O mundo assistiu certamente deslumbrado a estes Jogos de Pequim. Creio que será difícil esquecer as cerimónias de abertura e de encerramento, as prestações de alguns dos atletas presentes e a espetacular superação de velhos recordes de muitos anos, que caíram, justamente, como que a coroar o espetáculo nesta edição dos JO.
Com mais ou menos publicidade, com mais ou menos interesses económicos à mistura, o que é que todos admiram nos JO, ou, na verdade, em qualquer competição desportiva? Simplesmente, o esforço para atingir e ultrapassar os aparentes limites da fisiologia humana. No fundo, com mais ou menos espetáculo, é simplesmente disto que se trata. No desempenho dos atletas vemos o que nós próprios, enquanto membros da espécie humana, somos capazes. Neste sentido, as "feiras de desporto" que são os Jogos ou os campeonatos não passam de oportunidades para os atletas demonstrarem publicamente, numa dado momento, quais são os limites físicos do que é ser humano. A competição com os outros, dentro de determinadas regras, constitui uma espécie de bitola que permite aferir ou calibrar o desempenho desportivo de modo a validar o nosso testemunho, os recordes e as classificações.
"Dentro de determinadas regras". Ou seja, dentro de determinados limites de competição, iguais para todos, e no quadro da situação da pressão a que a exposição pública a todos sujeita.
É deste pequeno quadro de referência, que garante a tal "verdade", que surgem então os feitos desportivos.
Mas, serão as coisas assim tão simples? Sabemos que o doping, por exemplo, é uma prática corrente e que as entidades anti-dopagem andam sempre, numa luta insana, a reboque do que fazem os laboratórios pró-dopagem (uma situação que faz lembrar o que se passa no domínio dos vírus de computador e das empresas que criam programas para os combater). Sabemos que a qualquer substância dopante proscrita, para a qual se encontraram métodos mais ou menos fiáveis de detecção, sucedem novas substâncias mais poderosas e cada vez menos facilmente detectáveis. Novas drogas como o Aicar ou o GW 1516 transformam músculos flácidos em máquinas poderosas num ápice, por exemplo, e fala-se na possibilidade dos atletas de Pequim poderem ter recorrido a elas, uma vez que os métodos de detecção destas novas substâncias não são fiáveis. Já se fala hoje de transformações genéticas, absolutamente silenciosas, para melhorar o desempenho desportivo. Ninguém sabe, ao certo, onde começa e acaba a fantasia nesta matéria. A "verdade desportiva" pode ser um mito e uma cortina para tapar outras verdades, como o foram certamente as cerimónias espetaculares destes JO.
O ideal desportivo é hoje objecto de intenso debate e de tomadas de posição inflamadas. Há quem defenda, por exemplo, a liberalização do doping e um "desporto" sem limites. A verdade é que podemos, sem receio de estarmos a fazer batota, melhorar a vista com uma operação por laser, ou corrigir um qualquer defeito de anatomia ou uma lesão com uma cirurgia, sendo um facto que, no âmbito da competição desportiva, a linha que divide estas e as outras intervenções sobre o corpo é ténue.
No meio de toda esta trapalhada, ainda um dia, estou certo, a ingenuidade de Marco Fortes será premiada com uma medalha de ouro...