2014/04/25

25A40 - O som do cravo

 Um concerto em três tempos.

1º tempo
No princípio era o silêncio. O pensamento abafado, a voz muda, o segredo, o degredo, a clandestinidade. “Se fores preso, camarada”... Portugal vivia em silêncio. Um silêncio que se vinha instalando desde tempos remotos da história, um silêncio também garantido pelo crepitar dos autos de fé. 
Fé. No final de 1973, início de 1974, acreditei (e continuo a acreditar!) que a educação musical é um factor de libertação. Que pela via da música todos podemos atingir o nosso apogeu, todos podemos ser melhores seres humanos. A experiência pedagógica, fugaz, que tive nessa altura, imediatamente antes do 25 de Abril, parecia confirmar que o meu credo — de que a música deveria fazer parte do currículo escolar, não do modo acessório como acontecia até então, mas como disciplina fundadora — é uma ideia razoável, para cujas bases queria contribuir. Silenciaram-me, de forma patética, nestes propósitos.
Havia tempo que tinha mergulhado num universo musical caótico e esta componente pedagógica, que logrei pôr, pela primeira vez e de forma modesta, em prática ainda antes de Abril. Ainda que por breves instantes e de forma incauta, ela resultava de uma reflexão sobre esse caos, era uma espécie de destilação desse caos, que mais não era, por sua vez, que um acto de resistência, um esforço pessoal de exigência de liberdade e de crença na capacidade de transformação da sociedade através da música. Este universo musical caótico foi a minha tentativa de romper com o silêncio. A componente pedagógica era a emanação audível desse processo.
Ao mesmo tempo, perguntava a mim próprio aonde nos poderia levar toda a amplitude criativa e estilística que na altura existia, de cuja influência também não escapei. Perguntava para que serviria todo aquele novo ferramental sonoro, que já então despontava, a que eu tinha finalmente acedido e que começava a dominar a prática musical. Para que serviria tudo aquilo se não existissem ouvidos para ouvir a nova música? Como viabilizá-la? Todas estas perguntas tinham como resposta o silêncio. 
2º tempo
O 25 de abril apanhou-me no meio destas perguntas sem resposta, mas revelou-me, de imediato, uma enorme quantidade de respostas sem pergunta. Para perguntas que nem sequer tinha imaginado. Tudo parecia então possível. Todos os sons pareciam poder suceder a todo aquele silêncio. Mas essas possibilidades não serviram para me dissipar as dúvidas. Todas as dúvidas eram também agora possíveis.
Um dia, regressava a casa bem tarde, e fui surpreendido por um intrigante acontecimento sonoro. Uma nuvem sonora composta pelos ténues sons de milhares de pequenos insectos que, na altura, não consegui identificar com rigor, produzidos talvez pela Tettigettalna aneabi, que soa assim. Não é possível descrever o efeito de milhares destes insectos espalhados por uma área sensivelmente do tamanho de um campo de futebol. Façam, por favor, um esforço de imaginação. A tentação de usar aqui a metáfora do pirilampo é grande. Em vez das luzes, imaginem-se "cliques". Mas não, não vou cair nessa tentação...
