2020/04/10

Duas semanas noutra cidade (8): Eurogrupo, Pandemia e Portugal


É sexta-feira "santa" e não se vê vivalma nas ruas de Sevilha. Hoje, nem sequer supermercados abertos há. A excepção é uma "loja de conveniência" do Carrefour e a Farmácia do bairro. Esta, continua a fazer bom negócio e até já recebeu máscaras de papel e luvas. Só falta o álcool. Por alguma razão, a industria farmaceutica é a que mais lucro dá, depois da industria de armamento...
Entretanto, lá fora, o Mundo não pára.
Depois de três longos dias de (tele)trabalho, os ministros das finanças da Zona Euro chegaram a um consenso. O consenso possível, dizem todos. A decisão mereceu uma salva de palmas dos presentes. A ministra espanhola das finanças diz ter sido um "bom acordo" (!?), enquanto Centeno, nas declarações prestadas, disse ter sido um acordo "tirado a ferros"...
Tudo depende, afinal, de como vemos o copo: meio-cheio ou meio-vazio.
Antes da reunião, eram dois os cenários em cima da mesa:
O primeiro, defendido pela Itália, Espanha, França, Portugal e.o., apoiava a criação de um fundo europeu de solidariedade (também conhecido por Eurobonds ou Coronabonds); o segundo, defendido pela Holanda, Alemanha, Austria e Finlândia, recusava a criação de um fundo específico de solidariedade e defendia a utilização do FEE (Fundo Europeu de Estabilidade) criado e já utilizado noutras crises europeias (ex: "bailouts" das economias necessitadas).
Os "Eurobonds" são "Obrigações de Dívida Pública" emitidas por todos os países, dependendo do risco de cada país, ou seja uma emissão conjunta de "bonds" que permitiria, a países em crise, obter melhores condições de financiamento. No entanto, esta fórmula, não traria ganhos imediatos para a Holanda ou para a Alemanha (países com grande excedente de liquidez);
Já o acesso ao FEE, permite aos países ricos emprestarem dinheiro a juros mais altos, como aconteceu durante a última crise financeira de 2008, nos países intervencionados (Portugal, Espanha, Itália e Grécia).
Estas posições, que até à tarde de ontem pareciam intransponíveis, acabaram por ser amenizadas, após a intervenção dos ministros de França e da Alemanha, no que foram apoiados pelos respectivos chefes de governo.
O acordo obtido, cria 3 linhas de financiamento:
1. Apoio ao Trabalho, no valor de 100.000 milhões de euros;
2. Apoio ao Emprego, no valor de 200.000 milhões de euros (através do BEI)
3. Apoio do FEE, no valor de 240.000 milhões de euros
Contas feitas, um total de 540 mil milhões de euros para os próximos três meses.Depois, logo se verá...
Pontos a reter: a Holanda deixou cair algumas das suas exigências, como a "necessidade de reestruturação das economias dos países afectados" (nomeadamente em Itália). Os países do Euro poderão, agora, gastar até 2% do PIB em despesas com a saúde (combate à epidemia). Esta dívida terá de ser paga no prazo máximo de dois anos. No caso de Portugal, cerca de 4.200 milhões de euros. Por comparação, durante a última crise (2011-14) Portugal recebeu 78.000 milhões, que ainda estão a ser pagos.
Nicolau Santos (economista, n.r.) fez as contas e escreveu hoje um elucidativo artigo com o título "Palmas para quê?", em que desmonta a falácia desta solução para a crise europeia (27 países/500 milhões de cidadãos). Dá o exemplo dos EUA, onde Trump mandou libertar 3,2 triliões de dólares (a maior injecção de capital no pós-Guerra) para uma população de 350 milhões de habitantes. A solução encontrada no Eurogrupo favorece, uma vez mais, os países menos necessitados, que terão agora mais facilidade em obter fundos. Quando esta crise terminar, os países mais necessitados, para além da reposição dos 2% do PIB, terão de continuar a pagar a sua dívida estrutural, actualmente suspensa (no caso de Portugal, 122% do PIB), o que fará aumentar a dívida global e os juros respectivos no futuro. Ainda é cedo para fazer futurologia, mas vem aí uma crise económica de dimensões desconhecidas e os mais fracos serão os mais atingidos. De facto, não há muitas razões para bater palmas...

