2020/11/24

Trump de saída: algo é algo

Só hoje, três semanas após as eleições, Trump parece ter dado os primeiros sinais de aceitação da vitória de Joe Biden, ao autorizar a passagem do testemunho (leia-se "dossiers") ao novo presidente que será empossado no próximo dia 20 de Janeiro. Ainda não foi o reconhecimento formal, normalmente expresso pelo presidente cessante ao vencedor das eleições através das felicitações habituais, mas anda lá perto. Trump nunca admitiu a derrota e, mesmo depois de repetidas as contagens nalguns estados, continuou a lançar suspeitas sobre o voto por correspondência, alegando manipulação dos boletins chegados após o dia das eleições. Os democratas tiveram uma vitória indiscutível, tanto em número de representantes no colégio eleitoral, como em número de deputados no Congresso. Também na votação global, a vitória dos democratas é clara (75 milhões de votos contra 72 milhões dos republicanos). Os protestos de Trump e dos seus acólitos, tornaram-se tão patéticos que, a determinada altura, algumas figuras do partido republicano, como o ex-presidente W. Bush Jr. e o ex-candidato à presidência M. Romney, viram-se na necessidade de vir a público reconhecer a vitória de Biden. Só os mais fiéis permaneceram ao lado do chefe, entre os quais Giuliani, cuja última aparição televisiva mais parecia a de um personagem da série "Os Sopranos", tanta era a tinta do cabelo que escorria pela sua cara. Se tivesse que escolher uma imagem destes quatro anos do consulado devastador de Trump, a conferência de imprensa do antigo "mayor" de Nova-York a suar (e a "derreter-se" literalmente) perante as câmaras, seria uma boa metáfora.

Sobre Trump já tudo foi dito. Um narcisista patológico, rico por herança e treinado a competir no mundo de negócios, que lhe deu fama e proveito: primeiro através da construção e do imobiliário, depois através da televisão, que o ajudaria a construir o nome e a "marca" que o celebrizou.  Empresário milionário, mas sem qualquer preparação política ou cultural, o "The New York Times" averiguou que Donald Trump só tinha pago impostos em sete dos últimos 18 anos, que gastava 70.000 dólares no cabeleireiro e que a sua filha mimada, Ivanka Trump, apesar de ser empregada da Organização Trump, recebia elevados honorários de consultoria....para o pai. Desde a sua chegada à Casa Branca, começou a despedir colaboradores a um ritmo nunca visto na história dos Estados Unidos. Agravou as relações com os seus aliados, que combateram ao lado da América na 2ª guerra mundial, pressionando-os para que "aumentassem os seus gastos de defesa" com o argumento de que a NATO não podia viver apenas da contribuição americana. Ao mesmo tempo, declarava que o chefe de estado que mais admirava era Vladimir Putin, com quem sempre manteve contactos suspeitos, devido aos seus investimentos na Rússia. Tudo isto, afectou as relações entre os EUA e a Europa Ocidental, a um ponto que não conhece precedentes. Porventura pior, foi a dureza dos ataques contra as migrações nos Estados Unidos, um país cuja grandeza se deve aos emigrantes vindos de todo o Mundo. Muitos são da América Latina, nomeadamente do México. Na memória de todo o Mundo, estão as palavras do presidente Trump sobre os mexicanos: "Não nos mandam gente boa, apenas ladrões, traficantes, bandidos e violadores". A sua obsessão pela construção de um muro electrificado, na fronteira entre os dois países, que devia ser pago pelos próprios mexicanos, foi outra irrealidade que nunca deixou de querer concretizar, apesar das críticas feitas dentro e fora do partido republicano. Os ataques aos emigrantes mexicanos e do resto do Mundo, são apenas um dos aspectos da sua campanha racista, que endureceu enormemente as tensões entre brancos, negros e mestiços, na maioria dos estados do país. Foi durante o seu mandato que voltaram a aparecer cartazes com a frase "Somos um país de brancos", conhecida dos velhos tempos do Klu-Klux-Klan, de quem recebeu apoio explícito através de milícias armadas que frequentavam os seus comícios. As frequentes mortes de negros às mãos da polícia, daria origem ao movimento "Black Lives Matter", que pôs o país a ferro e fogo, durante o último ano. As suas atitudes machistas e misóginas eram conhecidas e foram denunciadas por movimentos feministas americanos. Num Mundo globalizado, prometeu o regresso a uma América mítica (Make America Great Again) apelando aos residentes da "rust belt" (as industrias do carvão e do automóvel) e às populações rurais e conservadoras do "midwest", que constituem a maior parte dos seus eleitores. Tornou-se proteccionista na América e isolacionista no Mundo. No intervalo, "comprou" uma guerra com a Coreia do Norte e outra com o Irão, para além da guerra comercial com a China, a maior ameaça ao império americano.

Apesar deste percurso errático e criticável, ainda era o candidato favorito há um ano atrás. Não fora o COVID, por ele negado e subestimado (hoje, completamente fora de controlo), para além das consequências económicas e sociais decorrentes do vírus (desemprego, pobreza crescente em largos estratos da população, violência...) e Trump, contra tudo e contra todos, poderia ter ganho as eleições. Não imaginamos o que seriam mais quatro anos deste pesadelo. Com o seu afastamento definitivo (ainda faltam dois meses!) uma nova era parece abrir-se. Desde logo, no controlo da pandemia, a primeira prioridade de Biden, que acredita na ciência e não deixará de trazer para o seu lado os especialistas mais reputados do país. Depois, no relançamento da economia, a sua segunda prioridade, já que os últimos meses foram um desastre total para milhões de americanos, que perderam tudo de um dia para o outro. Outras áreas, às quais o novo presidente dará certamente atenção, serão as relações internacionais (ONU, OMS, NATO, Acordos de Paris sobre o Clima, Irão e, obviamente, a China) que, nalguns casos, são praticamente inexistentes.

Com Trump, desaparece igualmente o principal émulo e símbolo dos populistas de direita que, nos últimos anos, vêm ganhando influência em países ocidentais (Bolsonaro, Abascal, Marine Le Pen, Salvini, Farage, Wilders, Orbán, Erdogan, etc.). Se o seu desaparecimento político contribuirá para um refluxo dos populismos, ainda é cedo para afirmar, já que as consequências da Pandemia só no próximo ano serão sentidas internacionalmente e, nessa altura, os conflitos sociais podem agudizar-se. Uma coisa parece certa: sem Trump, o ar fica menos poluído. Algo é algo.