Fiquei ali quieto durante muito tempo a ouvir aquele deslumbrante espectáculo sonoro. Lentamente fui percebendo que a música que eu procurava estava ao alcance do meu ouvido. Pré feita. Perfeita. Em vez de me preocupar em introduzir mais sons no ambiente, de meter mais som ao barulho, devia talvez prestar mais atenção ao som, aos sons, que me rodeavam.
O próprio 25 de abril, que se ia desenrolando na altura à nossa volta, era feito de sons que, de forma subtil, se iam enraizando em nós e exigiam, foi-se percebendo, constante capacidade de interpretação. A Revolução tinha começado com o som da rádio. Foi o sinal sonoro das canções que deu início às operações. Depois foi o som das marchas militares. De seguida vieram as vozes dos locutores com a leitura dos comunicados do MFA. “Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas”. E novamente as marchas militares, designadamente uma, chamada “Life On the Ocean Wave”, que ficaria conhecida como a “marcha do MFA”. Essa foi a sonoplastia original do 25 de abril. Rapidamente se lhe sobrepuseram os primeiros gritos de liberdade, os (poucos) tiros, as primeiras palavras de ordem, os primeiros discursos, os primeiros comunicados. Por cima dessa sonoplastia original foram-se inscrevendo as vozes dos protagonistas da Revolução, cujo timbre ficou para sempre gravado na memória auditiva de todos nós, os que vivemos esse momento. As músicas antes proibidas tocavam agora continuamente, como uma jukebox que adornava o nosso quotidiano. O grito das reivindicações era o coro que marcava os momentos de tensão. Os passos da “Grândola” ouviam-se firmes, num crescendo inexorável, e pareciam marcar a vida de toda a gente. Ritmos que trocavam o passo a uns e acertavam o passo a outros. O 25 de abril foi uma empolgante paisagem sonora. O cravo soava bem.
Foi com o 25 de abril que aprendi verdadeiramente a escutar o mundo à minha volta. Com o meu gravador ao ombro e de microfone em punho, aproveitei para calcorrear quilómetros e registar tudo o que produzia som. O mundo ouvido começou a ter um significado diferente desde então. Dei-me conta que todos os sons estavam ainda por descobrir. O 25 de abril veio-me provar algo que eu já intuia: que era possível entender melhor o mundo escutando-o.
3º tempo
Um dia uma bomba rebentou, com enorme estrondo, nos emissores da rádio. De instrumento da revolução, a rádio passou a obstáculo que era preciso demolir. Silenciá-la com estrondo foi a solução. E ao estrondo seguiu-se a imposição de um novo silêncio. Um outro 25, a querer restaurar velhos métodos. Eu próprio fui vítima desta tentativa de silenciamento, num incidente caricato que envolveu uma guitarra eléctrica tomada por uma G3.
O silêncio de antigamente, logo descobriram os promotores desse novo 25, não era afinal possível. E o silêncio transformou-se em ruído. 
O silêncio é a tela negra onde todos os temores se projectam. O ruído é a tela branca que ofusca todos os pensamentos. Ambos, silêncio e ruído, visam os mesmos objectivos: tolher movimentos, impedir a acção. Silêncio e ruído são ferramentas do poder. É preciso ter poder para conseguir impor silêncio ou manipular ruídos. É preciso capacidade de luta para contrariar e vencer os seus efeitos. 

