2018/06/20

Na rota do Flamenco (1)


Mais do que um género musical, o Flamenco é um "modo de vida", seguido por milhares de intérpretes e aficionados em todo o planeta, o que o torna simultaneamente universal e uma industria cultural de sucesso. Poucas músicas serão de imediato tão identificáveis e arrebatadoras, seja pela força telúrica expressa no "quejio" dos seus "cantaores", seja pela destreza e coreografias das "bailaoras", elas próprias um verdadeiro ex-libris da região andaluza. Quando ambas as vertentes são acompanhadas por guitarristas de excepção (e eles são tantos!) a magia impõe-se por definição. Nesses momentos, o "duende" acontece. Assistir a um concerto de Flamenco, nos locais onde o género nasceu e se afirmou é, ainda hoje, quase dois séculos passados sobre os primeiros registos conhecidos, uma experiência única que qualquer melómano não deve perder.
Em 2003, durante uma visita a Sevilha, por ocasião da "Feira de Músicas do Mundo" (Womex), tive o privilégio de assistir ao "Festival Mundial de Flamenco" que tinha lugar paredes-meias com a Womex. Durante três dias, pude conviver e assistir a diversos "showcases" dos flamencos participantes e, se até então, a paixão já era indisfarçável, depois dessa data tornou-se uma obsessão. Nesse ano, a Junta de Turismo local, produziu um guia, composto de 1 livro, dois CDs e um desdobrável, sobre as "Rutas del Flamenco de Andaluzia" o qual, para além da história do género e de uma introdução geral sobre os diversos "palos", indicava os trajectos culturais ligados aos estilos popularizados pelos grandes mestres do género, alguns deles ainda vivos.
Por razões que a razão desconhece, e ainda que tenha voltado inúmeras vezes a Sevilha, nunca tinha tido oportunidade de fazer os trajectos sugeridos. Guardei, no entanto, o guia, para a eventualidade de um dia lá voltar. Foi agora, ou melhor, começou este ano e não vai parar...
Ainda que toda a Andaluzia seja, por definição, "terra flamenca", existem dentro das suas fronteiras lugares considerados verdadeiros "cadinhos" da arte. Dos sete trajectos sugeridos pelo guia, iniciámos a nossa peregrinação pela rota 4, intitulada "El compás de tres por quatro: los cantes básicos" (la soleá, la buleria, el flamenco y la sociedad rural). Um vasto triângulo, localizado na planície que se estende ao longo do Guadalquivir e que abrange, para além de Sevilha, Utrera, Lebrija, Jerez de la Frontera e Cádiz.
Iniciámos a nossa visita pela zona de Triana, na margem direita do Guadalquivir, hoje um bairro de Sevilha que, no século XIX, ainda era uma zona portuária afastada da cidade, maioritariamente ocupada por populações rurais e pela comunidade cigana. Foi aí, que teriam surgido as primeiras formas de flamenco, também chamadas de "cante hermético", por serem cantados em espaços fechados, normalmente em casas particulares onde só os iniciados tinham acesso. A grande revolução dá-se a partir de 1850, quando o Flamenco passa a ser cantado e escutado em estabelecimentos públicos, os chamados "cafés cantantes" ou "cafés de cante", que conheceram a sua época áurea entre 1850 e 1936. O mais célebre dos primeiros "cafés cantantes" foi o "Salón de Recreo", dirigido por Luís Botello, nos anos sessenta do século XIX, situado na Rua Tarifa, a que sucedeu uma academia de dança, instalada no mesmo local. A maior parte destes cafés apresentava espectáculos de dança (baile) que nem sempre eram anunciados como Flamenco. Um dos mais famosos, foi o "La Escalleria", criado em 1880 por Silvério Franconetti, que mais tarde abriu o "Café de Silvério". Nesse período, considerado a "idade de ouro do Flamenco", passaram pelos dois cafés os maiores nomes do "cante" andaluz. Para além do próprio Silvério, discípulo de "El Fillo", cantou no café o grande António Chacón, discípulo de outro "cantaor" fundador, Enrique Jiménez (El Melizzo). No café "El Burrero", mais um cantor de nomeada fazia, entretanto, a sua aparição: Francisco Lema "El Fosforito".
No seu apogeu, e só em Sevilha, os "cafés cantantes" eram mais de trinta, Existiam ainda cafés em Cádiz, Jerez, Segóvia, Granada, Málaga e quase todas as cidades andaluzas.
Hoje, já não há cafés. Restam as lápides, onde se assinala a sua existência nos lugares onde há cem anos imperava o "cante" e agora se homenageiam os grandes "cantaores" do passado, como Tomás Pavón (1893-1952), irmão da mítica Niña de los Peines, cuja passagem está assinalada na Alameda de Hércules, um espaço aberto que, em tempos foi um braço fluvial e onde a "movida" sevilhana começa sempre para lá das dez da noite...
(continua)

PEDOFILIA DE ESTADO!


