2011/01/21

Reflexão

"Passava da meia-noite quando o escrutínio terminou. Os votos válidos não chegavam a vinte e cinco por cento, distribuidos pelo partido da direita, treze por cento, pelo partido do meio, nove por cento, e pelo partido da esquerda, dois e meio por cento. Pouquíssimos os votos nulos, pouquíssimas as abstenções. Todos os outros, mais de oitenta por cento da totalidade, estavam em branco".

José Saramago

(em "Ensaio sobre a Lucidez")

2011/01/20

O dominó tunisino

A revolta que, por estes dias, grassa na Tunísia, tornou-se uma porta de esperança. Não só para a oprimida população tunisina, mas também para as populações árabes e magrebinas dos países vizinhos. Ao contrário das manifestações do ano passado na Argélia, onde jovens marginalizados pelo desemprego e pela miséria vieram para as ruas protestar contra os brutais aumentos de bens essenciais, a revolta tunisina radica num protesto social das classes médias, fartas de uma oligarquia que não trouxe democracia, nem desenvolvimento económico. É por isso que, depois da fuga do ditador Ben Ali para a Arábia Saudita, o governo interino (temporariamente chefiado por Mohamed Ghannouchi) não conseguiu acalmar a "rua" e os manifestantes que, diariamente, continuam a exigir a demissão de todos os governantes sem excepção. Argumentam estes que os ministros em função são cumplices da ditadura deposta. Aparentemente, conseguiram ontem mais uma vitória, pois quatro dos ministros, ainda em funções, já se demitiram. Resta saber se a "limpeza" iniciada com a fuga do ditador, continuará a este ritmo ou se o governo interino, com a ajuda do exército, tentará parar a contestação. Até agora e com o desmantelamento da polícia política, que era a maior força de repressão, o exército parece ter escolhido o "lado do povo" (as imagens que as televisões internacionais mostram, não mentem). É esta força das imagens e das "redes sociais" (mais uma vez foram as mensagens na NET que despoletaram a revolta) que parecem ter ateado o rastilho nos países límitrofes: Do Yémen ao Egipto, da Líbia à Mauritânia, da Argélia a Marrocos, sucedem-se os protestos e as "imolações", a exemplo de Mohamed Bouazizi, o herói tunisino cujo sacrifício pessoal detonou a revolta. Nas palavras de um anónimo nas ruas de Tunis: "ontem éramos os inquilinos, hoje somos os proprietários". Esta é a diferença. A Tunísia vive hoje o seu "25 de Abril". Esperemos que por muitos e bons anos.

2011/01/18

Usucapião

Tento definir o conceito de usucapião. Sou um leigo em matéria de leis, mas penso que se trata do direito à posse de um bem, material ou imaterial, resultante do seu uso ao longo de um certo tempo. Espero que os juristas que eventualmente leiam este escrito me concedam uma folgazita...

A "imagem pública" que as figuras com algum tipo de influência no nosso colectivo tentam construir não é um fenómeno que tenha surgido de repente. Alimentando mitos, gerindo silêncios, cuidando do penteado, tendo lições de voz, proferindo discursos, dando entrevistas escolhidas, decidindo a inclinação das riscas das gravatas, evitando perguntas incómodas ou "tablóidizando" as suas vidas, as "figuras públicas" tornam-se, assim, maiores do que a realidade, e usam a imagem para criar poder ou segurar e aumentar o poder que têm. Ao usar a imagem essas figuras acabam com o tempo por se apossar dela. Mas, há qualquer coisa de estranhamente artificial neste "título de propriedade".

A imagem é uma criação que raramente "cola" ao personagem. É que há uma diferença entre ter uma imagem de honestidade, de artista, de louco e ser de facto honesto, artista ou louco. Há uma diferença entre inspirar confiança, suscitar um sentimento de rigor ou causar repulsa e ser confiável, rigoroso ou repulsivo de facto. Há quem tenha imagem de honesto e não seja, há quem não tenha uma imagem repulsiva mas seja repulsivo, há quem tenha imagem de iconoclasta mas seja afinal profundamente conservador. A "imagem", como a pós-produção na fotografia e no cinema, trata de corrigir os defeitos, apagar borbulhas ou dar estatura a quem a não tem. Mas muitas figuras públicas beneficiam da imagem que lhes foi criada e acabam mesmo por ser consideradas honestas, confiáveis ou estarolas pela generalidade das pessoas.

Na próxima eleição presidencial os concorrentes têm todos uma imagem que foi criada para ou por eles. O facto de terem essa imagem não quer dizer que ela corresponda à realidade. Temos de avaliar, através da análise dos factos, se a imagem cola com o personagem ou não. Por mim, creio que todos os personagens que estão na arena da luta presidencial têm imagens com defeito, mas há um candidato, em particular, que tem uma imagem que não condiz, por mais que ele se esforce, com a realidade: Cavaco Silva. Depois do espectáculo que deu, ao não esclarecer a embrulhada das acções da SLN, também ele vai ter de nascer uma segunda vez para conseguir, depois disto, parecer mais honesto do que pretende ser.

Cavaco é, claramente, um destes casos de usucapião. Como desconfiamos da imagem também os factos, esta súbita preocupação com os alunos e pais e as suas escolas, com os funcionários públicos e com os desempregados, suscitam desconfiança. É preciso estar atento para que não venha, por usucapião, a beneficiar desta imagem de paladino dos desprotegidos que agora surge, surpreendentemente, nesta etapa final da campanha.