Outra coisa é a pandemia, propriamente dita. Os números não enganam, ainda que possam ser lidos de forma diferente, já que "as estatísticas, quando torturadas, confessam sempre". Para além da "worldometer" (que actualiza diariamente os números absolutos de infectados, recuperados e falecidos), outras há que nos dão uma perspectiva mais exacta. É o caso do site da Statista (Health Pharmaceuticals - State of Health), que estabelece uma relação entre total de mortes e mortes por milhão de habitantes. Visto deste prisma, a situação não é exactamente a mesma. Assim, de acordo com o site "Statista", o país com maior número de mortes por milhão de habitantes é a Espanha (14.045 falecidos/46.72 milhões de habitantes/300.6 mortes por milhão), seguido da Itália (17.127/60.43/283.41), da Bélgica (2.035/11.42/178.16), da França (10.328/66.99/154.18) da Holanda (2.101/17.23/121.93), etc...Estes são os cinco países com mais mortes por milhão de habitantes. Portugal, em 16º lugar em número de infectados a nível mundial, está em 13º lugar em número de mortes por milhão de habitantes (345/10.28/33.55). Notícias que não nos sossegam, o que terá levado o governo português a sugerir o prolongamento do confinamento até ao dia 15 de Maio.
Perante estes números, franceses (Radio France) e holandeses (De Volkskrant) interrogam-se sobre a  razão da baixa mortalidade em Portugal. Várias hipóteses: um relativo isolamento do país em relação ao epicentro da epidemia (Itália, Espanha e França); medidas de contenção tomadas em tempo, após serem conhecidos os primeiros 50 casos de infectados e a primeira morte confirmada (12 de Março); encerramento de escolas e cancelamento de eventos desportivos e culturais (13 de Março); encerramento de fronteiras (16 de Março), para além de haver menos turistas nesta época do ano. Também as medidas de coação, obrigando ao fecho do comércio e à proibição de trânsito privado, assim como a desertificação de grandes zonas do interior, explicarão as poucas mortes verificadas no Algarve, Alentejo e Beiras Interiores. Outra razão, parece assentar na relativa "facilidade" com que a população portuguesa aceitou as novas normas, o que daria lugar a interpretações que não cabem neste "post". Fica para uma próxima vez.

(continua)

2020/04/07

Duas semanas noutra cidade (7): Santos, Vírus e Testes


Em tempos normais, a semana da Páscoa é, por tradição, a mais celebrada e concorrida em toda a Espanha. Em Sevilha, o epicentro das comemorações, a "Semana Santa", congrega o maior número de devotos e forasteiros, ainda que haja celebrações nos principais centros urbanos do país.
A cidade pára literalmente durante a maior parte da semana, com serviços públicos, departamentos e escolas,  encerrados para o grande evento. A população, calculada em mais de 700.000 pessoas, prepara-se o ano inteiro para a celebração. Desde logo, através do "Consejo General de Hermandades e Cofradías de la cidade de Sevilla", orgão máximo, responsável pela organização dos rituais religiosos, que determina quais as confrarias participantes (são mais de cinquenta!), quais os percursos seguidos pelas procissões (todas passam, obrigatoriamente, pela Catedral de Sevilha e pelo "Ayuntamiento", onde são instaladas bancadas para os "vips" da cidade); quem transporta os andores nas procissões (constituídas por santos, virgens, mistérios, penitentes e crucificados); os "costaleros" (equipas de 30 moços que alternam, à vez, o transporte dos altares, que chegam a pesar toneladas); os "hermanos", representantes das dezenas de irmandades existentes na cidade; os "nazarenos", reconhecidos pelos seus capuzes ponteagudos de diversas cores, a lembrar os acólitos do "klu-klux klan"; para além de familiares e amigos, que encorajam e apoiam, com água e alimentos, os mais jovens. Toda a gente participa, dos veteranos aos mais novos, que vestem a rigor durante a semana: as mulheres, deslumbrantes nos seus trajes clássicos de "mantilla sevilhana"; os homens, em traje formal, de fato e gravata a condizer. As varandas, engalanadas para a ocasião, são alugadas com antecedência, não sobrando lugares nas açoteias e terraços nos percursos conhecidos. O turismo local, em colaboração com as diversas confrarias, edita pequenos guias em diversas línguas, sobre os locais e horas previstas da passagem de cada procissão, de modo a possibilitar, aos interessados, a possibilidade de escolher os melhores lugares para apreciar o evento. A maior parte das confrarias, são acompanhadas por bandas filarmónicas, que ensaiam todo o ano nas praças da cidade para o grande momento. As procissões têm lugar durante o dia, ainda que algumas só iniciem o seu percurso ao cair da noite, para terminar já de madrugada. Nessas ocasiões, as luzes apagam-se junto à igreja onde recolhe o andor e os estabelecimentos comerciais encerram. O único som audível, à distância, é o arrastar dos pés dos "costaleros", enquanto os "nazarenos", cobertos pelos seus capuchos e capas, empunham longas tochas de cera a arder e continuam a desfilar durante horas. Não raramente, as procissões nocturnas terminam com "saetas" flamencas, cantadas à capela por aficionados e profissionais das varandas mais próximas. Momentos de êxtase e "cante jondo" (canto profundo) sublimes.
A anormalidade, imposta este ano pelo "confinamiento", impediu a celebração centenária, mas não diminuiu a devoção dos habitantes de Sevilha. À falta de festa, os vizinhos do bairro esmeram-se, decorando as janelas e colocando altifalantes nas varandas, através dos quais transmitem "saetas", bandas filarmónicas e "pregões" (declarações) da Semana Santa. Os mais nacionalistas (estas coisas, andam sempre ligadas) mantém as bandeiras franquistas, que penduraram durante a crise catalã de 2018.
Não faltam episódios hilariantes nesta quarentena: desde o homem que saiu a passear o cão, vestido de nazareno e carregando uma cruz às costas (o vídeo tornou-se viral e a polícia acabaria por detê-lo); à mulher infectada, que fugiu de um hospital onde estava isolada (acabaria por ser presa e voltar à quarentena), passando pelo vizinho do condómino onde me encontro, que ameaçou filmar e denunciar outro morador à polícia (!?) por este ter ousado sair à rua sem máscara (há sempre um "pequeno homem" com medo, como escreveu Reich, num dos seus escritos mais citados). Encontra-se de tudo um pouco. Entretanto, na Galiza, foi roubado um carregamento de um milhão máscaras, no valor de 5 milhões de euros, destinadas a Portugal (!?). Em tempo de crise, "quem tem olho..."
A crise viral continua a dominar os noticiários e as preocupações dos espanhóis. O país é já o segundo com maior número de infectados e mortos a nível mundial, resp. 146.690 e 14.555, não se vislumbrando decréscimo na curva de infecções nos próximos dias. Perante a catástrofe anunciada (20.000 mortes na projecção mais optimista e 40.000 mortes na mais pessimista), a Espanha entrou na terceira semana de "confiniamento", agora prolongado até ao próximo dia 26. As pressões e as críticas ao governo de Sánchez, para que reabra o congresso (actualmente encerrado) e para diminuir progressivamente as medidas de quarentena, têm vindo a aumentar, ainda que não seja fácil tomar esta decisão, enquanto o número de infecções não diminuir. As mais acérrimas críticas vêm, como sempre, do "pequeno homem" Abascal (VOX), que diariamente grava vídeos através do Instagram onde ameaça processar Sanchéz pela prorrogação do período de isolamento. Ontem, em mais uma histérica comunicação ao país, anunciou com ar solene "cortar relações" com o governo, enquanto este não abrisse o Congresso. A estupidez continua a dominar o discurso dos pequenos líderes. 

