2019/12/20

Sevilha: dos Cantautores ao Flamenco, passando pelo Fado


Que Sevilha pode ser um lugar de boas surpresas, não é novidade para ninguém que conheça minimamente a cidade. De volta à capital andaluza, agora em missão mais "séria", oportunidade de o comprovar, se isso fosse ainda necessário...
Tudo começou há uns meses atrás quando, em conversa informal, fomos confrontados com um convite inusado: o de apresentar, em forma de charla, uma panorâmica sobre a música popular portuguesa actual (vulgo MPP), que vem sendo feita por dezenas de compositores e intérpretes musicais, de há 50 anos a esta parte. A conversa seria integrada numa classe de alunos finalistas da Escola Superior de Artes Dramáticas (ESAD), que estudam artes performativas nas suas mais diversas vertentes (canto, teatro, mímica, dança ou música...).
Aceite o desafio, e porque o tema era vasto e daria para um "trimestre", optámos por incidir o foco da nossa intervenção na geração dos chamados "cantautores" (sing-songwriters), uma vez que a denominação, cobria os "baladeiros" ou "cantores de protesto" (anteriores a 1974) e os "cantores de intervenção" ou "canto livre", surgidos com o "25 de Abril".
Devo confessar, que poucas coisas me dão mais gozo do que seleccionar músicas e autores que fazem parte da banda sonora da minha vida. Se alguma coisa marcou a minha geração, foram as canções (datadas ou intemporais), que continuam a fazer parte da história da (nova) Música Popular Portuguesa. Restava a parte mais difícil: que músicas e autores escolher, para apresentar a uma classe heterógenea, constituida por alunos que nunca, ou raramente, teriam ouvido estas canções, ainda por cima num tempo limitado de duas horas?
Após um fim-de-semana de tentativas várias, conseguimos alinhar 25 títulos que cobrem, "grosso modo", o período compreendido entre 1956 e 1982, respectivamente o ano das primeiras "Canções Heróicas" (gravadas pelo Coro da Academia de Amadores de Música, dirigido pelo maestro e compositor Lopes Graças); e o ano da edição de dois albuns seminais da MPP (os LPs "Ser Solidário/FMI" de José Mário Branco e "Por este Rio Acima", da Fausto Bordalo Dias). O primeiro, "encerrando", de algum modo, a fase da canção mais comprometida politicamente e, o segundo, inaugurando uma fase de grande criatividade, após o período mais politizado destes mesmos cantautores. Pelo meio, nomes como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Francisco Fanhais, Manuel Freire, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Tino Flores, GAC, Fausto e Vitorino.
O tempo não deu para mais e muitos nomes ficaram de fora. Nada que tivesse impedido os presentes de manifestarem o seu apreço pela música oferecida, coisa que, de resto, é natural num país que nos deu cantautores como Paco Ibáñez, Luís Pastor, Patxi Andión, Lluís Lach ou Joan Manuel Serrat, para nomear alguns dos mais conhecidos.
Por coincidência, actuava na cidade, Teresinha Landeiro, num ciclo de fado anualmente organizado pelo Lope de Vega, o mítico teatro sevilhano. Não podíamos faltar (noblesse oblige) também porque conhecemos a jovem fadista das noites de fado amador, então organizadas no centro cultural da "Fábrica Braço de Prata", em Lisboa, já lá vão 10 anos. Tinha, Teresinha, 14 anos...
Dez anos mais tarde e dois albuns de originais depois, para além de actuações em salas prestigiadas como o CCB (Lisboa) e a Casa da Música (Porto), Teresinha confirmou todos os atributos que se adivinhavam há uma década atrás: uma fadista "puro sangue" que nada tem a provar, tal a maturidade do seu canto. Para quem estiver interessado, não deve perder as sextas à noite da "Mesa de Frades", em Alfama, onde ela actua regularmente.
Finalmente, e porque Sevilha sem Flamenco é como Roma sem Papa, tanto procurámos que fomos bafejados pela sorte. Em cartaz, nessa mesma semana, um concerto organizado na sala Cero, um pequeno teatro de bolso que, pela primeira vez, em colaboração com Madrid e Granada, organiza um ciclo dedicado a Manuel de Falla (Musica de Cámara y Flamenco).
Desta vez, o programa, ainda que sugestivo, era relativamente desconhecido para nós: Rocío Diaz (cantaora), Manolo Franco (guitarra) e Luisa Palicio (bailaora). Porque os concertos deste ciclo, são temáticos, este era dedicado à "Triana de Azulejo", uma evocação, suportada por magníficos diapositivos, das decorações típicas do famosos bairro sevilhano. Após uma curta, mas pedagógica introdução ao tema, por parte do organizador, pudemos assistir a hora e meia de excepcional qualidade e, fiel ao espírito de Falla, sem amplificação sonora. Aqui, o "cante" clássico, interpretado por Rocío, foi superiormente acompanhado pelo mestre Franco, um guitarrista de finíssimo recorte e técnica apuradíssima, a lembrar os grandes intérpretes da guitarra clássica espanhola. Uma nota final, para a bailaora (Palicio) que, pesem as poucas intervenções no concerto, mostrou uma técnica soberba, na tradição de uma arte, onde são incontáveis os génios da dança. Grande noite, a fechar uma estadia não menos memorável. 

