2021/09/25

Autárquicas: futurologia

Constatações:

As autárquicas, ainda que desvalorizadas, são sempre importantes: servem para dar "cartões amarelos" aos partidos do governo e mostrar tendências de voto.

No caso presente, o partido que governa (PS) poderá levar um "cartão amarelo", mas dificilmente levará um "cartão vermelho". 

O mesmo relativamente ao maior partido da oposição (PSD): poderá recuperar algo do que perdeu, mas insuficiente para causar preocupações a quem governa. 

Restam os outros partidos. Destes, a nível autárquico, só o PCP conta verdadeiramente, pois é o único que detém câmaras importantes. Os outros apenas concorrem a lugares de vereação. 

Contas feitas, o PS ganhará, ainda que possa perder. O PSD perderá, ainda que possa ganhar. O PCP, em curva descendente, dificilmente reconquistará as câmaras perdidas. 

Sobre os novos partidos (de ideias velhas) não é de esperar grandes votações. Já a sua importância na formação de vereações à direita, pode ser significativa. 

Mais dispersão de votos e maior abstenção é o mais provável nestas eleições.

Independentemente do resultado, o que interessa é votar. Contra a direita, marchar, marchar!  

2021/09/22

San Fernando de Cádiz: na Rota de "Camarón"

VIVER DEPRESSA, MORRER JOVEM 

José Monge Cruz (1950-1992), mais conhecido pelo seu nome artístico "El Camarón de La Isla" (o camarão da ilha) foi um cantor cigano de Flamenco. Considerado um dos maiores "cantaores" de sempre, colaborou e.o. com Paco de Lucía e Tomatito, três dos mais importantes intérpretes do revivalismo Flamenco da segunda metade do século XX. 

Nascido em S. Fernando de Cádiz, numa família Roma espanhola, foi o sétimo de oito filhos. A sua mãe, Juana Cruz Castro, "La Canastera", fabricava canastras que vendia no mercado local. O seu avó, José, alcunhou-o de "camarão", devido ao cabelo ruivo e à tez clara da sua pele. Após a morte do pai, quando tinha apenas oito anos de idade, o jovem "Camarón" viu-se na necessidade de ganhar a vida, o que fazia cantando em bares e paragens de autocarro, acompanhado pelo seu amigo de juventude, o famoso cantor flamenco, Rancapino.

Ainda jovem, começou a cantar na famosa "La Venta de Vargas", uma tertúlia flamenca, onde os aficionados do género se reuniam, para escutar os grandes cantores andaluzes que se deslocavam a San Fernando. Aí seria descoberto pelo empresário Miguel de Los Reys, que o convenceu a tentar a sorte em Madrid, para onde partiu em 1968 para se tornar cantor residente no famoso "tablao" madrileno "Torres Bermejas", onde permaneceu doze anos.

Durante a sua permanência no clube, conheceu Paco de Lucía, frequentador e acompanhante habitual de cantores residentes, com quem estabeleceu uma longa amizade. Juntos, gravariam um total de nove álbuns entre 1968 e 1977, numa das mais bem sucedidas parcerias da história do flamenco moderno. Durante esse período, viajaram e actuaram em inúmeras tournées dentro e fora de Espanha. Mais tarde, devido à carreira solista de Paco de Lucía, o cantor iniciou um período de colaboração com Tomatito, com quem gravaria os últimos álbuns. Voltaria a gravar com Paco de Lucía, no seu último disco "Potro de Rabia y Miel", datado de 1992, ano da sua morte.  

Em 1976, com 25 anos de idade, casaria com Dolores Montoya, uma cigana de La Línea de La Concepción, conhecida como "La Chispa". Quando se casaram, "La Chispa" tinha 16 anos. Tiveram quatro filhos.

Muitos consideram "Camarón" o solista mais popular e o mais influente "cantaor" (cantor) do período moderno do Flamenco, iniciado na década de setenta do século passado. Ainda que o seu trabalho tenha sido criticado por alguns tradicionalistas, foi um dos pioneiros na utilização de um baixo-eléctrico nas suas canções. Este foi um "point of no return" na história do Flamenco, que ajudou a distinguir o "nuevo" do "tradicional" Flamenco.

Na década de oitenta, no auge da fama, recebeu convites para se deslocar ao estrangeiro, que amiúde recusava. Das poucas vezes que aceitou, destaque para as históricas actuações no Madison Square Garden em Nova Iorque, no Cirque de L'Hiver em Paris e no Festival de Jazz de Montreux, onde foi apresentado por Quincy Jones, como o génio do Flamenco moderno. Estávamos em 1987 e, de todos estes concertos, há registos áudio e vídeo, que não mentem. Arrebatadora, a arte de Camarón. 

