impuseram, será difícil não convidar o partido mais votado para formar governo. Para que isso aconteça, Wilders necessita de ter o apoio dos dois maiores partidos de direita: o VVD (liberal) do demissionário Mark Rutter, agora liderado por Dilan Yesilgoz, de origem turca; e o CSN (Novo Contrato Social) de Pieter Omtzig, ex-deputado cristão-democrata, de constituição recente. Uma tarefa que não se afigura fácil, pois não é certo que as ideias radicais e anti-constitucionais de Wilders consigam convencer os seus potenciais parceiros governamentais. Pormenor picante: Wilders (casado com uma húngara) é admirador do ditador húngaro Orbán (que já o felicitou) e do ditador Putin, que a Holanda boicota, devido à invasão da Ucrânia. Resta saber, como é que o mundo empresarial holandês reagirá a um governo liderado por tal figura, mas, como o poder é afrodisíaco, nunca se sabe...