2019/11/27

Simplex 2.0


Na semana passada, descobri, por mero acaso, que três dos mais importantes documentos de identificação pessoal, tinham caducado, ou estavam em vias disso: o Cartão de Cidadão, que veio substituir, em 2009, o antigo Bilhete de Identidade; o Passaporte, renovável por períodos de 5 anos; o Cartão Europeu de Saúde, renovável a cada 3 anos e sempre útil em caso de doença ou acidente, quando se viaja dentro da União Europeia.
Porque o seguro morreu de velho, comecei pelo princípio, que é como quem diz obter informação sobre a maneira mais rápida de resolver estes assuntos. Fui à NET e consultei o "site" E-Portugal, criado há cerca de 20 anos, durante o governo de António Guterres, naquela que foi anunciada como a "entrada de Portugal na era da digitalização", vulgo "Simplex".
Data dessa época, a inauguração da 1ª Loja do Cidadão, em Lisboa, anunciada com "pompa e circunstância" pelo, então, primeiro-ministro. Resumidamente, a Loja do Cidadão (a que se seguiram outras, dentro e fora de Lisboa) alberga sob o mesmo tecto, serviços de atendimento tão diferentes como Cartão de Cidadão, Passaporte, Finanças, Impostos, Segurança Social, Cartão Europeu de Saúde, Contractos de Electricidade, Água, Gás, etc...
A primeira Loja do Cidadão, abriu no Centro Comercial das Laranjeiras e, pouco tempo depois, abriria uma segunda Loja, situada no antigo edifício do cinema Éden, nos Restauradores. Foi nesta segunda Loja, que resolvi a maior parte dos meus problemas administrativos com o estado (impostos, cartão de cidadão, passaporte, etc...), até que (vá lá saber-se porquê) a Loja dos Restauradores encerrou. Foi, mais ou menos por essa altura que passou a ser possível agendar visitas pelo telefone. De acordo com a área residencial é, agora, possível marcar uma visita, para determinada data e hora, evitando, dessa forma, as filas para obter uma senha e aguardar (horas!) até ser atendido.
Desta vez, e porque era urgente, optei pela marcação telefónica, julgando ser essa a forma mais rápida de resolver o problema. Para minha surpresa, foi-me comunicado que não havia vagas em toda a região de Lisboa, até ao dia 28 de Janeiro de 2020! Na dúvida, reservei uma visita para essa data e optei por dirigir-me a uma Loja do Cidadão de Lisboa, correndo o risco de lá chegar e não haver "senhas" para ser atendido no próprio dia.
Aconselhei-me com amigos e um simpático taxista sugeriu-me a "Loja do Cidadão", no Alto da Boavista, em Lisboa, da qual nunca tinha ouvido falar. Lá fui, na passada segunda-feira, para tratar dos documentos necessários.
A Loja está situada dentro de um Centro Comercial gigantesco, que é necessário atravessar até chegar às instalações de "design" moderno, que começam a ser semelhantes em todo o país. Tirei a senha para as Informações Gerais e esperei pela minha vez no Balcão do Cidadão. Uma vez atendido e depois de explicar o que me levava ali, a solícita empregada informou que podia pedir-lhe o Cartão Europeu de Saúde, o qual me seria enviado para casa, sem custos. Tratei desse assunto e passei a uma sala anexa, onde só tratam de Cartões de Cidadão e Passaportes. Tirei duas senhas e esperei pela minha vez. Após uma hora de espera, fui atendido no Balcão dos