Nos últimos anos de vida sofreu diversos internamentos hospitalares, devido ao precário estado de saúde, deteriorado por uma longa vida de fumador e uso abusivo de drogas. Em 1992, Monge Cruz morreu de cancro de pulmão, numa clínica de Badalona (próximo de Barcelona), não sem antes ter gravado o seu último trabalho, sob a direcção e produção de Paco de Lucía. 

Foi sepultado numa cerimónia católica, no cemitério de San Fernando, como era seu desejo. No funeral, estiveram presentes mais de 100.000 pessoas, vindas de toda a Espanha. Nesse dia, 4 de Julho de 1992, a região autónoma da Andaluzia decretou luto nacional.

LA RUTA DE CAMARÓN

Esta foi a segunda vez que visitámos San Fernando, depois da malograda visita de 2018, quando a maior parte dos lugares de "peregrinação" (la ruta de Camarón) indicados pela "oficina de turismo" da cidade, estavam encerrados (era um sábado de Verão e as horas de expediente não se coadunavam com as nossas). Desta vez, confirmámos os horários e, após reserva gratuita "online", lá fomos ver o moderno "Centro Interpretativo El Camarón", inaugurado a 2 de Julho deste ano, dia da morte do cantor. 

"El Camarón" (Centro Interpretativo), é um museu multimédia, situado paredes-meias com "La Venta de Vargas", que serve refeições durante o dia e funciona como "peña" flamenca à noite. Um lugar mítico, por onde passaram inúmeras figuras do "cante" e onde o mais famoso filho da terra iniciou a sua carreira. Ao construir o Centro Interpretativo ao lado da "Venta",  a autarquia de San Fernando escolheu um lugar estratégico da cidade, já que os visitantes de carro, oriundos de Cádiz, têm de contornar a rotunda que antecede a Calle Real (via principal do burgo), onde está situada a Venta, o monumento a Camarón e, agora, o Museu. Só não visita os três lugares, quem não quiser. Para além destes três locais, "La Ruta", inclui mais três sítios de visita obrigatória: a Casa onde nasceu Camarón, situada no antigo bairro de pescadores; a "Frágua", onde a família possuía uma forja de ferreiro; e o mausoléu de Camarón, no cemitério da cidade.

Iniciámos a visita pela "Venta" à hora de almoço, quando o restaurante está a funcionar e os visitantes, nacionais e estrangeiros enchem o local para degustar o excelente menu e verem o pátio interior, pejado de cartazes e fotos alusivos à passagem de Camarón e outros ídolos flamencos. Ao lado do palco, a reprodução em azulejo da efígie do cantor, assim como um cartaz icónico, de uma homenagem feita poucos meses depois da sua morte, onde participaram os grandes nomes da arte flamenca. 

Porque o tempo o permitia, aproveitámos a hora da "siesta" para uma visita ao cemitério, situado na colina da cidade. Após algumas perguntas, foi fácil dar com o lugar. O mausoléu, encontra-se à entrada do lado esquerdo ("Não há que enganar", avisaram-nos). De facto. Um dos maiores mausoléus do cemitério, todo em mármore, onde se destaca, num pedestal, a figura do Camarón sentado, como estivera a cantar. A tumba estava coberta de flores e, pormenor curioso, nela se encontra também o seu irmão Manuel Monge, falecido em 2019, que víramos no documentário "A Lenda do Tempo", num longínquo Festival de Cinema em Roterdão. Apesar do calor, imenso àquela hora da tarde, não faltavam visitantes, a maioria estrangeiros. 

De volta à "baixa" da cidade, tempo para visitar o "Centro Interpretativo", onde uma longa fila de visitantes esperava a sua vez, pois as últimas visitas começam às 19h. Um edifício moderno, de dois andares onde, após uma breve introdução feita pelo guia, somos conduzidos ao primeiro andar. Neste piso, está exposta uma vasta colecção de objectos pessoais (cartas pessoais, documentos vários) e troféus diversos (discos de ouro, estatuetas, etc...) cedidos pela família, a troco de uma remuneração vitalícia. Para além deste vasto espólio, existem gravações em áudio e vídeo, que podem ser escutadas nos diversos "postes", espalhados por todo o andar. Há ainda ecrãs gigantes onde podem ser vistas imagens dos concertos mais icónicos do cantor enquanto, numa sala paralela, são exibidos adereços que Camarón utilizou em vida (trajes de actuações, sapatos, bonés, óculos, etc...). 

De regresso ao rés-do-chão, tempo para admirar a peça central da exposição, um mercedes-benz de luxo, que o cantor conduzia nas inúmeras digressões que fez por Espanha. Dado que o Centro se encontra em fase experimental, ainda não dispunha de uma loja de "souvenirs" a funcionar. Uma falta sem remissão, que nos obrigará a voltar a San Fernando, um destes dias. Sempre uma boa desculpa para revisitar os lugares por onde passou Camarón...