Dal 25 al CODA
O 25 de abril significou, em grande medida, perceber o mundo sonoro à minha volta. Teve o efeito de acelerar a capacidade de o escutar. A capacidade de escutar é algo que considero ser a componente decisiva da Democracia. Escutar para além do silêncio que não nos permite ter voz e escutar para além da cacofonia que procura mascarar e confundir as vozes necessárias. Bem escutar, para bem soar. Há anos que venho chamando a atenção para esta verdade singela: só escutando será possível desmascarar aqueles que pretendem silenciar a nossa voz, banalizá-la ou afogá-la num mar de vozes que tornam a nossa inintelegível. 

40 anos depois do 25A creio que ainda não ganhámos a capacidade de nos escutarmos uns aos outros. Não escutamos os nossos companheiros de jornada, sem os quais não atingiremos jamais o nosso desígnio colectivo, e não escutamos, verdadeiramente, aqueles que apenas nos pretendem confundir. Se os tivéssemos escutado, de facto, não estaríamos como estamos. Eles disseram tudo.

Escutar é uma (talvez, a) exigência maior da Democracia, que Abril não conseguiu (ainda) ensinar.

2014/04/24

25A40 - Abril de escravos mil?

Comemorar como quem põe mais um prego no caixão é recusar a potência inscrita de liberdade, justiça e igualdade que Abril trouxe e que existe tão intacta quanto tem vindo, de novo, a tomar a forma de um desejo colectivo como o prova a manifestação abrilista de 15 de Setembro de 2012. Em Portugal deseja-se um novo Abril propulsionado pelo de 1974 – é por não ter sido cumprido, tendo acontecido, à vista como uma terra boa que se julga achar, que as potencialidades são reais enquanto Abril não estiver para além da memória ou pela via da usurpação da sua carga simbólica convertido no que não é, um qualquer 25 de Novembro. 
O que é necessário fazer é o que não se fez e foi possível em embriões de novas sociabilidades destruídos policialmente pela “normalização democrática” primeiro e pela integração europeia depois – esta nunca aconteceu pela convergência entre os níveis de desenvolvimento díspares e as desigualdades nacionais, no plano do aprofundamento das democracias versus qualidade das vidas de cada país. O que aconteceu foi uma dissociação progressiva entre países numa integração subalternizante para os do Sul, europas de primeira, segunda, terceira e por-aí-fora, a bitola das desigualdades não cabe na visão mecânica das estatísticas, há portanto a considerar nos países avançados as comunidades emigrantes que, com regresso de um racismo activista, colocam questões mais que problemáticas à ideia de uma Europa da inclusão – pelo contrário, como temos visto na Alemanha, em França, na Itália e na Inglaterra. A conversa das duas velocidades oculta muitas outras realidades, a velocidade em si não é uma via de integração, só tem como ideia aquela pobre ideia do desenvolvimento como fenómeno quantitativo em busca de novas qualidades, quando existem questões culturais, religiosas e raciais que não são irrelevantes. 
A propaganda do establishment, assumidamente pragmática, a política real, culpando-te a ti, do Sul por seres quem és em nome de uma superioridade laboral especificamente alemã lança de novo o mote da superioridade racial e está presa à venda da ideia – as ideias são marketing para o poder conservador neoliberal europeu, convertidos ao consumo, como horizonte atingido, no lugar de Deus - de um comboio de duas classes, esquecendo que muitos viajam na carga e clandestinos, que outros estão parados onde nada chega, os interiores abandonados em que vivem populações idosas e que na fronteira da Europa muitos morrem numa espécie de catástrofe constante, como acontece em Lampedusa ou Melilla. Essa propaganda que afirma que apesar de tudo continuamos a parte do mundo civilizado mais civilizada enquanto deita para o lixo justamente o estado social que a caracterizava enquanto tal, esconde também, por exemplo, que a disparidade salarial na Europa civilizada pode chegar a abismos de distância como acontecia nas sociedades asiáticas de outrora: o salário de Gaspar é de 22.400 euros, muitas pensões rurais não atingem os 250 euros e esta diferença está longe de ser aquela que se verifica no sector bancário e privado em geral, em que há indivíduos, lembremo-nos dos Jardins Gonçalves das Opus Dei que são donos de pirâmides de ouro tendo enriquecido pela via da gestão, das administrações, do tráfico de influências e da especulação.
