2020/04/15

Duas semanas noutra cidade (9): Espanha, Confinamentos e Estratégias


Rainha Máxima da Holanda e o marido Rei Willem-Alexander na Feria 2019 (foto Look)

Depois de uma semana "santa", em que o sol brilhou e a temperatura não baixou dos 22º, voltou a chover em Sevilha. Chuva e trovões, que o "criador" não parece ter gostado da forma como os citadinos voltaram à "festa"...
Mal passou a Quaresma, mudaram as regras sociais. O que antes era penitência e martírio, transformou-se em música pop e "sevilhanas". A explicação é simples: dentro de quinze dias, teria lugar a "Feria", este ano cancelada por motivos óbvios, pelo que os habitantes da cidade não podem reencontrar-se naquela que é considerada a maior festa tradicional andaluza: dez dias de feira popular gigante, visitada anualmente por milhares de pessoas, vindas de todo o país para ver e frequentar as centenas de tendas, agrupadas em colectividades culturais e associações de ganadeiros e agricultores da região, onde a entrada é exclusiva. Depois, existem as tendas públicas, onde se pode provar tudo o que é petisco regional e ouvir música ao vivo. Com sorte, é possível ver bons espectáculos de Flamenco e dançar "sevilhanas", em palcos espalhados pela Feira. Pelas largas alamedas, passeiam grupos de sevilhanas, deslumbrantes nos seus trajes de lunares, enquanto os ganadeiros da região ostentam riqueza, montados em "puros sangue" andaluzes e passeando em charretes descobertas, com cocheiros de libré. Anexo ao recinto principal, existe ainda um "lunapark", onde os mais jovens se divertem sob o olhar condescendente dos pais. A polícia, omnipresente, regula o trânsito e impede os excessos. Uma orgia de côr e música, que nenhum sevilhano que se preze, deixa de visitar uma vez por ano.
Desta vez, devido ao "confinamiento", restam as varandas e as açoteias dos prédios, onde todos os dias, pelas 20h, os habitantes da cidade agradecem aos profissionais da saúde, com uma longa salva de palmas e música: depois de uma semana de marchas e pregões religiosos, a alegria das "sevilhanas", transmitidas através de aparelhagens sonoras que são escutadas em todo o bairro. Uma festa contagiante.
Esta (genuína) alegria, não ignora a triste e dura realidade. Pesem as medidas draconianas, anunciadas e postas em prática pelo governo espanhol, de que somos testemunha diariamente (patrulhas de policias armados de metralhadora, controlo severo nos transportes públicos e unidades paramédicas instaladas em lugares estratégicos, para acudir aos necessitados), a verdade é que o número de infectados e mortes, causado pelo coronavírus, não pára de subir. Hoje, eram 177.633 e 18.579, respectivamente, o que faz de Espanha o segundo país com mais infectados e o terceiro com mais mortes, a nível mundial. A maior crise humanitária, desde a segunda guerra mundial.
Da situação, tentam tirar proveitos politicos os dois maiores partidos da oposição, que não perdem uma ocasião para criticar as medidas do governo. Enquanto, Casado (líder do PP, direita conservadora) acusa o governo de tomar decisões de forma unilaterar e declara não estar disposto a apoiar o governo ou assinar mais "Pactos de Moncloa" (acordo entre partidos parlamentares, em 1977, n.r.); Abascal (líder do Vox, fascista) acusa o governo de practicar uma "eutanásia feroz" e de ter uma "gestão criminosa", na contenção da pandemia do vírus. As declarações, deste homem defensor do "senso comum", têm sido acompanhadas por mentiras nas redes sociais, onde sugere que o governo censura as mensagens telefónicas relacionadas com o vírus, que os imigrantes são beneficiados no tratamento em hospitais, ou que a causa de morte dos infectados é devido à "peste chinesa", entre outros mimos. Nada que nos surpreenda, já que o nihilismo e as "fakenews", a par da negação da ciência e o ódio aos estrangeiros, faz parte do discurso de todos os populistas de direita. Veja-se o caso de Trump (USA) Bolsonaro (Brasil) ou, mais perto de nós, Orbán (Hungria), Le Pen (França), Wilders (Holanda) e Ventura (Portugal).