Passaportes. Apresentei o Passaporte, que caducava em Fevereiro e pedi a sua renovação. A funcionária ficou de imediato com o dito e, depois, de imprimir um formulário com os meus dados, mandou-me dirigir a uma das 4 máquinas disponíveis, onde teria de fazer uma fotografia tipo-passe e digitalizar as minhas impressões digitais, para além de uma assinatura, de acordo com as normas. Lá fui e para minha surpresa, depois da foto, o écran anunciava que a recolha de dados não tinha resultado (!?). Nova tentativa e a mesma resposta. Após 4 tentativas nessa máquina, a funcionária sugeriu que eu mudasse de máquina. Voltei a tentar tirar as fotos e nada. Após 3 tentativas, passei para a 3ª máquina onde, também não resultou! Perante o desespero da funcionária, alvitrei que ela chamasse um técnico. Foi quando ela confessou que aquilo estava sempre a acontecer (!?). Finalmente, tentámos a única máquina que eu não tinha experimentado e, aí, a foto resultou, mas ficou demasiado iluminada, o que provocava uma áurea sobre a minha cabeça. A funcionária não desarmou e foi buscar um chapéu de chuva, que abriu por cima de mim, para que a luz não se reflectisse na cabeça. Debalde. Tentei brincar com o assunto, alvitrando que talvez eu fosse um "vampiro" e a minha imagem não se reflectisse no espelho...Em desespero de causa, a funcionária não se atrapalhou: "não faz mal, tira-se a foto com um telemóvel!".
O quê? Com um telemóvel?
"Pois, não seria a primeira vez" e, virando-se para uma colega de balcão, "o fulana, empresta-me aí o teu telemóvel que tira melhores fotografias que o meu...". E, antes que eu pudesse reagir, encostou-me ao espaldar da máquina e tirou 4 fotos!
E agora, se não ficou bem? Perguntei eu, ainda meio aparvalhado. "Deve ficar, mas se não ficar terá de vir cá outra vez", continuou ela numa "desportiva". Deve estar a brincar comigo, disse-lhe. E o meu passaporte antigo? "Esse pertence ao estado. Fica em nossa posse". Se fica em vossa posse, tem de o destruir aqui à minha frente, pois paguei 65euros por ele. "Muito bem", disse ela e fez dois orifícios no passaporte antigo. Paguei 65euros e recebi o comprovativo. "Dentro de seis dias úteis, estará pronto, isto se não tiver de repetir as fotos, claro", foi dizendo...
Restava o Cartão de Cidadão. Mais uma hora de espera e digitalização das impressões digitais. Já não tirei fotografias, não fosse a máquina recusar-se outra vez. Paguei 18 euros e perguntei quando estaria pronto? "Não sabemos", respondeu a funcionária, sorrindo de simpatia. Perdão? Como não sabem? "A gente aqui, nunca sabe. Quem manda, são os serviços. Depende do trabalho acumulado. Pode demorar uma semana, ou mais. Nunca menos". E agora? Não tenho documentos e não sei quando os vou receber?..."Pois, também não podemos ajudá-lo". E se eu tiver de me identificar? "Mostra o recibo comprovativo do pagamento". E se for viajar, pensa que alguém reconhece um recibo de pagamento? "Pois, não sei...", continuava ela sorrindo.
Desisti. Tinha passado 3 horas na Loja do Cidadão, tratado de 3 cartões de identificação, não possuia nenhum válido e acabara de pagar 83euros. Mais "simplex" que isto, era impossível.
Uma coisa, é certa: Kafka existe e vive em Portugal...   
   