Abril interessa pelas conquistas, praticamente destruídas - não tendo sentido uma fixação na sua reconstrução mecânica como A política alternativa – mas interessa mais pelo que encerra de não realizado ao tempo: a revolução que se viveu como experiência mas que não se enraizou como democracia real. 
A tomada real do poder por um bloco social que não veja o futuro como dependência, sujeição a terceiros e pseudodemocracia massivas, devir empobrecido, desqualificado, pura imitação do que deva ser uma democracia, é decisiva. Tomada do poder por um bloco vasto que deseje um país da pluralidade das culturas que ao mesmo tempo não faça desaparecer a maravilhosa língua que nos identifica e teve um papel moldador de outros mundos, não fosse a nossa língua uma pátria aberta a falantes de outras línguas, matriz de pluralidades culturais, nas origens e nas consequências das partilhas com outros, vejam-se os crioulos, o português do sertão nordestino, de Moçambique, o português brasileiro, todas as formas de falar a língua que nenhum acordo travará e que beneficiariam, todas elas, de um contacto permanente e profícuo com uma matriz cuidada e amada. O que supõe uma política da língua menos obcecada pelo inglês, seja técnico ou de praia e sorria yes no dente perfilado para turista consumir... Se ao menos fosse o de Shakespeare estaria perto de uma mitologia comum greco-latina e até, já que o inglês tem o seu latim dentro, de uma matriz algo coincidente, parcialmente. O problema português é também o da colonização da língua, uma forma de a descaracterizar, como é a questão da natalidade. São questões decisivas.
Abril comemorado como o fazem oficialmente é um Abril desvitalizado, sem a sua “cafeína”, um Abril contra Abril. A normalização democrática, como a expressão trai, foi um modo de converter as conquistas que chegaram a ser direitos praticados num misto de romagem de saudade a Abril de 1974 e de alguma excitação polémica em torno da sua curiosidade histórica, tempo excêntrico, particularmente para os que não viveram Abril e a quem vendem a ideia de uma espécie de período de pés descalços no poder, de momento de loucura pouco mansa dos avós, de nenhuns brandos costumes, de desgoverno – desgoverno que agora nos conduz para o abismo e que assim olha Abril, um Abril que não foi, enquanto durou, obcecado de bancos nem em mercados, mas em população e democracia. Abril que nada teve de carnificina e que se algum sangue trouxe foi pelo anticomunismo e antissocialismo de meia dúzia é apresentado como excessivo, tresloucado, quando terrorista era o sistema a que deu fim – em Abril até o PSD era socialista e contra a exploração, falava mais em trabalhadores do que em classe média, claro que a estrutura do voto – social - era outra. 
Um novo “respeitinho é que é preciso” é o que quer este “jovem poder”. Querem uma espécie de passividade contente do sacrificado – é a visão de um “cidadão” obediente ao chefe - que vota na via única da dívida como não havendo para além dela outra vida – com eles vão voltar as bandeirinhas e o cortafitismo, as várias inaugurações para a mesma coisa inaugurada, como já acontece. A propaganda hoje omnipresente anda exultante. Eles confundem, de facto, regressão com vida e futuro com retrocesso, estão mais perto de Salazar do que dos economistas que não cessam de citar, as suas políticas são tão científicas quanto os resultados que apresentam: fome como nunca houve (25% dos portugueses no limiar da pobreza e muitos nem isso), desemprego/emigração (não se pode ler de outro modo), vulgarização e destruição do universo escolar, dos aparelhos mínimos da cultura e das artes, concepção da sociedade como uma espécie de falanstérios de vida/produção concentrados, com as pessoas a receber salários menos que mínimos e a viver em espaços urbanos degradados, população que deve estar agradecida e dobrar a cerviz pelo esforço que os governantes fazem – se eles soubessem o que custa governar! Onde é que já ouvimos isto? Um país a ser “organizado” como urbanizações degradadas de um lado e, a par, uma política de condomínios para criaturas Gold, algumas já nas prisões por branqueamento de capitais. Em Espanha o BES foi multado por coisa parecida, ter clientes ligados a essa prática. O turismo é outra das obsessões, não um turismo que respeite as identidades culturais, mas um turismo folclórico que transforme os “indígenas” em criaturas gentis, guardanapo no antebraço a direito e vincado do ferro, mal pagos mas agradecido pelo emprego, essa raridade em vias de extinção, a servir os reformados e turistas do Centro e Norte da Europa, da China e de outras paragens em que o crescimento económico prevalece, numa conversão do litoral num outro país em que domina um inglês de troca comercial, uma espécie de colónia dos paradigmas do lazer, peixe fresco e sol, em que somos apenas os serviçais, cozinheiros, barmans, criado de mesa, camareiras, porteiros e outras profissões altamente qualificadas. A quantidade de Escolas de Hotelaria que pulularam, por um lado e de campos de golfe e resorts, por outro, mostram bem a visão que os poderes têm da relação com esses terceiros do dinheiro- resta obviamente acrescentar os universos colaterais das prostituições e da pedofilia para um quadro completo.
