2021/09/02

Theodorakis, a alma grega

A primeira vez que recordo ter ouvido música de Mikis Theodorakis (1925-2021) foi no Inverno de 1967. Vivia, então, num centro holandês em De Bilt (Holanda) onde refugiados de diversos países,  aprendiam neerlandês 6 horas por dia. Éramos cerca de duas dezenas de estudantes, entre os quais, um grego. Eu tinha recusado a guerra colonial e ele a ditadura dos coronéis. As afinidades eram muitas e a língua não era obstáculo, já que ambos falávamos inglês e estávamos a aprender uma língua comum. 

Nos poucos meses em que convivemos, vinha sempre à baila a situação em ambos os países, sujeitos a duas das mais cruéis ditaduras da Europa Ocidental. Também falávamos da oposição e das formas culturais, que essa resistência assumia. As músicas (da canção de denúncia ou de protesto) eram temas aflorados. Eu falava de José Afonso (recém-regressado de África, onde tinha sido banido do ensino) e ele de um certo Mikis Theodorakis (preso e deportado para uma ilha grega). Nenhum de nós tinha discos, muito menos gira-discos e a música dos nossos países não passava na rádio holandesa.  

Até que um dia...uma amiga holandesa, que morava nos arredores e era visita habitual do centro, surgiu com um LP na mão, acabado de ser editado pela His Master Voice/EMI holandesa. A capa era cinzenta, com olhos desfocados em fundo, encimados por duas filas de arame farpado. Tinha dois nomes escritos na capa: Mauthausen Cyclus e Mikis Theodorakis. Convidou-nos a ir a sua casa para ouvirmos o disco e lá fomos no mesmo dia. 

À medida que escutávamos as canções, interpretadas pela magnífica Maria Farandouri, o grego chorava de emoção e alegria, enquanto eu, sem perceber patavina, senti que algo de transcendente se passava. Uma verdadeira epífania. Por esses dias (inícios de 1968) Theodorakis seria libertado do degredo grego e a sua música passou a fazer parte das emissões de rádio holandesas que, dessa forma, prestava homenagem ao compositor e resistente helénico. 

Não demoraria muito a adquirir o meu primeiro gira-discos (modelo Philips, de plástico, com altifalante incorporado na tampa) tendo o Mauthausen Cyclus, sido uma das primeiras aquisições. Ainda o guardo, apesar de, posteriormente, ter comprado duas versões em CD: a original grega, adquirida no aeroporto de Atenas e uma edição alemã, intitulada "Mauthausen Cantata", esta mais longa, com versões cantadas em hebraico (Eli Noar Moav Veniadis), grego (Maria Farantouri) e inglês (Nadia Weinberg). A condução da orquestra é de Mikis Theodorakis, Alexandros Karozas e Yossi Ben-Nun. O CD inclui ainda um discurso, em alemão, de Simon Wiesenthal, o conhecido "caçador de nazis". Os arranjos são mais solenes e lentos, mas a beleza musical é, se possível, ainda maior. Um monumento musical. 

Reproduzo, em tradução livre, as palavras de Theodorakis, na contra-capa desta última edição: "Um bom amigo meu, o poeta Iakovos Kambellis, foi prisioneiro em Mauthausen, durante a II Guerra Mundial. No início dos anos sessenta, escreveu as suas memórias desse tempo, com o título "Mauthausen". Em 1965, também escreveu quatro poemas sobre este tema e ofereceu-me a oportunidade de musicá-los. Fi-lo com grande prazer, primeiro porque gostei da poesia dos textos e, segundo, porque eu próprio estive encarcerado durante a ocupação nazi em prisões italianas e alemãs, mas, fundamentalmente, porque estas composições dão-nos a oportunidade de lembrar às jovens gerações da história, a história que nunca deve ser esquecida. Primeiro e acima de tudo, claro, a "Mauthausen Cantata" é dirigida a todos aqueles que sofreram sob o Fascismo e o combateram. Devemos ter os crimes nazis, continuadamente, nas nossas mentes, porque esta é a única garantia e a única forma de assegurar que eles não se repitam. E nós podemos ver isso, todos os dias: que o fantasma do fascismo está longe de derrotado. Raramente mostra a sua verdadeira face, mas culturas e mentalidades Fascistas existem em todo o Mundo. Para nós, que tivemos de viver neste tempo de horror, a tarefa mais importante é a de proteger os nossos filhos contra este perigo". Mikis Theodorakis.

Theodorakis morreu, mas a sua obra é imortal. Certamente, o maior compositor grego do século XX e um dos maiores vultos culturais da Europa e do Mundo. Um gigante. O governo grego decretou três dias de luto nacional pela sua morte. É bom saber que há países onde os seus heróis são homenageados. 

2021/09/01

Do período clássico ao período barraca

A imagem clássica: o comboy (também conhecido como o “mocinho”, no Brasil), no fim da fita, cavalgava em direcção à luz do Sol, depois de derrotar os “maus”, sorriso sereno e espírito de missão cumprida. Banda sonora heróica, a fechar a cena. 

A imagem actual: o major general Donahue, no fim da fita, o último cowboy a sair do Vietname, perdão, do Afeganistão, “return to sender”, pela calada da noite, furtivo, câmara de infravermelhos. A banda sonora de fecho é dada pela voz do novo patrão talibã, que diz que se cá voltares levas um tiro nos cornos! Com as armas que cá deixaste! 

Yahooooo!!!