2006/10/29

A internet e os donos do megafone

Gostaria de ter tido a possibilidade de dispôr de um meio como a internet há quarenta ou cinquenta anos. O universo estava mais próximo de nós, conhecíamos “menos” gente, os nossos interesses estavam mais limitados, havia menos “notícias”. Imagino como a internet teria, certamente, tornado bastante interessante a gestão deste meu pequeno universo...
Mas, hoje, os nossos contactos multiplicaram-se muito para além do suportável e daquele valor mágico dos cento e tal que os cientistas apontam como sendo o nosso número “natural” de contactos. As nossas fontes de referência alargaram-se. Hoje podemos saber tudo sobre tudo! E os novos meios usados para as trocas de informação parecem nunca chegar para este fluxo tão grande de infobits em constante e exponencial crescimento.
Antigamente, a gente das nossas relações estava à distância de um passeio a pé, devotar o tempo necessário à nossa família e aos amigos, prosseguir os nossos interesses, ter hobbies, divertir-mo-nos, saciar a nossa curiosidade, enfim, tudo isso era possível e sobrava-nos ainda tempo.
Hoje, para contactarmos diariamente toda a gente que conhecemos no ciberuniverso, levar até ao fim todos os nossos interesses, saciar a nossa curiosidade, esclarecer as nossas preocupações, digerir toda a informação disponível, saber tudo o que se passa à nossa volta ao segundo, conhecer todos os “últimas horas” de todos os orgãos de informação on-line, teríamos de ter uma capacidade que manifestamente nos falta. E já não incluo aqui as matérias novas que toda esta situação por sua vez veio gerar! É um horror. Devíamos ter um cérebro mil vezes maior e uma esperança de vida multiplicada por um factor mil vezes superior.
Mas, não serve de nada culpar o meio. É tão ridículo culpar a internet por tudo isto, como culpar um lápis e o papel que nos permitem escrever as nossas notas, ou um envelope e um selo por permitirem transmitir uma qualquer mensagem a alguém que precisamos de contactar. Em tempos de revolução total no domínio da formação e transmissão do pensamento nunca se viu tanto reaccionarismo na abordagem de todas esta matérias. Platão, no Fedro, também já zurzia forte e feio na escrita porque, dizia ele, obrigava o pensamento a ficar fora do meio onde originalmente tinha sido produzido. A escrita convidava à preguiça. Hoje sorrimos perante estes pensamentos que nos foram, curiosamente, transmitidos através da escrita...!
Muita gente ainda pensa de modo semelhante em relação aos computadores. Mas, nem todos terão a dimensão de Platão...
É verdade, hoje através da internet conhecemos mais gente do que toda aquela que conseguiríamos gerir no curto período das nossas vidas, temos ao nosso dispôr enciclopédias, dicionários e outras fontes de informação que jamais teremos capacidade para absorver mesmo parcialmente, sabemos na hora o que se passa no outro lado do mundo, com links relativos a toda a matéria que se encontra relacionada com o assunto que estamos a analisar, falamos e vemos amigos do outro lado do planeta e usamos livremente som e imagem fixa e em movimento como parte integrante do nosso discurso.
Há por aí uns escribas que se levantam contra tudo o que cheira a tecnologia digital porque não preserva a pureza do lápis e do papel ou o cheiro “natural” das tintas de impressão. Por acaso, eles também tecnologias, sem nada de “natural”...
A internet deve ser, o assunto sobre o qual, a par de coisas novas e importantes, hoje mais asneiras se escrevem...! Sobretudo por estes arrivistas do digital, estes novos-ricos da ciber-sociedade que não dispensam os computadores, mas desdenham dos outros que descobrem novos modos de o usar... Gostaria de ver estes velhos do Restelo digital a voltar ao balcão dos bancos para levantar um cheque! E é verdadeiramente escandaloso o coro de idiotas que, por motivos estrictamente pessoais, se insurge contra as virtudes do novo meio de criação e expressão do pensamento. Cheira-me que toda esta indignação se fica a dever apenas ao facto de terem percebido que perderam o privilégio do uso exclusivo do megafone. É isso que os preocupa. E não me admiraria que fossem os primeiros a querer a instauração de um regime de lápis digital azul se pudessem...