2023/02/24

"Pico Reja", a vala da vergonha

Foi esta semana encerrada a vala "Pico Reja", situada no cemitério San Fernando de Sevilha, após três anos de escavações e exumações de vítimas da ditadura franquista. Uma conclusão formal dos trabalhos, uma vez que a equipa encarregada das escavações deu por terminada a identificação dos corpos encontrados.

Na cerimónia, estiveram presentes, para além de representantes da "Associação para a Recuperação da Memória Histórica" (ARMH), o edil Manuel Muñoz (PSOE), o vice-conselheiro da cultura Victor Manuel González e Juan Manuel Guijo, responsável pela equipa de 20 antropólogos forenses e técnicos que, durante estes três anos, analisaram, um por um, mais de um milhão e meio de ossos.

"Pico Reja" é o maior ossário de vítimas de Espanha e a maior vala comum da Europa Ocidental, segundo a Sociedade de Estudos Aranzadi, que coordenou a equipa de técnicos forenses. Esperavam encontrar os corpos de 850 vítimas da Guerra Civil (1936-39) mas, afinal, contabilizaram 1.786 (ainda não identificados, mas considerados como tal pela disposição em que apareceram os restos, os sinais de violência ou certos distintivos e pertences). No interior da vala, na qual houve enterros anteriores e posteriores à guerra, foram achados restos de 10 073 pessoas, dez vezes mais do que se pensava ao princípio.

Segundo Guijo, "a complexidade do trabalho foi brutal, pois não sabíamos se podíamos realizá-lo". Pelas suas mãos passaram homens e mulheres com evidentes sinais de tortura, balas na nuca, mãos atadas atrás das costas, articulações partidas...Para além das vítimas do franquismo, também foram exumados os restos de centenas de pessoas que, ou estavam enterradas antes da guerra nesse ossário ou foram sendo enterradas posteriormente e, geralmente, sem nenhum escrúpulo, amontoando cadáver sobre cadáver. 

Durante o tempo em que decorreram as exumações, foram enviadas 1037 amostras de ADN ao laboratório de referência da Universidade de Granada, dependente da Junta da Andaluzia. No entanto, até ao encerramento da vala, não foi obtida nenhuma identificação, nem através dos restos ósseos, nem através de alguma má formação ou características antropomórficas, descritas pelos familiares. Para Carmen e Paquita, activistas da ARMH, o laboratório de Granada constitui a última esperança de encontrar provas de que seu pai, Rafael (conselheiro da autarquia de Sevilha, desaparecido a 8 de de Agosto de 1936), poderia estar enterrado em Pico Reja.  

Uma história de horror, a juntar a milhares de outras, conhecidas e reveladas nos últimos 20 anos, através do trabalho iniciado pela Associação de Vítimas, que hoje se estende a todo o território espanhol. Com o encerramento de Pico Reja, o trabalho de exumações não terminou em Sevilha. Durante a cerimónia, o edil Manuel Muñoz anunciou a abertura de novas escavações, agora na vala Monumento, a poucas dezenas de metros de Pico Reja. De acordo com estimativas da Associação, existirão cerca de 115 000 corpos em valas comuns, enterrados em todo o país. A Espanha é, depois do Cambodja de Pol Pot, o segundo país com mais valas comuns em todo o Mundo. 

2023/02/22

Sevilha recorda Saura

Sevilha foi, na passada semana, a cidade escolhida para a entrega dos prémios "Goya", os mais cobiçados galardões do cinema espanhol, outorgados pela Academia de Cinema do país vizinho. 

Para esta 37ª edição, transmitida em directo para toda a Espanha, engalanou-se o auditório do palácio de Congressos "Fibes" (capacidade 2000 lugares) por cujas passadeiras desfilaram os nomeados, com a pompa e a circunstância que a cerimónia sempre exige. Um pouco a exemplo dos "óscares" de Hollywood ou dos "Bafta" britânicos, ainda que mais formais e sem o "glitter" que caracteriza os prémios americanos. 

Este ano, para além dos prémios habituais nas diversas categorias a concurso, seria atribuído um "Goya de Honra" a Carlos Saura, pela sua obra. O prémio (um busto de Goya em bronze) foi-lhe entregue em casa, previamente, dado o seu estado de saúde, já bastante debilitado.

