2018/06/29

Na rota do Flamenco (3)

Centro Andaluz del Flamenco
Jerez de la Frontera, principal cidade da província de Cádiz, é o coração da rota flamenca.
Cidade monumental, onde se destacam a Catedral, o Alcázar e a antiga muralha que circunda parte do casco histórico, concentra - nos bairros de Santiago e de S. Miguel - os principais santuários flamencos. É lá que podemos encontrar grande parte das "peñas", onde diariamente cantam e tocam os intérpretes do género, para além dos "tablaos", mais vocacionados para os turistas em busca do "baile" andaluz. Registámos, só nas ruas circundantes à Plaza del Arenal (onde parámos para as "tapas" e para a "caña" habitual), as "peñas" flamencas, "Buena Gente", "La Buleria", "Antonio Chacón", "Los Cervícalos", "Garranzo" e "Tablao Flamenco Pura Arte"...

A cidade produziu inúmeros "cantaores" de nomeada, mas dois destacam-se dos restantes pela sua excepção na interpretação da arte "jonda": Antonio Chacón e Manuel Torre.

Don Antonio Chacón
Don Antonio Chacón (1869-1929) é, ainda hoje, considerado a grande figura do "cante" da primeira metade do século passado. Homem culto e estudioso, dominava a maior parte dos estilos,  ainda que fosse especialista em "granaínas", "malagueñas" e "cartageneras", o que lhe granjeou a popularidade e admiração entre os pares. Foi um dos grandes animadores dos "cafes cantantes" de Sevilha e, dele se dizia, que tinha de ser o último da noite a cantar, porque se fosse o primeiro, os clientes saiam da sala e já não queriam escutar mais ninguém. Na sua qualidade de "cantaor" e conhecedor do género, foi escolhido para presidir ao júri do 1ª Concurso de Cante Flamenco (Granada, 1922) acontecimento histórico, idealizado pelo compositor Manuel de Falla e que teve o apoio e divulgação do poeta Garcia Lorca e do guitarrista clássico Andre Segovia. De Chacón, são históricas as suas gravações em estúdio com os guitarristas Ramón Montoya e Sabicas, recentemente reeditadas numa caixa de luxo, para gáudio dos seus inúmeros admiradores. Enquanto deambulávamos pelas estreitas travessas da cidade, encontrámos, na Calle Salas 2, próximo das caves do vinho Xerez, o "Centro Cultural Don Antonio Chacón", que promove regularmente noites flamencas onde, para além do "cante", "toque" e "baile", são organizadas tertúlias sobre o tema.

Manuel Torre
Manuel Torre (1878-1933) de origem cigana, e unanimemente considerado um dos maiores nomes do "cante" de sempre, é a outra grande figura da cidade. Foi convidado especial para participar no Concurso de Granada, onde cantou "seguirias", tendo recebido variados prémios de consagração ao longo da carreira. Era avesso a gravações em estúdio e dele restam poucos registos de qualidade, ainda que as "gravações históricas", sejam um "must" para qualquer coleccionador. Um busto, recorda o homem, numa das praças da cidade.

Destaque ainda para intérpretes como La Paquera, El Torta, El Pipa e Jose Mercé, este último nomeado para os Grammy Latinos 2012, todos eles filhos de Jerez e grandes intérpretes da "arte jonda", que (à excepção de El Torta, falecido em 2013) actuam regularmente na cidade.
Em Jerez, existe ainda o único instituto de flamencologia de toda a Espanha, objectivo último da nossa visita. O instituto, entretanto rebaptizado de "Centro Andaluz del Flamenco", está alojado num antigo solar, que dá para uma pequena praça, na Calle San Juan. Alberga mais de 5000 registos escritos e fonográficos, para além de filmes, vídeos, trajes e cartazes, considerada uma das maiores colecções iconográficas do país. Porque era sábado (feriado, 31 de Maio), o Centro estava fechado.

