2018/10/03

O eterno retorno do fascismo (4)

EPA/SEBASTIAO MOREIRA
A menos de uma semana das eleições brasileiras, os dados parecem estar lançados: nenhum dos candidatos à presidência reunirá os votos necessários para ganhar à primeira ronda, pelo que será necessária uma segunda volta (prevista para o último fim-de-semana de Outubro), para saber quem irá ocupar o palácio do Planalto.
Os candidatos mais bem posicionados para passarem à segunda volta, são: Jair Bolsonaro, que representa a extrema-direita mais reaccionária e troglodita do país (apoiado pelos militares saudosistas da ditadura, pela alta-finança e pelas igrejas evangélicas, das quais, a IURD de Edir Macedo, é a mais conhecida); e Fernando Haddad, lançado à última hora pelo PT, em substituição de Inácio Lula, impedido de concorrer por se encontrar preso. 
De acordo com as últimas sondagens, Bolsonaro passará à segunda volta com cerca de 30% dos votos, enquanto Haddad, com cerca de 20%, já se distanciou dos outros concorrentes, ainda que continue longe dos 38% atribuídos a Lula, em finais de Agosto.
Perante este cenário e partindo do princípio que a maioria dos votantes não se revê em nenhum dos dois potenciais candidatos, resta saber em quem votarão os brasileiros (cerca de 50%), que rejeitam o fascismo e o PT.  Porque é disso que se trata, goste-se ou não da escolha.
Uma terceira alternativa, seria a abstenção, mas a constituição brasileira não o permite e o voto é obrigatório. Logo, quem não votar é multado e quem votar em branco favorece o candidato mais bem posicionado, neste caso Bolsonaro. Para mim, que defendo a democracia, a escolha seria fácil. Da mesma maneira que, se fosse americano, teria votado em Hillary Clinton, um mal menor relativamente ao escroque Trump.
Para grande parte da classe média brasileira, o "problema" parece residir no PT, que continua a gerar anti-corpos, muito por causa da corrupção generalizada, da criminalidade e da recessão económica, que o país atravessa de há anos a esta parte. Acontece que, estes problemas, sendo genuínos e reais, não se devem exclusivamente aos governos PT, por uma razão simples: o Brasil é, de há séculos, uma sociedade de "castas" e clientelas, onde a corrupção se tornou "um modo de vida" e o sistema de subornos e nepotismo criou e manteve uma das sociedades mais desiguais do planeta. Esta herança de séculos, que o PT tentou contrariar (sem nunca tocar nos privilégios das elites!), através de programas de combate à desigualdade - elogiados pela ONU, pelo PNUD, pela UNESCO e pelo Banco Mundial - não foi, contudo, suficiente para evitar uma crise social e económica. Os sucessivos escândalos de suborno e corrupção (Mensalão, Odebrecht, Petrobras, etc.) demonstraram à saciedade, que algo estava "podre no Brasil" e não era pouco. O processo de investigação, conhecido por "Lava Jato" (uma alusão à "lavagem" de dinheiro desviado) deu cabo das últimas esperanças do brasileiro médio, pouco politizado e manipulado por uma imprensa sensacionalista, que deixou de acreditar nos políticos. O desemprego galopante, a inflação e a recessão, que se seguiram, fizeram o resto. Perante a descrença total e sem soluções à vista, a panaceia para todos os males parece ser um homem "forte", de preferência militar. Falta-lhe o bigode, mas o filme é conhecido.
Alguém, nas redes sociais, dizia por estes dias que existem dois tipos de anti-petistas: os ideológicos e os patológicos. Penso que, a maior parte, pertence ao segundo grupo: não interessa em quem se vota, desde que o PT perca! No limite, muitos deles, nem gostarão de Bolsonaro, mas como é o único que pode impedir a vitória do PT, então, votam nele (!?).
Há claro, forças interessadas na sua vitória: desde logo os militares, saudosistas do tempo da ditadura (1964-1985) que vêem aqui uma oportunidade de sair dos quartéis; depois, há os evangélicos de diversa plumagem, que dão indicação de voto aos "fiéis", argumentando que o capitão psicopata defende os valores da  família e do cristianismo (!?); finalmente, a finança, que controla a banca, as grandes empresas e domina a comunicação social (Globo, Veja, Data Folha, TV Record, etc.).
Ora a finança (vulgo "mercados") está interessada numa ditadura, a melhor forma de controlar a economia. A "economia" sempre se deu bem com o fascismo, pois é a melhor maneira de manter os trabalhadores submissos. Claro que o fascismo tem a "perna curta" e, no médio prazo, acabará por cair, mas isso não interessa nada aos neoliberais, desde que o "mercado" funcione. Por alguma razão, Bolsonaro já anunciou que não percebe nada de economia (em rigor, ele não sabe nada de coisa nenhuma) e, por isso, nomeará para "ministro da fazenda", o célebre Paulo Guedes, um rapaz da "Escola de Chicago" que, em tempos, foi conselheiro de Pinochet...
Conheço, inclusive, brasileiros cristãos, casados e com filhas, que vão votar em Bolsonaro, apesar do seu discurso onde defende a pena de morte, a tortura, a violação, a misoginia, a homofobia e o racismo. Para essas pessoas, isso não interessa nada. O que interessa, agora, é impedir que o PT volte ao poder. Depois, logo se vê...
É como a história de Mephisto (Fausto): vendeu a alma ao diabo, acreditando na sua salvação.
Depois...fodeu-se!