Acontece que, na véspera da cerimónia pública, Saura viria a falecer. O que teria sido a consagração de uma carreira de 70 anos, acabaria por tornar-se uma homenagem póstuma, como póstumo foi o "Goya" que a viúva, e dois dos seus filhos, receberam das mãos do presidente da Academia. 

Com a morte de Carlos Saura (1932-2023) desaparece um dos maiores cineastas europeus. Gregorio Belichón, jornalista cultural, especializado em cinema, do "El País", não hesita em classificá-lo como um dos quatro grandes nomes do cinema espanhol, a par de Buñuel, Berlanga e Almodóvar, cujas obras refletem a história de Espanha do último século.

Ainda que grande parte dos seus filmes, não seja conhecida em Portugal (vá lá saber-se porquê...) destacamos alguns dos títulos mais emblemáticos da sua extensa obra (mais de 50 títulos): 

Os filmes realizados durante o período franquista: "Cuenca" (1958), "Los Golfos" (1960), "La Caza" (1966), "Pippermint Frappé" (1967), "El Jardin de las Delicias" (1970), "Ana y los lobos" (1973), "La Prima Angélica" (1974), então sujeitos ao crivo da censura.

Os filmes da transição pós-democrática: "Cria Cuervos" (1976), "Elisa, vida mia" (1977), "Mamá cumple 100 años" (1979), "Deprisa, deprisa" (1981), que lhe granjearam notoriedade internacional.

Os filmes de "baile flamenco", iniciado com "Bodas de Sangre" (1981), "Carmen" (1983) e "El Amor Brujo" (1986), uma das suas grandes paixões;

E, finalmente, a sua época mais eclética, com "El Dorado" (1988), "La Noche Escura" (1989), "Ay Carmela!" (1990), "Sevilhanas" (1992), "Flamenco" (1995), "Taxi" (1996), "Tango" (1998), "El Séptimo dia" (2004), "Fados" (2007), "Flamenco, Flamenco" (2010) e "Jota" (2016), e.o. 

Sobre "Fados" (o filme) não resisto a contar um pequeno episódio. O realizador, convidado pela Câmara Municipal e pelo Turismo de Lisboa, para dirigir um filme sobre a canção portuguesa, veio ao Museu de Fado, falar sobre o projecto. Estávamos em 2005 e ainda não havia argumento. Lembro-me de ter perguntado se pensava fazer um filme baseado numa história original ou seguir o modelo já experimentado em "Sevilhanas" e "Flamenco", documentários onde os intérpretes se limitam a dançar ou a cantar perante a câmara, sem qualquer ligação entre si. Saura, achou a pergunta interessante ("já vi que conhece os meus filmes..."), mas respondeu que ainda não tinha decidido. Para quem não viu o filme, a fórmula é a mesma dos documentários referidos. Do ponto de vista formal, um filme perfeito: as canções, os cantores, os músicos, a fotografia (do grande Vittorio Storaro). Tudo bom. Só não percebemos, o que estão lá a fazer cantores como Miguel Poveda, Chico Buarque, Caetano Veloso, Lila Downs ou Lura (!?). A menos que esta tenha sido uma exigência da produtora (espanhola) que pagou parte substancial do filme. De todos os filmes de Saura que vi, este é o que menos gosto... 

Finalmente, o grande vencedor dos "Goya" deste ano: "As Bestas" do realizador Rodrigo Sorogoyen, que levou para casa 9 estatuetas: melhor filme, melhor realizador, melhor actor principal (Denis Minochet), melhor actor secundário (Luís Zahera), guião original, montagem, fotografia, música e efeitos sonoros. Um filme denso e inquietante, sobre a propriedade rural, conflitos familiares, despeito, inveja, xenofobia e violência, num lugar ermo da Espanha profunda. Filmado na Galiza, em imagens de rara beleza, o filme prende-nos do primeiro ao último minuto, não nos largando muitas horas depois. "Un filmazo". Assim os distribuidores portugueses, o descubram e exibam. 


Foto- Anna Saura Ramón junto com o seu pai Carlos Saura- GTRES/GTRES