2020/10/25

Cultura, pandemia, gangrena e drinks de fim da tarde



Haverá dúvidas de que a “cultura” é mansa? 

Mesmo depois de tantas “flight cases” plantadas no Terreiro do Paço e na CM do Porto, projecções coloridas em edifícios, e outros protestos murchos, a "cultura" continua em processo de gangrena. As restrições às actividades culturais trazem consequências dramáticas, mas em Portimão parece que estamos noutro planeta. Que diferença para as salas fechadas ou a meia haste que por aí vamos vendo.



Não pretendo aqui fazer uma análise do sector da cultura em Portugal nem estou habilitado para o fazer. Pretendo apenas chamar a atenção para umas tantas incoerências e, sobretudo, para a passividade inacreditável com que o sector da cultura, certamente inebriado pelos drinks de fim de tarde, assiste à crise que se instalou. Com olhar bovino, como o de quem aguarda a vez para entrar no matadouro. 

O sector cultural, face ao valor previsto para a cultura, limita-se a largar, com ar enfadado, uns bitaites e umas queixinhas avulsas nas redes sociais e em entrevistas mais ou menos folclóricas. Não há qualquer organização, não se ouviu uma palavra  dos agentes culturais quanto a um projecto de recuperação deste sector, nem uma ideia para aplicações dos fundos estruturais que aí vêm. Nada. Os portugueses, por seu lado — povo que saca também, sem perceber o que está a fazer, o revólver quando ouve falar em cultura —  aceitam, sem problema de maior, que fechem salas de espectáculo, acabem festivais, produtoras, editoras, que continuem a sair dezenas e dezenas de jovens das escolas de artes, músicos, actores, técnicos, sem que exista perspectiva de trabalho no imediato e sem que existam possibilidades de exercerem as profissões que escolheram no futuro. Não há maneira de os acolher e, no futuro, vai ser pior. Mas eles continuam a sair das escolas. Imagino que, por este andar, os únicos locais onde poderão encontrar trabalho daqui a uns tempos seja nas igrejas... 

É que, aposto, os portugueses serão sensíveis a um outro tipo de reivindicações e o nível da gestão pública que temos não dá para mais. Há dias, a propósito da "crise" em Fátima, o líder parlamentar do PSD, um deputado chamado Adão Silva, e os deputados "sociais-democratas" eleitos por Santarém, vieram reivindicar "apoios sociais e fiscais," chamando a atenção para o facto de a região ter sido atingida pelas consequências económicas da pandemia e exigindo medidas “no âmbito dos impostos, nos apoios vários às empresas e do ponto de vista social”. Em causa está o OE 2021 e mesmo os fundos estruturais. O que os deputados em questão estão a reivindicar é um subsídio a uma crença religiosa, pago, directa ou indirectamente, por todos os contribuintes, acreditem ou não nessa crença. E estamos com sorte por não terem sugerido a obrigação de cada português ir passar o fim de semana a um hotel em Fátima. O que está em causa aqui não é a reivindicação em si. Fazem pela vida. O que aqui parece bizarro é que os deputados se sintam legitimados a fazê-la, enquanto outros sectores, de importância vital e muito mais abrangente para o país o não façam. Como o sector da cultura, por exemplo.

O que se vai vendo no que respeita a este sector é um escândalo. Sem resposta. Os milhões chovem só para um lado, sem que ninguém se indigne com o assunto. As televisões, por exemplo, receberam balúrdios à pala da pandemia. Deveriam ter sido obrigadas a reprogramar as suas grelhas com música, teatro, dança, circo, etc., português. Mas que raio de ideia de cultura tem o Governo? O que é que o PM e o PR vêem para além do namoro aos "artistas" que lhe trazem votos? Conseguirão ter uma ideia de cultura para além do barulho das luzes e dos vapores dos drinks? Se têm, não se vê.

No que diz respeito à cultura, estamos em plena era da pedra lascada. Agora disfarçada com eventos e entretenimento. Anda tudo a dormir. Estou em crer que é a própria “cultura“ que não se leva a sério e não acredita em si. Venham mais umas corridinhas de carrinhos e motinhas!!