2023/11/23

Europa: uma crise nunca vem só


Que o Mundo não é um lugar seguro, já o sabemos. Que a situação actual seja pouco propícia a optimismos, não passa de uma verdade de La Palisse.

Crises financeiras, inflação, pandemia, alterações climáticas, guerras, migrações, crescimento de partidos  racistas e xenófobos, crise de ideologias e do sistema partidário, o cardápio é longo...

E, no entanto, o panorama não podia ser mais pessimista. 

Só na Europa, três países da UE atravessam crises, não negligenciáveis, que estão longe de terminar. São eles, Portugal, Espanha e Países Baixos, ainda que por motivos diferentes.

Vejamos o caso de Portugal: depois da demissão abrupta do primeiro-ministro (PM) no passado dia 7 de Novembro (no seguimento de um relatório do Ministério Público (MP) no qual, alegadamente, o seu nome era mencionado numa rede de tráfico de influências com origem no governo), o Presidente da República decidiu dissolver o parlamento. Formalmente, António Costa não era obrigado a demitir-se, da mesma forma que Marcelo Rebelo de Sousa poderia ter optado pela continuação do governo PS, com outro primeiro-ministro. Nada disto aconteceu, seja porque Costa não quis continuar (reservando-se para outros cargos, quiçá europeus) seja porque Marcelo viu aqui uma oportunidade de convocar eleições e dar, assim, oportunidade ao seu partido de formar um governo de direita. 

O pior veio depois: afinal, o nome no relatório não seria o de Costa, mas o de um ministro do seu governo com o mesmo apelido (!?), ao mesmo tempo que outros arguidos no processo viram as acusações serem revogadas pelo juiz de instrução do processo, que não considerou suficientes os argumentos aduzidos pelo MP! A partir daqui (e já lá vão duas semanas) as especulações não têm parado. Mas, então, a Procuradora Geral da República (PRG) não controlou o conteúdo das acusações que estiveram na base da investigação? Pior, não leu e não escreveu ela o famigerado parágrafo que despoletou toda esta crise institucional? Se leu e deixou passar tamanho equívoco, porque continua a refugiar-se em desculpas insustentáveis, sobre o papel do MP em todo este caso, que tresanda. Como tudo isto não fosse suficiente, Marcelo convocou eleições para daqui a 4 meses (!?), com o argumento de que o PS (com um secretário-geral demissionário) necessitava de tempo para se organizar. Entretanto, Costa, pode manter-se no poder, assegurando um governo de transição que terá de aprovar o Orçamento de Estado (OE), em fase de discussão. Simultaneamente, os partidos começaram a organizar os seus congressos, com vista a constituir as listas eleitorais para o dia 10 de Março de 2024. Uma trapalhada sem nome, que lançou (desnecessariamente) o país numa crise institucional gravíssima, que irá provavelmente alterar o panorama político de forma radical.

Já em Espanha, a situação parece ter estabilizado, ainda que seja cedo para extrair conclusões. Depois das eleições legislativas de Julho, que deram a vitória ao Partido Popular (PP) de Alberto Feijóo, este não conseguiu formar um governo maioritário no Congresso. Pesem as suas tentativas, junto de Pedro Sanchez (PSOE) para se abster nas votações e, dessa forma, deixar o PP governar, o líder do partido socialista espanhol recusou sempre. Perante tal cenário, só restava ao Rei convidar o segundo partido mais votado para formar governo. Após meses de negociações e cedências aos partidos à sua esquerda (Sumar, Bildu, ERC) e à sua direita (Junts), Sanchez conseguiu uma vitória improvável, que os analistas designam por "quadratura do círculo": uma maioria confortável (179 deputados, num parlamento de 350 lugares), que poderá dar-lhe alguma folga nos tempos mais próximos. Para isso, teve de "engolir diversos sapos", dos quais o maior foi a "amnistia" concedida aos independentistas catalães, julgados e condenados pelo tribunal constitucional, após a organização de um "referendo" sobre a independência no 1 de Outubro de 2017. Na altura, foram julgados e condenados 300 políticos catalães, alguns dos quais continuam a viver no exílio. A "amnistia" concedida continua a ser contestada pelo PP e pelo VOX, os principais partidos de direita, que, há mais de quinze dias, protestam junto das sedes do PSOE em Espanha, acusando Sanchez de traição e de fomentar um "golpe de estado". Resta acrescentar, que a lei terá ainda de ser aprovada pelo senado espanhol, dominado pelos partidos de direita, o que poderá só acontecer daqui a dois meses... Entretanto, a coligação governativa, terá de fazer "prova de vida", o que não se afigura fácil dadas as contradições programáticas dos oito partidos que a compõem. Um "bico de obra", num país literalmente dividido ao meio. A crise, continua, pois...

Finalmente, a situação nos Países-Baixos, depois das eleições de ontem. Convocadas no Verão passado, após a queda do governo de coligação, liderado por Mark Rutter (VVD), na sequência de uma crise devido às leis de imigração e reunificação familiar, estas eleições tiveram como temas principais a imigração, o clima e questões sociais, como a inflação e o aumento de custo de vida, provocados pela guerra na Europa. Contados os votos, a vitória (ainda que não surpreendente) coube a Geert Wilders (PVV). Wilders é um político veterano, conhecido pelas suas ideias racistas, xenófobas e islamofóbicas, que há mais de 20 anos dirige uma agremiação cujos principais pontos do programa se resumem à proibição do Corão, à expulsão de imigrantes e à saída da União Europeia (!?). O mais surpreendente, é o número de deputados obtidos (37), uma duplicação de lugares em relação às eleições de 2021. Se, até agora, o partido de Wilders nunca fez parte de nenhuma coligação governativa, devido ao "cordão sanitário" que os restantes partidos sempre impuseram, será difícil não convidar o partido mais votado para formar governo. Para que isso aconteça, Wilders necessita de ter o apoio dos dois maiores partidos de direita: o VVD (liberal) do demissionário Mark Rutter, agora liderado por Dilan Yesilgoz, de origem turca; e o CSN (Novo Contrato Social) de Pieter Omtzig, ex-deputado cristão-democrata, de constituição recente. Uma tarefa que não se afigura fácil, pois não é certo que as ideias radicais e anti-constitucionais de Wilders consigam convencer os seus potenciais parceiros governamentais. Pormenor picante: Wilders (casado com uma húngara) é admirador do ditador húngaro Orbán (que já o felicitou) e do ditador Putin, que a Holanda boicota, devido à invasão da Ucrânia. Resta saber, como é que o mundo empresarial holandês reagirá a um governo liderado por tal figura, mas, como o poder é afrodisíaco, nunca se sabe...