Os tais excessos que dizem que se praticaram em Abril – Oh saudoso PREC, quantas injúrias te lançam levianamente!- não foram o suficiente para vivermos hoje uma democracia plena, tivessem esses excessos ajudado a cumprir Abril. Vivemos um simulacro. Os sinais mais evidentes disso são por certo, repito, a pobreza, 25% da população, o desemprego, a emigração que voltou, a generalização do medo e a eleição do gesto da delacção como “cidadania” premiada pelo poder. O que aconteceu nos transportes públicos recentemente, o convite a delactar quem não paga ou não valida o famoso bilhete e esta coisa do concurso das facturas com prémios Audi, revelam o enfeudamento total a uma ideia de “cidadania” exemplificada paternalmente pelo lado de uma sujeição total à contabilidade de si mesmo e ao policiamento do outro – não só vives para te organizares como burocrata de ti mesmo, ficas fichado, mas és também polícia do próximo, isto é: preenchem-te um tempo mental e controlam-te por todo o lado, nas portagens, balcões, escola, hospitais, etc., enquanto querem que sejas tu também controlador, controlador controlado. És vídeo-vigiado e nem dás por isso – o que eram visões de utopistas alucinados na literatura, vem-se insinuando como real. Tudo em nome da dívida e, não esquecer, do combate ao tal terrorismo que é alimentado pelas lógicas do antiterrorismo globalizado do Estado Espectacular Integrado. Aliás com o 11 de Setembro americano – que vale o de Allende?- os calendários e suas simbólicas datas foram revalorizados ideologicamente, perdendo força tudo o que era libertador e reforçando-se tudo o que é securitário e policial.
Voltou tudo aquilo que motivou o 25 de Abril excepto a guerra colonial. De um peso equivalente hoje e mais grave, é a perda da soberania. Se antes de Abril o poder era uma força totalitária contra o povo, que não era soberano e vivia sem direito de voto e opinião livre, não decidia o seu destino, agora a entrega da soberania à Alemanha e a organizações “internacionais” dela e dos Estados Unidos dependentes, no quadro da negação de uma Europa de soberanias interligadas livremente, faz de Portugal um país colonizado, tutelado, protectorado como assumiu o direitista Portas com orgulho de protegido – necessita ser defenestrado pois. Colonizado porque a “integração” tal como se processou é uma descaracterização da nossa identidade cultural e linguística – a história do acordo ortográfico tem um significado político pois cede na matriz para traficar uns cobres, para se inglesar na vocação comerciante, os curricula escolares de Bolonha são de um generalismo wikipédia antieuropeu, de vulgarização reles de conteúdos de conhecimento, da extensão e pluralidade do saber (está tudo na net, é com cada um, dirão! como se aprender a nadar fosse uma questão só de haver mar, um mar, claro, sem ondas nem peixes, alguns grandes). O que era superior e qualificado, é inferior, vulgar e mimético, citam-se bolcos de net por pura mecânica numa prática totalmente desconexa, absurda. Descontextualizada. E somos tutelados, colónia, porque não temos um governo autónomo mas um governo guiado de fora, satélite dos mercados financeiros e da Alemanha, obediente e covarde. 
O que hoje sucede politicamente e na economia como sujeito único é mais inspirado no salazarismo do que na libertação que os militares trouxeram – a liberdade que é uma conquista é o princípio necessário de mais liberdade, de um enraizamento da liberdade que liberte e crie igualdade, justiça, qualidade da democracia. Claro é que se governa sob o primado de uma ditadura financeira que, em si, não gera democracia, antes a destrói. O que o défice e a suposta política anti défice trouxeram é a instauração de uma prática do lucro constante dos credores, muito para além da expressão real do pagamento da dívida e na recusa constante de que deva ser auditada – temos todos de ir a fundo e perceber o que se passa e não ir atrás do que nos contam... 