2019/11/19

A culpa dos heróis é serem sempre poucos (José Mário Branco)


Hoje é um dia fodido.
Morreu um amigo e companheiro de longa data.
Dos chamados "insubstituíveis", ainda que saibamos que os cemitérios estão cheios de pessoas invulgares.
Já lá vão mais de 50 anos. Estávamos em 1968 e eu vivia há dois anos em Amesterdão, onde me tinha exilado, por recusar a guerra colonial. Naquela época, eram poucos os portugueses exilados na Holanda. A maior parte, colaborava com o Angola Comité, uma organização holandesa que apoiava os movimentos de libertação africanos e denunciava a guerra colonial. O Angola Comité pediu-nos ajuda na divulgação e organização de uma sessão sobre a guerra em África. Necessitavam de um português que cantasse umas canções de teor político. Os poucos cantores exilados, viviam todos em França e alguém (Isabel) lembrou-se de um amigo que tinha conhecido na faculdade. Chamava-se José Mário Branco e cantava em Paris. Contactámo-lo e ele aceitou o convite.
Lembro-me, como se fosse hoje, da sua primeira actuação. Foi na Aula Magna, da Universidade de Amesterdão, onde o Zé Mário, rouco de constipado, cantou "A Ronda do Soldadinho" que, só mais tarde seria gravada e distribuida, com a ajuda do Angola Comité. Uma epifania.
Acompanhei a sua fase de exílio à distância, ainda que fosse adquirindo todos os discos, entretanto editados, desde as "Cantigas d'Amigo" (1969), até ao seminal "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades" (1971), uma pedrada no "charco" da cinzenta música popular portuguesa, a que se seguiu "À Margem, de Certa Maneira" (1973).
Voltaria a encontrá-lo no pós-25 de Abril, já em Lisboa, primeiro no GAC, do qual foi co-fundador e, mais tarde, no grupo de teatro "A Comuna" onde, para além de actor, foi responsável pela música da peça "A Mãe", album que "comprei" através de um "crowdfunding". 
Em 1976, o Zé Mário voltaria a Amesterdão, para cantar no âmbito de uma "Semana Portuguesa", organizada pela comunidade local na Mozes en Aronkerk, uma igreja protestante, que apoiou durante anos a causa dos refugiados portugueses.
Seguiram-se gravações e actuações memoráveis que, por estes dias, serão lembradas em obituários de circunstância ("Ser Solidário/Solitário", "FMI", "A Noite", "Correspondências", "Ao Vivo em 1997", "Resistir é Vencer"...).  Em Amesterdão, onde eu continuava, era mais difícil vê-lo ao vivo, mas, sempre que havia oportunidade, lá o contactávamos para mais uma sessão. Aconteceu, pela terceira vez, em Dezembro de 1984, quando o convidámos para participar numa "festa natalícia" das associações portuguesas locais. Aproveitámos a sua passagem pela cidade para filmá-lo durante a actuação, onde gravámos a canção "Eu vim de longe", que viria a fazer parte da banda sonora de um filme que estávamos a fazer para a televisão holandesa.
Data de 1989, a sua última passagem pela Holanda. No âmbito de uma digressão organizada pelo "Círculo de Cultura Portuguesa", que abrangeu Amesterdão, Roterdão e Haia, voltaria a cantar, agora ao lado de Carlos do Carmo e António Pinho Vargas. Canções de sempre, tão actuais então como na época em foram escritas. Foi um privilégio ter produzido tais concertos.
Voltaríamos a entrevistá-lo, em 1993, na sua casa em Lisboa, para um documentário da VPRO, uma emissora de televisão holandesa. Dessa vez não cantou, mas falou de música, política e não só...
Anos mais tarde, após o meu regresso a Portugal, voltei a reencontrar o Zé Mário. Primeiro, no Teatro da Trindade, onde ele gravaria o celebrado duplo-album "Ao Vivo em 1997". Três sessões memoráveis, cujo ambiente está bem testemunhado na gravação. Outra, após um concerto para comemorar Abril, organizado no Coliseu dos Recreios (2008). Nessa noite, foi o último a cantar e esperou até às 3horas da madrugada para poder fazê-lo. No regresso, deu-me "boleia". Estava "mais morto que vivo", nas suas próprias palavras. Tinham-no feito esperar, mais de 6 horas, nos camarins do Coliseu...
A última vez que nos encontrámos, foi em Grândola onde, em Outubro de 2018, foi lançado o CD "Grândola (para sempre)", uma colectânea de versões internacionais da canção popularizada por José Afonso. O Zé Mário foi lá falar sobre a produção do "Cantigas do Maio" em Paris e das peripécias que envolveram a gravação da "Grândola". Uma aula.
Uma semana antes, tinha estado na Associação José Afonso, para falar do seu último CD, uma compilação de inéditos, gravados entre 1967-1999. Sala "à pinha", para ouvir histórias inéditas. Às tantas, alguém lhe perguntou quando é que voltava aos palcos. Ao que ele respondeu: "O que tinha para dizer, está nos discos. Comprem os discos e ouçam-nos". O homem insistiu: "É pá, há sempre motivos para cantar...", ao que o cantor retorquiu "Pois há, pá, mas eu não tenho paciência para concertos tipo missa, com isqueiros e telemóveis a acender e a apagar. Agora, não tenho assunto, mas, se fôr preciso, lá estarei de novo". O outro insistiu: "Mas, não tens mesmo assunto?". "Não, pá, o que é queres? Que eu suba para cima do palco e comece a cantar "não tenho assunto, não tenho assunto, não tenho assunto?...Não dá".
E agora?
Agora, não sei como terminar este texto. Acho que fui eu que fiquei sem assunto. Restam-me os discos e as memórias. Só posso estar agradecido. 
Obrigado, Zé Mário!          