Acontece que o sucesso da China e de outros países asiáticos, no combate ao Coronavírus, se deve a factores culturais e políticos específicos, que explicam a forma como abordaram a pandemia, para a qual, de resto, a OMS já tinha alertado em 2016.
No excelente ensaio "Coronavirus y estado policial. La revolución viral",  publicado em 22 de Março último no El País, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, traça uma panorâmica da expansão do vírus e aponta as razões pelas quais, segundo ele, a Europa está a fracassar no combate à pandemia.
Um resumo: as cifras dos infectados não param de aumentar em Itália, Espanha, França, Reino Unido, Bélgica, Holanda, Suiça ou Alemanha, onde diariamente morrem centenas de pessoas e têm de ser tirados ventiladores aos mais velhos para dá-los aos mais jovens, enquanto se decretam estados de excepção que, em última análise, legitimam o "estado soberano" (que decide sobre o estado de excepção) e fortalecem o nacionalismo. Segundo ele, esta é uma exibição de soberania que de pouco serve, da mesma forma que proibir a entrada de estrangeiros nesta altura, é um acto absurdo, já que a Europa é justamente o continente para onde ninguém quer vir agora. Seria muito mais útil a eficaz cooperação entre estados europeus e proibir a saída de europeus para outros continentes, uma vez que a Europa é o epicentro da epidemia.
Em comparação com a Europa, quais as vantagens que o "sistema asiático" pode oferecer na eficiência do combate ao vírus? Estados asiáticos, como o Japão, a Coreia, a China, Hong-Kong, Taiwan e Singapura, têm uma mentalidade autoritária que vem da sua tradição cultural (confucionismo). As pessoas são menos negativas e mais obedientes que na Europa. Também confiam mais no estado. Não apenas na China, mas também na Coreia e no Japão, a vida está organizada de uma forma mais estrita que na Europa. Sobretudo, para detectar o vírus, os asiáticos apostam fortemente na vigilância digital. Admitem que a "big data" pode encerrar um enorme potencial para se defender da pandemia. Poderia dizer-se que as pandemias na Ásia não são apenas combatidas por virólogos e epidemiólogos, mas sobretudo por informáticos e especialistas em macrodata. Uma mudança de paradigma, da qual a Europa não parece ter-se dado conta. Ou seja, a "bigdata" salva vidas humanas.
A consciência crítica, perante a vigilância digital, praticamente não existe na Ásia. Apenas se fala da protecção de dados em democracias liberais como o Japão ou Coreia. Ninguém se opõe à recolha de dados pessoais pelas autoridades. Na China, criaram um sistema de crédito social, inimaginável para europeus, que permite uma valorização e uma avaliação exaustiva dos cidadãos. Na China, não há nenhum momento da vida quotidiana que não esteja submetido a avaliação. Controla-se cada clic, cada cada compra, cada contacto, cada actividade nas redes sociais. A quem atravessar o semáforo vermelho, a quem tiver contactos com críticos do regime, ou a quem coloque comentários críticos nas redes sociais, tiram pontos. Nesse caso, a vida pode tornar-se muito perigosa. Ao contrário, a quem comprar alimentos sãos ou quem ler publicações do regime, dão pontos. Na China isto é possível, porque existe um intercâmbio, sem restrições, entre os provedores da internet, os telemóveis e as autoridades. Praticamente, não existe protecção de dados e não se conhece o conceito "esfera privada".  
Na China, 200 milhões de câmaras de vigilância, muitas delas dispondo de tecnologia de reconhecimento facial detalhado, permitem vigiar e controlar todos os cidadãos em espaços públicos. Ao sair do metro ou do comboio, as câmaras medem a temperatura corporal dos passageiros e avisam-nos, assim como aos restantes passageiros, do perigo de contágio. Este tipo de rastreio, permitiu isolar e testar potenciais infectados e dirigi-los para unidades hospitalares onde são tratados. Esta foi, de resto, uma das razões do sucesso do combate ao vírus, que em menos de três meses, limitou a epidemia, em Wuhan e em 12 cidades circundantes, a números residuais. Sobre isto e muito mais, no próximo "post".

(continua)