O sistema da dívida e a redução da política à contabilidade da dívida, aliados ao não questionamento da lógica especuladora do crédito, são em si um Novo Velho Regime – Salazar começou nas Finanças -, o da concentração de modos lucrativos que nem sequer na economia se baseiam. O financismo é uma roleta manipulada por especuladores sem escrúpulos que, não sendo cretinos, têm também calendário político – que significa agora, perto do acto eleitoral, o verdadeiro fogo de barragem de boas notícias numéricas quando as más continuam péssimas e os problemas por resolver? As pessoas vão atrás dos números e já não querem ouvir palavras? Tudo se resume à demagogia de uns quantos dados estatísticos a dar ao ambiente informativo – ideológico - consumível um ar científico de inevitabilidade – a tal “ciência” estatística só serve para augurar o pior. Isto quando sabemos que a desregulação é justamente o modo de controlo dos poderes especuladores e que a sua “ciência” não tem outra regra para além da arbitrariedade dos tais mercados. A desregulação, o que é ela mais do que permitir a manipulação a quem tem o poder de impedir a regulação controlando governos e lei? Se tens a faca e o queijo na mão cortas a fatia que queres para ti e desenvolves junto do outro a tua política de redistribuição para famintos em doses “homeopáticas” de relativização da fome e do medo, crias o trauma, a patologia da inevitabilidade da via na cabeça do consumidor, enterrado cidadão entretanto empobrecido, precário, zé-ninguém. 
Abril fez-se contra a guerra, contra a exploração, contra a PIDE/DGS, contra a miséria, contra o analfabetismo, contra a condição periférica e o isolamento internacional – éramos um Estado pária, pois -, contra a necessidade de emigrar, contra o subdesenvolvimento, contra a escola elitista, contra a incultura, contra o abandono forçado dos campos, contra o absentismo dos terra-tenentes alentejanos, contra o trabalho precário, contra a inexistência de direitos sociais, laborais, de opinião livre, contra a proibição de organizar partidos, contra a violência terrorista do Estado fascista, contra a proibição da palavra, contra a liberdade de escrever, contra, contra… a subserviência e o medo eram fruto da omnipresença repressiva, o Estado tinha um rede de informadores e polícias que eram a extensão permanente da sua mão de ferro em todas as realidades íntimas, familiares, em todos os espaços de tentativa de organização política ou apenas de manifestação pública de ideias. O teatro, politicamente, viveu confinado, como numa reserva, sem uma verdadeira expressão pública e protestava quando podia com astúcia, Brecht era proibido, a literatura foi perseguida, as realizações públicas eram vigiadas e serviam muitas vezes para o regime fingir uma abertura que impedia.  O lápis azul era o meio ridículo de uma amputação constante da criação, a mão do censor prolongava o juízo do inquisidor, vinha de séculos de arbitrariedade. 
Estamos agora não no caminho do mesmo, não faz sentido esse tipo de comparações como homogenias temporais, mas num caminho em que aspectos do mesmo teor repressivo, totalitário, não democrático, estão aí. A este tipo de nova ditadura chamar-se-á o quê, um fascismo pós moderno? Não se trata apenas de um problema de nome, ele há muitos que identificam o que acontece, embora o termo financismo, por exemplo, tenha uma falta de conotação política necessária – diz uma cosia mas não diz a outra. A questão do autoritarismo social é mesmo real, da nossa vida quotidiana e real. O ambiente que vivemos é já o resultado de um regime que se tem vindo a instalar e cujos traços essenciais são repressivos e castradores.
A atitude da Presidente da Assembleia da República, Dr.ª Assunção Esteves, o modo displicente da resposta dada aos Capitães de Abril, de quem viveu Abril em Valpaços pela mão do pai alfaiate (e da concelhia do PSD) como diz a sua curta biografia na net, explica claramente a que ponto a instituição mais significativa – e reveladora - do que deve ser a democracia está contaminada pelo tique de um autoritarismo decisionista e irreflectido, “espontâneo”, tão colado à pele que nos faz pensar em outros tempos e em certo tipo de alienígenas. Estas pessoas não veem o que todos veem, então o que veem, são de que estranha origem, de que planeta?
Abril está por cumprir e porventura virá como uma nova Primavera, venha quando vier, no Inverno seja… e que se cumpra.