Conforme nos explicam diariamente os "experts" na matéria, há 3 questões a considerar nesta crise pandémica: a vacina (que não existe), o distanciamento social (como forma de reduzir a disseminação do vírus) e os testes (para avaliar quem está infectado). Sobre a vacina, é consensual entre vírologistas e epidemiologistas, poder demorar entre 12 e 18 meses, até ser comercializada. Sobre o distanciamento social (tomando as devidas precauções, com máscaras, luvas, desinfecções diárias de roupa e calçado) é fundamental, mas não impede a contaminação. Mais, podemos estar infectados e não ter sintomas. Quando a febre surge, a infecção já existe e, entretanto, já infectámos outras pessoas.
Finalmente, os testes. Há dois tipos de teste: o de diagnóstico rápido (aplicado na maioria de países e populações) e o teste serológico (que é caro e não está ao alcance de toda a gente). No primeiro teste, este pode dar negativo, mas podemos contrair a infecção no dia seguinte; no segundo teste, a imunidade é garantida pelos anti-corpos já existentes, o que permite contactos com outras pessoas, sem as infectar. A experiência, levada a cabo nos primeiros países infectados (China, Coreia do Sul, Japão, Taiwan e Singapura) permitiu perceber que o isolamento, seguido à risca, pode resultar, ainda que só ao fim de alguns meses. Acontece que, em países de regime autoritário (como os países asiáticos referidos) é sempre mais fácil manter as populações confinadas, dada a obediência e disciplina existentes (confucionismo). Também o sentido colectivo e a confiança no estado é maior do que no Ocidente. Acresce que, em países como a China (portanto, um estado totalitário) a "data" existente, devido à ligação dos telemóveis pessoais às câmaras de vigilância em todo o país (mais de 200 milhões!) permite identificar, rapidamente, quem tem febre, através de um "app" que mede a temperatura do corpo. As pessoas assinaladas, são avisadas através do seu telemóvel e enviadas para quarentena. Essa é uma das razões, porque os países asiáticos conseguiram reduzir substancialmente a epidemia, enquanto na Europa e nas Américas, portanto mais atrasadas no uso da tecnologia existente, o surto viral continua a crescer exponencialmente. Preocupantes são, agora, os surtos em grandes países como os EUA e o Brasil, que não dispõem de sistemas de saúde de qualidade e onde o número de vítimas pode atingir proporções catastróficas. 

(continua)