2019/04/11

Consanguinidades


O que, num passado recente, era mais ou menos "consensual" na sociedade portuguesa, tornou-se alvo de notícias e acaloradas discussões em tudo quanto é comunicação social deste país.
A coisa teria começado há cerca de dois meses atrás, quando o primeiro-ministro, aproveitando a aprovação do último Orçamento de Estado, decidiu substituir diversos membros do seu gabinete, numa tentativa de "refrescar" o governo com vista ao ciclo eleitoral que se avizinha. Até aqui, nada de anormal (todos os governos o fazem) e as substituições foram globalmente bem aceites e até elogiadas.
O "problema" surgiu, quando foram conhecidos os nomes dos novos ministros e secretários de estado e se percebeu que, muitos deles, eram familiares em primeiro grau (filhas, esposas, irmãos, etc.) de governantes em exercício de funções, o que levou alguém a comparar o actual gabinete a uma família que almoçava e dirigia o país em conjunto...
De facto e analisando a composição do actual governo, não podemos deixar de nos espantar:
Mariana Vieira da Silva, ministra da Presidência, é filha de José Vieira da Silva, ministro da Segurança Social; José Gomes Cravinho, ministro da Defesa, é filho do ex-ministro João Cravinho; António Mendonça Mendes, secretário de estado dos Assuntos Fiscais, é irmão de Ana Catarina Mendes, secretária-geral adjunta do PS; Eduardo Cabrita, ministro da Administração Interna, é marido de Ana Paula Vitorino, ministra do Mar. Esta, por sua vez, escolheu o advogado Eduardo Paz Ferreira, marido da actual ministra da Justiça, Francisca van Dunem, para negociar a concessão do terminal de Sines; Maria Manuela Leitão Marques, ex-ministra de modernização e actual candidata a deputada no PE, é mulher do ex-deputado europeu Vital Moreira; A mulher do eurodeputado Carlos Zorrinho, Rosa Matias Zorrinho, ex-secretária da saúde, foi nomeada para o Conselho de Administração do Centro Hospitalar de Lisboa; Nélson de Sousa (ex-assessor de António Costa na CML) vai para secretário-de-estado, onde já trabalha Pedro Siza Vieira, seu amigo, no ministério de Energia; Pedro Nuno Santos, ministro das Infraestruturas e Habitação, nomeou a sua mulher para uma secretaria de estado, etc...Isto, para citar os mais conhecidos. A lista, entretanto divulgada, já vai em 40 nomes!
A oposição (leia-se, direita) indignou-se e Cavaco Silva aproveitou para declarar que, no tempo dos seus governos (1985-1995), isto nunca tinha acontecido (!?). Ora, como bem demonstrou o insuspeito "Observador", foram quinze as nomeações, entre cargos políticos e familiares directos, durante o seu mandato.    
Lembremos:
Maria dos Anjos Nogueira, mulher do ministro da Presidência e da Defesa, Fernando Nogueira; Sofia Marques Mendes, mulher de Marques Mendes, para a secretaria de estado de Agricultura; Margarida Cunha, mulher do ministro de Agricultura, Arlindo Cunha; Maria Filomena de Sousa Encarnação, mulher de Carlos Encarnação, para adjunta do secretário geral da Cultura, Sousa Lara; Regina Estácio Marques, mulher de Pedro Estácio Marques (assessor de Cavaco), para secretária de Carlos Encarnação; Fátima Loureiro, mulher de Carlos Loureiro, para a Administração Interna; Eduarda Onorato Ferreira, irmã de José Onorato Ferreira, chefe de gabinete de Cavaco Silva; Isabel Elias da Costa, mulher de Elias da Costa, secretário de estado das Finanças; Teresa Corte-Real Silva Pinto, irmã do secretário de estado de modernização;  Isabel Ataíde Cordeiro, mulher de Manuel Falcão, chefe do gabinete de Santana-Lopes; Margarida Durão Barroso, mulher do ex-secretário de estado nos Negócios Estrangeiros, Durão Barroso, entre outros menos conhecidos...
É isto normal? Parece-nos bem que não, ainda que se possa argumentar que, todos os escolhidos, têm currículos invejáveis e sejam altamente competentes. Mas, então, não há mais ninguém competente neste país, para além dos familiares, certamente de confiança política? Haverá, com certeza e, em si, a confiança política fortalece a coesão governamental.
Portanto, o argumento, tem de ser outro.
Como bem demonstrou Francisco Louçã, o poder (social e económico) fortalece-se através das famílias. O autor investigou, conjuntamente com Jorge Costa e Teixeira Lopes, para o livro "Os Burgueses" (Ed. Bertrand, 2014), o percurso profissional de todas as pessoas que foram ministros ou secretários de estado nos 19 governos constitucionais desde 1976 até 2013, exceptuando os dois últimos governos (Passos/Portas e o actual). Do PSD foram 296 governantes, do PS 295, e do CDS 54, havendo ainda 81 independentes. Verificou que algumas empresas foram a "escola" dos partidos que mais governaram.
"Como nos interessava em especial essa ligação dos governantes, medida pela presença em conselhos de administração, antes ou depois ou antes e depois do cargo público, verificámos se havia uma diferença notória entre os trajectos de gente do PS e do PSD nessas relações. Sim, há diferenças, mas ligeiras: dos governantes do PS, 47% tinham ou criaram ligações com as empresas, ao passo que o número sobe para 64% no PSD. Nos governos Durão Barroso-Paulo Portas e Santana-Lopes-Paulo Portas chegou a haver quatro governantes com ligações empresariais para um que não as tivesse. E o actual é o primeiro governo do PS que não tem um representante destacado no Grupo Espírito Santo (que, entretanto, deixou de existir).
Destes 776 governantes, 230 foram da finança para o Governo ou saíram do Governo para a finança, ao longo da sua vida. O PSD tem vantagem nesta corrida, pois aí se encontram 75 governantes do PS, mas 102 do PSD. Se cuidarmos da evolução de todos os ministros das Finanças, temos que 14, entre 17, prosseguiram ou fizeram carreira em instituições financeiras. No PSD, foram quase todos: oito em nove. No PS, idem: seis em oito. Os ministros das Finanças vão para as finanças, parece ser o seu destino garantido e, entre todos os governantes, um em cada três teve ou passou a ter um lugar de topo na finança.
Se registarmos as relações com os grandes grupos económicos, estes albergam 53 governantes do PS e 90 do PSD. Se se tratar especificamente das empresas PSI20 (cotadas em bolsa), foram 51 do PS e 68 do PSD. Se olharmos em contrapartida para as parcerias público-privadas, o mapa tem uma diferença um pouco mais acentuada, 35 do PS e 53 do PSD. (...) Depois de saírem do Governo, temos 79 do PS e 83 do PSD e do CDS: um em cada quatro dos governantes de todos os governos constitucionais não era e passou a ser administrador. Estas pessoas foram para a finança (113), para a industria e energia (92) e para o imobiliário e comunicações (43 cada).
(...) O argumento segundo o qual o PS tem de recrutar governantes entre familiares que têm o mesmo percurso partidário, porque esse é o seu meio natural, ao passo que o PSD os vai buscar a empresas, onde se move mais à vontade, cai portanto por terra. Ambos os partidos, cada um à sua maneira, têm cultivado intensas relações empresariais, que lhes devolvem o cuidado recrutando os seus dirigentes e ex-governantes para cargos de topo" (Louçã, Francisco: "A família que importa mesmo é o negócio" (in "Expresso" d.d. 30 de Março 2019).
Perceberam, agora?
Como diria o (saudoso) Zeca: "Isto é genético, pá!".