2023/07/30

A Praga dos Louva-a-Deus

"Dirigiu-se de novo o SENHOR a Moisés: vai novamente fazer o teu pedido ao Faraó. No entanto, endurecerei o seu coração, assim como o dos seus acompanhantes, de forma a ter oportunidade de fazer mais milagres, demonstrando o meu poder, coisas que poderão contar aos vossos filhos e descendentes, descrevendo o que tem acontecido no Egipto, para que saibam que sou o SENHOR". 

Moisés e Aarão pediram nova audiência ao Faraó. "O SENHOR, Deus dos Hebreus, diz-te: "Até quando, recusareis submeter-vos a mim? Deixai ir o meu Povo para que me adore. Se recusares, amanhã cobrirei toda a nação de um espesso bando de gafanhotos" (Êxodo 10)

Não sabemos se foi mesmo assim, mas a história é boa e toda a gente a conhece.

Que o Faraó era "mau", ninguém duvida. Essa era, aliás, uma das características dos Faraós. Serem maus. Mas, onde há "maus", há "bons" e, onde não há, alguém vela por nós (os bons). Nos meus piores momentos, socorro-me sempre desta ideia: "não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe". Tem resultado.

Acontece que, nem nos piores pesadelos, imaginei ser alvo de uma "praga" a sério. Está a acontecer e não é brincadeira nenhuma. Experimentem ir à capital do reino por estes dias e vão perceber do que falo. 

Lisboa, que já era uma espécie de "Disneyland para remediados", tornou-se em poucos dias uma espécie de "Altar Ambulante", para jovens turistas. São turistas jovens, imberbes e asseados, que se vestem todos da mesma maneira e riem por tudo e por nada. Nunca percebi porque é que riem tanto. Parecem hienas. O problema não é rirem, o problema é serem mais de um milhão ao mesmo tempo, numa cidade de meio-milhão de habitantes, onde pouca coisa funciona bem.

Explicando melhor: a questão de fundo não é Portugal ter-se candidatado à organização das Jornadas Mundiais da Juventude (católica), o que em si nem é bom, nem é mau (antes pelo contrário). A questão é essa decisão ter sido proposta pelo patriarcado português, com a cumplicidade do principal representante da nação, o beato presidente Marcelo. Pior: a decisão (que implicava apoios significativos do estado) foi tomada à revelia da população (coisa a que já estamos habituados) e foi tornada pública durante as últimas "Jornadas", que tiveram lugar no Panamá em 2019. Ou seja, há quatro anos!

E o que foi feito durante esses quatro anos? Pouco, em relação ao tempo disponível, muito em relação aos prazos estabelecidos. É verdade que, pelo meio, houve uma pandemia, o que atrasou substancialmente os preparativos. Mas, também é verdade que o Vaticano concordou em adiar a data (inicialmente prevista para 2022) o que, de alguma forma compensou, o atraso. Também é verdade que a CML mudou de presidência em 2021, facto que o "Calimero" Moedas não se cansa de apregoar. Mas que raio, quatro anos!?

Também sabemos que o planeamento e o cumprimento de prazos, não são pontos fortes da cultura portuguesa. Somos bons a criar, maus a planear. Não foi diferente desta vez. A prova, foram os sucessivos anúncios, feitos já este ano (a seis meses do evento) com as dimensões do palco e os custos envolvidos, explicados por José Sá Fernandes (o "sempre em pé" de serviço), capaz de afirmar tudo e o seu contrário, que é para isso que servem os "peões de brega". Uma trapalhada sem nome, a que o cardeal (envergonhado, calcule-se!) veio pôr fim, reduzindo as dimensões e os custos da coisa, considerados exagerados para uma pobre nação, ainda para mais com uma dívida pública de 110% do PIB. O que diriam os pobres? 

Acontece que, a tão pouco tempo do evento, com as obras atrasadas, as alterações propostas e os prazos por cumprir, não parecia fácil a concretização do "happening". Não parecia fácil, mas nos momentos mais desesperados, há que ter fé. Fé num milagre. Afinal, o evento é patrocinado pela Igreja católica, o maior "fazedor de milagres" da História. Porque não, aqui? 