Frustração absoluta, para quem tinha viajado mais de 100km. para visitá-lo. Resta-nos, como consolação, ter descoberto uma cidade magnífica e, agora, um novo pretexto para voltar...
(continua)
     

2018/06/27

Na rota do Flamenco (2)

A pouco mais de 30km de Sevilha, na estrada que liga a capital andaluz a Cádiz, encontram-se três das mais emblemáticas localidades flamencas, naquele que é considerado o triângulo dourado do "cante": Utrera, Lebrija e Las Cabezas. Uma região plana, de grande latifúndio, onde a criação de touros e o cultivo do tomate, constituem as principais actividades da população, considerada uma das mais pobres da região.

Para lá nos dirigimos, na acalentada esperança de um dia compensador, sabendo de antemão que a hora do dia não seria propícia a grandes revelações. Já passava do meio-dia e, quando o sol cai a pique, é melhor procurar outras paragens, como o castelo local, a magnífica Casa da Cultura (onde tivemos direito a uma visita guiada) e ao "Hospitalito", situado no antigo edifício do Convento de las Carmelitas, hoje transformado num museu famoso, onde pudemos admirar o pátio decorado com motivos "mudéjares" e largos espaços onde, em tempos, funcionaram as enfermarias.

irmãs Bernarda e Fernanda
Em Utrera, terra de nascimento das míticas irmãs Bernarda e Fernanda, as mais famosas filhas da terra, realiza-se o "Potaje Gitano", o mais antigo festival de Flamenco do Mundo (1957) que tem lugar no último fim-de-semana de Junho. O programa deste ano era de fazer crescer "água na boca", ainda que as temperaturas já ultrapassem largamente os 30 graus positivos, algo comum nesta altura do ano. Lá estarão, a partir de amanhã, El Pele, La Mañanita, Rancapino Chico, Tomás de Perrate, Inés Bacán, Tomasito, Perico El Pañero, El Galli y El Chimenea, acompanhados por Pedro Maria Peña e Antonio Higuero (toque) e Pepe Torres, Farru e María Marrufo (baile). A sessão de abertura estará a cargo de Enrique El Extremeño e haverá um debate dedicado a Enrique Montoya, nos 25 anos da sua morte. Um programa 100% cigano, como é aliás timbre do festival.

Antonio Mairena
Entre "tapas" e "cañas", tempo para deambular pelo bem conservado casco histórico da vila, à procura da "última experiência". Para o fim, estava-nos reservado o melhor. Quis o destino termos ido parar à Pérez Galdós, uma "calle" como as outras, onde, no número 11, está situada a Peña Cultural Flamenca "Curro de Utrera". Para quem não sabe, uma das mais famosas da região e lugar de culto por onde passaram todos os grandes nomes do "cante" flamenco. Um largo espaço, decorado com motivos flamencos, repleto de mesas e com um palco ao fundo, onde têm lugar as actuações e concursos, avaliados por júris que elegem os melhores em cada categoria. Nas paredes, cobertas por fotografias autografadas, lá estava Antonio Mairena (1º "chave de ouro" do "cante"), as irmãs Utrera, Paco de Lucia, Camarón, Carmen Linares ou Mayte Martín, entre dezenas de muitos outros. Os mentores da "peña", ainda que ocupados nos preparativos para a sessão daquela noite, não quiseram deixar os seus créditos por mãos alheias e disponibilizaram-nos toda a informação solicitada, tendo-nos inclusive convidado a regressar este mês, quando o "Potaje" estiver no auge.

No regresso ao centro, passagem pela Plaza de Altozano, lugar de confluência da população local que, ao fim da tarde, enche as esplanadas e confraterniza ao redor de "cañas" e de "mostachones", o doce local vendido em todas as pastelarias. Por coincidência, ou talvez não, realizava-se a Feira do Livro anual. Não resistimos e adquirimos "La Música Preflamenca", um estudo de José Miguel Hernández Jaramillo, editado pela Junta de Andaluzia, por ocasião da Bienal de Flamenco 2002. O dia estava ganho.
(continua)