2019/09/16

Bom Cinema na Rentrée


Já se chamou Salão Ideal, Cinema Ideal, Cine Camões e Cine-Paraíso. É a sala de cinema mais antiga de Lisboa (1904) e está situada na Rua do Loreto, ao Camões. Após o 25 de Abril, chegou a exibir filmes pornográficos e, depois desse período, fechou por tempo indeterminado. Em 2014, graças à iniciativa da Midas Filmes (uma distribuidora e exibidora de filmes independentes), reabriu totalmente renovado, tornando-se o melhor cinema de Arte (a par do Nimas) da cidade. Da programação do novo Ideal, destaque para o cinema independente, para o cinema português e para filmes clássicos, em cópias restauradas. Dispõe ainda de uma óptima videoteca, com filmes distribuidos pela Midas, uma tentação para cinéfilos endinheirados.
Nesta nova temporada, as expectativas não foram defraudadas e a programação tem excedido as melhoras expectativas. Depois de "Os olhos de Orson Welles" (2018), um bióptico da autoria de Mark Cousins, historiador e cineasta (autor de uma das melhores histórias de cinema que conhecemos), tivemos a reposição do épico "Ran" (1985) de Akira Kurosawa, agora em cópia restaurada e o aguardado "Once upon a time in...Hollywood" (2019), o último "opus" de Quentin Tarantino.
Mal recuperados da "rentrée", eis-nos perante um novo dilema. Que filme ver, dos três actualmente em exibição: "Vem e Vê" do russo Elem Klimov (1985) em cópia restaurada, "Santiago, Itália" (2018) de Nanni Moretti, "Dôr e Glória" (2019) de Pedro Almodóvar?
Dado já conhecermos o último Almodóvar, de uma sessão em Sevilha, optámos por dois filmes em sessões contínuas, respectivamente o filme russo (prémio do Festival de Tróia de 1985) e pelo último Moretti.
Ainda que versem realidades diferentes - a resistência contra a invasão nazi na Bielorussia e o acolhimento de refugiados chilenos pela Itália, durante a ditadura de Pinochet - a pertinência da luta contra o fascismo ganha, desta forma, nova actualidade. 
"Vem e Vê", é o último filme realizado pelo russo Elem Klimov (1933-2003), que chegou a primeiro-secretário da União dos Cineastas Soviéticos, durante o período da Perestroika. O filme, que ganhou o Festival de Moscovo desse ano, é já considerado um dos grandes filmes de guerra de sempre. "É um dos mais brutais, alucinantes e desencantados filmes de guerra jamais realizados, inspirado directamente na resistência bielorussa às tropas alemãs em 1943 e no massacre de 628 aldeias ao abrigo da política nazi do "espaço vital" com que Hitler queria conquistar o Leste", escreveu sobre o filme o crítico Jorge Mourinha (Ipsilon). Através dos olhos de Florya, um jovem de 15 anos, incorporado à força no exército para combater as tropas nazis, o espectador segue as peripécias de um contigente de resistentes bielorussos, durante alguns dias em 1943, quando a Grande Guerra Patriótica ainda estava longe do fim. Imagens devastadoras, filmado a partir da experiência pessoal da família do realizador, ainda que sem o glamour dos grandes filmes do género que haviam de seguir-se (Deer Hunter, Apocalypse Now, The Thin Red Line...). Imperdível.
O último filme de Moretti é, simultaneamente, uma homenagem ao governo de Allende e à Itália dos anos setenta, que acolheu nas instalações da sua embaixada em Santiago mais de 250 chilenos que ali procuraram asilo e protecção. Através de sensíveis, mas divertidas, entrevistas a alguns dos intervenientes desta saga, como o embaixador italiano à época, o realizador Patrício Gutzman ("A Batalha do Chile", "Salvador Allende", "Nostalgia da Luz") e Horácio Salinas, fundador e líder do grupo "Inti-Illimani", Moretti força o contraditório com dois esbirros de Pinochet, actualmente presos, que continuam a defender a sua inocência. Grande parte destes chilenos, voltaram ao Chile, após anos de exílio. Alguns permaneceram e ainda hoje continuam a viver em Itália, um dos países que melhor recebeu estes exilados. Quando a solidariedade europeia para com os refugiados não era uma palavra vã e a Itália podia orgulhar-se dos seus governantes. Esta é, provavelmente, a crítica implícita de Moretti ao governo de Salvini.
Resumindo, dois grandes filmes, que na realidade são três, já que o último Almodóvar é considerado o seu melhor filme em anos e (pasme-se!) até Antonio Banderas tem uma grande interpretação, que lhe valeu o prémio do melhor actor no último Festival de Cannes.