2019/11/13

E a Espanha aqui tão perto...


As eleições espanholas, do passado domingo, trouxeram poucas surpresas relativamente às projecções avançadas ao longo dos últimos meses. No essencial, podemos dizer que o "bloco" dos partidos de "esquerda" (PSOE, Unidas-Podemos, Más País, ERC, PNV...) e o "bloco" dos partidos de "direita" (PP, Cds, VOX...) mantiveram as mesmas percentagens, ou seja, um (relativo) equilíbrio em termos parlamentares. O grande vencedor da noite, acabaria por ser o VOX (extrema-direita), que mais do que duplicou o número de deputados (52), enquanto o grande perdedor, seria o "Ciudadanos" (Liberais) com uma derrota histórica (perdeu 47 deputados), o que levou o seu líder (Albert Rivera) a demitir-se.
Estes resultados, não contribuiram para clarificar o impasse em que se encontra a política do país vizinho, já que o vencedor das eleições (PSOE) não conseguiu atingir uma maioria absoluta ou, sequer, suficientemente confortável, para poder constituir governo. Isso mesmo percebeu Sanchéz que, apesar de vencer, perdeu votos e deputados, o que deitaria por terra a estratégia gizada pelos socialistas, que pensaram poder sair reforçados destas eleições. Depois de meses de discussões estéreis, entre Sanchéz e Iglesias, sem conseguirem chegar a um acordo sobre questões como a Catalunha ou a divisão de ministérios, a ameaça do VOX (leia-se fascismo) parece ter surtido algum efeito nas suas mentes. Só assim se explica o acordo, ontem firmado, pelos dois líderes. Nesse sentido, podemos dizer que há males que vêm por bem...
Mas, ainda não estamos lá. Juntos, o PSOE e o Unidas-Podemos têm, agora, 155 deputados (120+35), o que não chega para atingir a maioria absoluta no Parlamento (176 deputados). Faltam, portanto, 21 votos. Teoricamente, os dois partidos podem governar, já que detém mais votos do que a direita junta. Acontece que, em caso de se formar uma coligação negativa no parlamento (como aconteceu em Portugal com Sócrates em 2011 ou Passos Coelho em 2015), o governo pode cair. A acontecer tal situação, o VOX seria o principal beneficiário, agora que os votos dos Ciudadanos parecem ter sido transferidos para o partido de Abascal e o PP (88 lugares), o maior partido da oposição, poder ser uma alternativa governamental.
Tudo depende da capacidade negociadora de Sanchéz, que terá de fazer concessões a outros partidos de esquerda, única forma de atingir os almejados 21 deputados de que necessita. Um bico-de-obra.
Comparando com a situação portuguesa, não deixa de ser curiosa a afirmação de António Costa, há alguns meses atrás, quando as sondagens davam ao partido socialista percentagens próximas da maioria absoluta. Em entrevista ao "Expresso", perante a pergunta se contava com o BE para governar, o primeiro-ministro português afirmou taxativamente que o BE nunca seria governo, pois a experiência, em Espanha, mostrava a instabilidade de um governo com o Unidas-Podemos.
Ele há cada uma...