25A40 - O medo segue dentro de momentos

Continuavam os dias de festa em Lisboa, e não era preciso ir à Internet, que ainda não havia, ver o menu das que estavam previstas para esse dia. Lisboa era bem mais “pequena” do que é hoje e todos sabíamos o que estava na ordem do dia. Sentada no passeio em frente da Rádio Renascença, ladeada por amigos, Quica assistia à “revolução”. Foi então que o Marinho se saiu com a tirada, que ela nunca mais esqueceu: «Já pensaste que se isto fosse pago não tinhas dinheiro pra cá estar?»
Vendo a coisa por este lado, o da sociedade do espectáculo, em que todos somos espectadores e por vezes também actores, vêm-me à memória, de entre os muitos espectáculos a que assisti, os poucos que aí ficaram indelevelmente gravados. Não posso esquecer as emoções daquela maravilhosa onda sonora que se propagava pelo ar e nos entrava nos ouvidos e nos cérebros, no Coliseu de Lisboa, da primeira vez que aí actuou Milton Nascimento; ou da reacção do público da festa do Avante, ainda no terreno do Monsanto onde depois foi construído o campus universitário, à inefável versão da «Geni», por Chico Buarque: muitos choravam comovidos, como, soube depois, o próprio Chico e Simone e os elementos do MPB4 choraram abraçados, nos bastidores, eles mesmos contagiados pelo público. Evoco ainda, também no Coliseu dos Recreios, a figura mítica de Léo Férré, todo de preto e com os cabelos brancos compridos de velha matrona, mas com uma força, de voz e de presença, implausível no septuagenário que já era, cantando «Les Anarchistes». Também fui dos felizardos que assistiram à actuação de Miles Davis (com o fabuloso Keith Jarrett ao piano) e de Ornette Coleman (com Charlie Haden no contrabaixo) no primeiro festival de jazz de Cascais, aquele em que Haden dedicou um dos temas aos movimentos de libertação de Angola e de Moçambique (sendo recambiado, ele e o resto da banda, para fora da fronteira no dia seguinte). No ambiente de proibição que vivíamos, atitudes destas desencadeavam o imediato saltar da rolha que nos oprimia, e, por momentos, perdíamos o medo, cometíamos a heresia de gritar palavras de ordem contra a guerra colonial, e saboreávamos uma brisa de liberdade, aquilo que nos fazia tanta falta no dia-a-dia. A mesma liberdade que senti, com o coração a bater mais depressa, os olhos húmidos e uma incapacidade de dizer palavra, ao ouvir Zeca Afonso cantar, no primeiro “canto livre”, pouco depois do 25 de Abril, «A Morte Saiu à Rua», essa homenagem ao escultor Dias Coelho e a todos os que foram assassinados pela PIDE. Já agora sempre vos digo que me bateu forte a forte e crua versão dos «Vampiros», de Zeca, do recente espectáculo «Liberdade», por Sérgio Godinho.
Mas nada disto se compara à saída do quartel, onde me obrigavam a passar três anos da minha jovem vida cumprindo o serviço militar, fardado de alferes, comandando um grupo de militares voluntários, todos armados mas sem a mínima intenção de usar as armas, montados num jipe. Fomos quase de seguida engolidos por um mar de gente que, sem amarras e esquecida do medo, celebrava o primeiro Primeiro de Maio em liberdade. O jipe parecia levitar, levado pela multidão, connosco e com mais umas dezenas de festejantes em cima, os quais conviviam alegre e destemidamente com a “autoridade” das nossas fardas, agora já não identificadas com a repressão; as pessoas aclamavam-nos como heróis, as mulheres de todas as idades beijavam-nos e punham cravos nos canos das nossas espingardas e eu sentia uma indizível alegria física, visceral, emocionada, única.
O medo parecia ter desaparecido do coração dos portugueses. Como acontecera durante esses dias, timidamente primeiro, mais afoitamente à medida que se percebia que aquilo tinha vindo para ficar.
Enfiado à força no quartel, a princípio não tive a certeza sobre se o golpe era pela liberdade ou pelo ainda maior arrocho que a face dura do regime gostaria de ver aplicar. Até porque da tropa só estávamos habituados a receber repressão. Então, na messe de oficiais do quartel, lado a lado com outros milicianos mas também com oficiais do quadro permanente, vários de patente superior, encostado a uma das paredes para lhes deixar ocupar os lugares sentados, assisti pela televisão à saída dos presos políticos, entre os quais vários amigos que comigo conspiraram (Luís e Xaxão Moita, Joaquim Osório, Fátima Fonseca Ribeiro, o grande Nuno Teotónio Pereira e outros); tive a certeza: era mesmo a liberdade! E, ainda com medo de expressar os sentimentos naquele ambiente, fiz das tripas coração para não se me verem as lágrimas de alegria.
A vida é um bolo maravilhoso do qual só temos direito a provar pequenas mas deliciosas fatias lá muito de vez em quando, nos intervalos das chatices. Mas comida uma, essa já cá canta: ninguém no-la pode tirar. E esta foi daquelas cujo sabor vai ser muito difícil de igualar, por mais anos que viva…