2018/09/30

Sevilha: Bienal de Flamenco (2)

Para a segunda metade da Bienal deste ano, reservámos três entradas, seguindo o mesmo critério dos primeiros espectáculos: um de "toque", um de "baile" e outro de "cante", as expressões da arte flamenca por definição.
Começámos pelo concerto "Viviré" (homenagem a Camarón) por um dos maiores guitarristas flamencos da actualidade, José Fernández Torres (Tomatito), companheiro de estrada e de estúdio do famoso "cantaor", falecido em 1992.
Este era um concerto imperdível, não só pela áurea de Tomatito - uma "fiera" na expressão carinhosa dos seus admiradores - mas, porque dos grandes guitarristas vivos (Manolo Sanlucar, Vicente Amigo, Gerardo Nunez, Chicuelo...) Tomatito era o único que eu não tinha visto ao vivo. Tive o privilégio de assistir à última apresentação de Paco de Lucía em Lisboa (2005), pelo que me posso considerar um homem de sorte...
O concerto, que decorreu no passado 22 de Setembro, teve lugar no teatro La Maestranza (1800 lugares) um imponente edifício, construído de raiz para a Expo'92, inicialmente projectado para ópera e zarzuela e que tem como residente a Real Orquestra Sinfónica de Sevilha. Para além de ópera, a sala programa espectáculos nas mais diversas áreas, desde o pop ao rock, passando pelo cabaret (Utte Lamper), flamenco (Mayte Martín), fado (Dulce Pontes, Mísia, Carminho) e, já no próximo mês de Novembro, o "nosso" Salvador Sobral. Mais eclético do que isto, é impossível.
Tomatito, portanto: fabuloso guitarrista, fantásticos convidados (José del Tomate, Duquende, Arcángel, Rancapino Chico), para além dos respectivos acompanhantes, onde havia "cantaoras", um violinista e um percussionista. Um elenco fabuloso, que passou em revista muitos dos temas celebrizados por Camarón (Leyenda del Tiempo, e.o.), a solicitar os "olés" da praxe, sinónimo de apreciação geral. Um pequeno senão (pelo menos na zona onde nos encontrávamos) que foi o som, verdadeiramente deplorável, dado o volume e a amálgama de instrumentos, que seriam fatais para um concerto que tanto prometia. Ficará para uma próxima oportunidade, estamos certos.
O dia seguinte, seria dedicado ao "baile", com o espectáculo "Improbataciones", uma estreia na "off Bienal", este ano coordenado pela "bailaora" Asunción Pérez "Choni", conhecida de actuações anteriores e que também dirigiu a abertura da Bienal na ponte de Triana. Os mesmos intérpretes de Triana, com Manuel Cañadas, (bailarino contemporâeno), David Bastidas e Alícia Acuña (cantaores), Víctor Bravo e Asunción Pérez (bailaores). Pese o lado de improviso, sublinhado pelos artistas na sua interacção com os espectadores, estamos em presença de excelentes intérpretes em cada um dos géneros (dança e canto), que são, de há muito, uma presença assídua na cena sevilhana. Destaque para Manuel Cañadas, que nunca tínhamos visto, e que se afirma como um bailarino de grande estilo e presença. Bom espectáculo, onde a seriedade e o humor, sempre servidos por uma óptima banda sonora, alternaram com bom gosto.
Finalmente, o concerto flamenco do surpreendente Niño de Elche, de quem já conhecíamos o último trabalho discográfico (Antologia del Cante Flamenco Heterodoxo) e do qual nos foi dado ver um pequeno trecho, no fabuloso espectáculo de abertura da Bienal, a cargo do "bailaor" Israel Galván.     Desta vez, a actuar na mítica sala Lope de Vega, a mais clássica de todas as salas da cidade (inaugurada em 1929 e reconstruída por duas vezes, após um fogo, duas cheias e a guerra civil,  quando funcionou temporariamente como hospital) o iconoclasta Niño não desiludiu.
Ou melhor, disse ao que vinha, desde logo quando se apresentou em palco vestido com um fato de treino, que despiu placidamente em frente à assistência e envergou um traje flamenco tradicional (calças e jaqueta negra, sobre uma camisa branca) para, sob uma aparente forma clássica, desconstruir a simbologia e o discurso flamenco tradicionais. Acompanhado por dois excelentes músicos, Raúl Cantizano (guitarra e percussão) e Susana Hernández (teclado, sintetizadores e electrónica) e pelos convidados, os "palmeros" David Bastidas e Alicia Acuña e "bailaores" Israel Galván e Eduarda de los Reyes, Niño de Elche passaria em revista os "palos" mais clássicos (farrucas, seguirias, saetas, fandangos, tangos e rumbas) numa abordagem "sui-generis", intercalada por poemas (Eugenio Noel, Lorca), cantos da guerra civil e uma improvisação sobre Tim Buckley, não tendo faltado a Rumba y Bomba, que encerraria o espectáculo. No fundo, à imagem do grande Enrique Morente, que chocou tudo e todos quando gravou "Omega", com a banda rock de Lagartija Nick, obra que os fundamentalistas flamencos ainda hoje não consideram digna do "cante". Destaque, mais uma vez, para o grande Israel Galván, no pico da sua arte, provavelmente o mais eclético e inovador "bailaor" flamenco da actualidade, que nos ofereceu dez minutos electrizantes.
Nota final: durante o espectáculo, muitos espectadores saíram da sala e, no dia seguinte, a imprensa local (ABC e Diário de Sevilha) arrasaram o concerto. Não me lembro de ter lido críticas tão demolidoras a um concerto. Niño de Elche conseguiu exasperar os puristas, provavelmente o seu objectivo último. Eu adorei.