2018/06/19

O eterno retorno do fascismo


Assistimos, nos dias que correm, a acontecimentos que julgávamos banidos da história da Humanidade, pelo menos daquela parte que considerávamos civilizada.
As imagens de milhares de migrantes que diariamente atravessam mares e fronteiras, correndo riscos que só podem ser justificados quando nada mais há a perder; ou de crianças apartadas dos seus pais, enquanto esperam pela deportação num qualquer barracão de uma fronteira norte-americana, são, para além da sua crueldade extrema, um exemplo paradigmático de regimes que, desprezando todas as regras civilizacionais e democráticas, se outorgam o direito de utilizar métodos que julgávamos banidos desde a 2ª guerra mundial. Não que, desde então, noutros países e latitudes, o autoritarismo, o racismo, a xenofobia e a discriminação, não se tenham manifestado, porventura com maior virulência e de forma brutal, como é próprio dos regimes ditatoriais, como sabemos.
O que espanta nos casos mais recentes (emigrantes africanos, abandonados pelo governo italiano e emigrantes latinos expulsos dos EUA) é estarmos perante acontecimentos passados em países e democracias sólidas, elas próprias construídas graças ao esforço e trabalho de milhões de migrantes ao longo de séculos.
Nada disto é, na realidade, novo, mas há um contexto que ajuda a explicar o aumento exponencial de tais atitudes em diversos países ao mesmo tempo.
É verdade que Trump nunca escondeu as suas intenções e anunciou-as vezes sem fim, durante a campanha eleitoral de 2016. Sempre disse que uma das suas primeiras medidas, seria a de construir um "muro", para impedir a entrada de imigrantes pela fronteira do Sul, ainda que tivesse desistido da ideia quando percebeu que o Congresso (republicanos incluídos) não estava disposto a pagar os biliões que custaria tal desvario. Da mesma forma, recuaria em outras tantas proclamações, cada qual mais disparatada do que a anterior, não porque não desejasse pô-las em prática, mas porque alguém mais "avisado" do seu gabinete, ou os próprios "checks and balances" que protegem o sistema democrático americano, o impediram.
O mesmo se passou em Itália, durante a campanha para as últimas eleições, que dariam a vitória aos partidos "Cinco Estrelas" (populista) e à "Liga Norte" (xenófobo e anti-imigração), que tendo feito campanhas anti-Europa e anti-sistema (o que quer que isso seja) desde sempre disseram ao que vinham. E ganharam. Como, de resto Trump (apesar de ter menos votos), ganhou.
Ou seja, apesar dos seus programas nacionalistas e reaccionários, conseguiram aliciar uma parte não negligenciável da população que (na falta de alternativas credíveis e descrentes das elites políticas tradicionais) optaram por votar em líderes populistas, cuja única mensagem era a recusa do "status-quo" e o ódio ao estrangeiro, bode expiatório de todos os males em sociedades com fortes componentes de imigração, ainda fortemente abaladas por uma crise económica e social, da qual não se refizeram.
O mesmo, de resto, está a passar-se na Europa "civilizada" (Hungria, Polónia, Áustria e Eslovénia) onde os respectivos governos, que incluem partidos de extrema-direita, já alteraram as constituições, advogam a diminuição dos direitos civis, querem o registo de minorias (ciganos, etc.) e a expulsão de estrangeiros ilegais. Também na Europa mais a Norte, em países onde governam coligações liberais, assiste-se com apreensão ao crescimento dos movimentos xenófobos e racistas, como é o caso de Le Pen (França), de Wilders (Holanda), ou o novo partido AfD (Alemanha).
O curioso em toda esta história, é que nenhum dos líderes dos partidos mencionados se reconhece nas práticas que caracterizam os partidos fascistas. Como bem nos lembra Rob Riemen, num seminal ensaio sobre a matéria, o fascismo novo, adapta-se aos tempos. Escreve o filósofo holandês: "Em 2004, o eminente historiador americano e especialista em história do fascismo, Robert O. Paxton, publicou a sua notável obra "The Anatomy of Fascism", onde sublinha que no século XXI nenhum fascista se designará a si próprio como tal. Os fascistas não são estúpidos e são mestres na arte da mentira. Os fascistas contemporâneos distinguem-se em parte pelo que dizem, ainda que seja importante o modo como actuam. À semelhança de Togliatti, Paxton afirma que o fascismo, devido à sua angustiante falta de ideias e ausência de valores universais, assumirá sempre a forma e as cores do seu tempo e da sua cultura. Assim, o fascismo na América será religioso e contra os negros, ao passo que na Europa Ocidental será laico e contra o Islão, na Europa de Leste, católico, ou ortodoxo e anti-semita. A técnica usada é a idêntica em toda a parte: um líder carismático, populista, para mobilizar as massas; o seu próprio grupo é sempre vítima (das crises, da elite ou dos estrangeiros); e o ressentimento orienta-se para um "inimigo". O fascismo não necessita de um partido democrático cujos membros sejam individualmente responsáveis; necessita de um líder  inspirador e autoritário ao qual se atribuem instintos superiores (as suas decisões não têm de ser justificadas), de um líder capaz de ser seguido e obedecido pelas massas. O contexto em que esta forma de política pode dominar é o de uma sociedade de massas afectada pela crise que ainda não aprendeu as lições do século XX" (Riemen, Rob: "O eterno retorno do fascismo", Bizâncio, 2012).
Só não percebe quem não quer.