25A40 - O dia mais longo

No dia 25 de Abril de 1974 estava em Amsterdão, onde me tinha exilado cerca de oito anos antes. Na véspera, tinha combinado com o Miguel Castro, também ele um exilado político, passar por uma tipografia anarquista holandesa, onde tinhamos encomendado uma "rede" de imprimir serigrafias para o Comité de Refugiados Portugueses na Holanda. Lá fomos, ainda não eram 9 horas da manhã, montados numa só bicicleta, buscar a "encomenda". Custou-nos 100 florins e, no acto da entrega, lembro-me do tipógrafo nos ter dito que seria bom que não tivéssemos de a utilizar muito tempo, pois seria sinal que o exílio não iria ser longo...
Dali, seguiria para a Faculdade de Antropologia, onde uma hora mais tarde participava num grupo de trabalho com colegas holandeses. A maior parte dos estudantes já se encontrava na cantina e,  ao verem-me, dispararam: "O que estás aqui a fazer? Não vais para Portugal?". Perante a minha surpresa, continuaram: "houve um golpe de estado no teu país e pensávamos que já soubesses...". Imaginei que se referiam ao golpe abortado de 16 de Março, ainda fresco na memória, e pensei que estavam a gozar comigo. Mas não, asseguravam-me, tinha sido naquela mesma noite. Esperei pelo fim da aula, onde o professor me disse mais ou menos a mesma coisa: "pensava que não vinhas hoje...". 
Saído da faculdade, corri a comprar o "Het Parool", o primeiro jornal da tarde, onde confirmei a notícia. Lá estava, na primeira página, a fotografia do Spínola, de monóculo, sob o título "Coup d'Etat in Portugal". Porque as notícias eram parcas e resumiam-se a uma descrição de uma acção armada dirigida por algo que dava pelo nome de MFA, à cabeça do qual estaria o famoso general, temi o pior: outro golpe de direita.
Seguiram-se telefonemas para a comunidade portuguesa em Amsterdão e para exilados noutros países europeus, parte dos quais sabia tanto como eu. Telefonar para Portugal era uma impossibilidade, dado o "estado de sítio" existente, pelo que ficámos dependentes das notícias das agências e meios de comunicação holandeses. À medida que a tarde avançava, os noticiários iam sendo mais específicos, ainda que a incerteza fosse total. Já em casa, telefonam-me de duas estações de televisão: a VPRO, uma estação privada de tendência socialista-libertária, que desejava saber se eu ia voltar a Portugal, para me acompanharem no avião e poderem filmar o regresso de um exilado; e da NOS, a televisão pública holandesa, para uma entrevista em directo no noticiário dessa noite, onde seria questionado sobre os acontecimentos em Portugal.
Acertei os pormenores da entrevista e sugeri as instalações do Comité de Desertores, situado num edifício no centro da cidade. Reunimos algumas dezenas de refugiados portugueses e fomos para as instalações do Comité, vazias àquela hora. Lá estava o carro de exteriores da NOS e, depois de ensaiadas as perguntas, assistimos ao telejornal, que abriu com a notícia do dia: o golpe de estado em Portugal. As primeiras imagens (a preto e branco) eram de militares e da população em Lisboa, seguidas da proclamação da Junta de Salvação Nacional, dirigida por Spínola. Ao ver aqueles rostos fechados, a maior parte deles fardados e de óculos escuros, não pude deixar de pensar na "junta" chilena de Pinochet. Quando o entrevistador me perguntou sobre o que pensava do golpe, lembro-me de ter respondido que, a avaliar pelos personagens, me parecia um golpe de direita, tanto mais que tinha havido uma tentativa de golpe em Março, ligada a "spinolistas". Teriamos de esperar para confirmar, pelo que não aconselhava ninguém a voltar a Portugal naqueles primeiros dias, até se confirmarem as notícias, adiantei. Fim da entrevista, que seria repetida de hora a hora, até ao fecho da emissão. O resto da noite foi passado em animada discussão, com centenas de exilados que iam chegando ao Comité de Desertores. Um ambiente de tensão, dominado por sentimentos de alegria e de incerteza, em relação a uma realidade que não podíamos avaliar directamente.
A manhã do dia seguinte trouxe mais notícias e entrevistas, agora para a rádio e, à medida que iam sendo conhecida a adesão da população, a certeza que as coisas estavam a ir no bom caminho. Faltava ainda a libertação dos presos políticos (o que só viria a acontecer na madrugada do dia 27) e, entretanto, tinha havido disparos da sede da PIDE, o que indiciava haver resistência da parte dos fascistas.
Quando, nesse fim-de-semana, passei pelo Albertkuip, o maior mercado ao ar livre da cidade, onde vendíamos o jornal "O Alarme!" (uma publicação de portugueses exilados em Grenoble), fui insultado por diversos emigrantes portugueses, que me tinham visto na televisão: "Então, você não tem vergonha de dizer mal do Spínola e de Portugal?". Respondi que não podia fazer outra coisa, dada a reputação do famigerado general. Mas, sim, tudo indicava que o "golpe" tinha sido de tendência democrática e ainda bem. Não ficaram lá muito convencidos...
Hoje, passados 40 anos - sobre um dia que parecia nunca mais acabar - continuo a pensar que foi bom ter errado nos meus vaticínios. O 25 de Abril está aí para o provar. Festejemo-lo, pois.

2014/04/21

Pobredata




Uma rápida leitura dos jornais de hoje indica:
1- O Estado gastou 4 milhões em assessorias só na última semana.
2- Os portugueses mais ricos e com maior grau de instrução dão menos importância a valores como a solidariedade, a justiça e os valores democráticas. 
3- O Benfica é o clube europeu com maior percentagem de adeptos no seu país.
4- A perspectiva de ganhar um Audi fez crescer o número de facturas comunicadas ao fisco em 45%. 
5- 2000 pessoas passam fome em Lisboa e a paróquia de Santo António quer criar condições para matar a fome a estes 2000. 
6- A maioria dos portugueses (2/3) que teve conhecimento do Manifesto dos 74 quer a restruturação da dívida.
A foto vem do Arquivo Municipal de Lisboa, e é de Joshua Benoliel. A data é 1910, não 2014...