E foi nesta altura que a principal construtora do país, a Mota Engil, apresentou a "solução milagrosa": Cumprir os prazos é possível. Sai é mais caro! 

Como é que eu nunca me tinha lembrado disto?

Afinal, era fácil. A prova, é estarmos a 48 horas do evento e tudo (parecer) estar preparado. "Chapeau"! Ainda dizem mal dos gestores portugueses. Más-línguas, é o que é.

O "Expresso" fez as contas:

"75,8% dos contratos identificados pelo "Expresso", foram celebrados por ajuste directo - mesmo contratos chorudos que em condições normais exigiriam um contrato público e o visto do Tribunal de Contas  (TdC), como a preparação dos terrenos na zona ribeirinha da Bobadela (no valor de 4,29 milhões adjudicado por Loures); ou a construção do altar-palco no Parque Tejo-Trancão, trabalho de 4,24 milhões que a Mota-Engil arrecadou à SRU, uma empresa municipal de Lisboa criada em 2004 e dedicada à reabilitação urbana. Todos estes ajustes directos - 147 no total - só foram possíveis graças ao Artigo 149º da Lei do Orçamento de Estado de 2022, aprovado pela maioria do governo e que alarga os montantes máximos de todos os contratos públicos feitos para a JMJ. Dessa forma, só 11% dos contratos analisados pelo Expresso (22) passaram por um concurso público; e apenas 24 (ou 12,4%) mereceram uma consulta prévia por parte das entidades públicas" (in Expresso, pg. 5, d.d. 28/7/23).  

"Há contratos de todo o tipo: seguranças privados e assessores para actividades várias, 95 mil euros pagos por Carlos Moedas à TVI para promover a cidade na televisão e em plataformas digitais ou os mais de 684 mil euros que o município de Oeiras deu há dias à promotora "Everything is New" para gerir a logística das actividades marcadas para o Passeio Marítimo de Algés - onde se realiza o festival NOS-Alive também da empresa de Álvaro Covões. Aliás, o município de Isaltino Morais está no topo dos mais gastadores: mais de um milhão de euros em 11 contratos. Além disso a GNR adquiriu geradores de energia no valor de quase 9,5 mil, o INEM avançou há poucos dias para a compra de 70 telemóveis por quase 15 mil euros e até o Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira (IVBAM) gastou 3,5 mil euros por ajuste directo numa "caixa de embutidos personalizada para oferta a Sua Santidade, o Papa Francisco, lê-se no contrato" (ibidem).

"Tudo somado, esta é apenas uma fatia do bolo JMJ em comparação com as estimativas de custos avançadas nos últimos meses: o Governo estimou a sua parte em 30 milhões, Lisboa avançou com 35 milhões (mais 13,5 do que previa inicialmente) e Loures com 9 milhões. Mas, os custos agregados para o erário público com a visita do Papa, ainda não foram comunicados oficialmente por nenhuma das partes envolvidas, e o retorno para o país desse investimento também não" (ibidem). 

Ao ler esta história, veio-me à ideia o livro "Gomorra" de Roberto Saviani, onde este explica como é que a Máfia cresceu (em Itália e não só): foi através da construção civil, que possibilita a maior parte da traficância política, através de contratos por ajuste directo, para os quais há sempre uma explicação. A coisa funciona normalmente assim: o poder político contrata uma empresa de construção para um determinado trabalho. Esta atrasa a obra e exige mais dinheiro para poder terminá-la em tempo. O poder político paga o excesso (chama-se "derrapagem" no jargão). Mais tarde, a construtora compensa o partido através de uma doação (apoio a uma campanha eleitoral, por exemplo). Dessa forma, garante contratos futuros e novas doações. Na Sicília, onde tudo começou, chama-se extorsão ou chantagem. Em Portugal, país de brandos costumes, chama-se corrupção. É tudo uma questão de semântica. 

No fim, quem ri, são as hienas.