2019/10/26

DOCs: o cinema documental está bem e recomenda-se



Na recta final, a 19ª edição do DOCs continua a apresentar muitos e bons documentários.
Dos filmes vistos, destaque para o ciclo "Verdes Anos", onde são exibidas primeiras obras e obras de jovens autores em início de carreira.
Dois portugueses, "Simulacro" e "Casa na Praia", respectivamente de Duarte Maltez e Teresa Folhadela e dois estrangeiros, "Não nos representam" de Irene Muñoz Martin (Espanha) e "A Family Tale" de Claudia Ciepiel (Dinamarca), foram as nossas escolha desta semana.
Ainda que os meios (e experiência) dos jovens realizadores, sejam condicionantes a ter em conta, a verdade é que a qualidade dos filmes apresentados era bastante desigual.
Interessante, o documentário de Maltez, ainda que curto (9'), no qual, através de uma montagem rápida e nervosa, o autor mostra diversos excertos da sociedade de consumo, numa crítica implícita à volatilidade dos dias.
Menos interessante, pareceu-nos o filme de Teresa Folhadela, um típico produto de finalista, onde a autora nos mostra imagens de uma família (a sua) algures na Foz do Porto. Imagens, sem qualquer comentário, onde os personagens vão passando em frente à câmara, enquanto os dias passam, entre refeições, passeios na praia e um simpático cão...
Bem diferente, foi o filme de Muñoz Martin que, para além dos meios ao dispôr (desde logo expresso no tempo e na qualidade das imagens) tinha uma pergunta que percorria todo o filme: quem nos representa? Os manifestantes do movimento 15M, Franco, os actores contratados, as pinturas de Goya ou o cinema do real? Um documentário de qualidade, a mostrar uma maturidade bem longe dos trabalhos (necessariamente incipientes) de um finalista de Belas Artes. Finalmente, o filme de Ciepiel: um contido, mas belo ensaio sobre a família e a morte de um ente querido (o pai) em imagens sóbrias, que lembram Bergman e a austera tradição luterana.
Um dos filmes mais aguardados desta edição, a estrear brevemente no circuito comercial português, era "The Brink" (Alison Klayman), sobre a ascensão da nova-direita americana.
O filme acompanha o antigo estratega da Casa Branca, Steve Bannon, nas eleições intercalares nos Estados Unidos e nos seus esforços de mobilização dos partidos de extrema-direita, para ganhar assentos nas eleições para o Parlamento Europeu de Maio de 2019. Ainda que não revele nada que não saibamos, o filme de Klayman é um bom "road-movie", sobre um homem reaccionário, mas inteligente, que parece ter uma única missão na vida: construir um movimento de extrema-direita a nível internacional. Esta "nova direita" (de ideias velhas) dispõe de muito dinheiro (ex-presidente da Goldman Sachs, milionários chineses no exílio, doadores anónimos) dispostos a financiar pessoas pouco recomendáveis: Farage (UK), De Winter (Bélgica), Salvini (Itália) ou Marine Le Pen (França). Para já, estes republicanos da Alt-Right, perderam as intercalares nos EUA, o que impedirá Trump de construir o muro na fronteira do México, símbolo maior da América proteccionista (economia para os americanos). Depois e apesar dos contactos na Europa (onde vive num castelo próximo de Roma) Bannon não parece convencer todos os nacionalistas convocados para um jantar em Londres. Estes precisam de dinheiro e de uma ideia comum. Qual? Os imigrantes, os refugiados? O guru americano faz-lhes uma proposta: o "nacionalismo económico". Um conceito "apelativo", que já foi experimentado na Alemanha da Krupp, Daimler-Benz e Hugo Boss. Na altura chamava-se "nacional-socialismo". O nazismo, para os mais distraídos. Por alguma razão, o filme começa com imagens do campo de extermínio de Auschwitz. O "sistema perfeito", nas palavras de Bannon. O homem é sinistro.
O DOCs termina este fim-de-semana. Hoje serão entregues os prémios dos filmes a concurso. Com esta edição, termina igualmente o consulado de Cíntia Gil, a dinâmica directora do Festival nos últimos 10 anos, responsável por uma equipa de mais de 50 voluntários, que organizam o melhor festival de cinema em Portugal. A partir do próximo ano, Cíntia Gil, irá coordenar o festival de Leeds, onde a esperam novos desafios. O DOCLISBOA, esse, continua. Até para o ano!

2019/10/21

O DOCLISBOA, está de volta!


Como é da tradição, em Outubro, voltou o DOC's.
Na sua 19ª edição, o mais importante Festival de Cinema Documental em Portugal, apresenta, uma vez mais, um programa rico e variado nas suas diversas vertentes. Do documentário puro e duro aos filmes mais experimentais, dos novos realizadores aos nomes consagrados, da produção nacional aos filmes a concurso, o DOCs afirmou-se ao longo dos últimos anos como um evento incontornável, este ano com mais de 300 obras em estreia e em retrospectiva, organizadas em blocos temáticos, onde não são esquecidos os mais novos, para além dos painéis e "workshops" com a presença dos realizadores convidados.
Nesta edição, destaque para a secção "Retrospectiva", com um ciclo dedicado à realizadora libanesa Jocelyne Saab e o ciclo "Ascensão e queda do Muro - O cinema alemão de Leste" (filmes realizados na ex-DDR entre 1946 e 1991).
Regressam as secções "Riscos" (documentário e experimentalismo); "Da terra à Lua" (discriminação, racismo e colonialismo); "Heart Beat" (sobre música e músicos); "Cinema de urgência" (Habitação, Fascismo no Brasil, Jornalismo Independente); "Verdes Anos" (jovens realizadores); "Competição Internacional" e "Competição Nacional".
Dos documentários, entretanto vistos, destaque para o filme de abertura "Longa Noite" de Eloy Enciso (Galiza), sobre as memórias da ditadura franquista. Um belo filme, ainda que algo contemplativo e sombrio, onde os intérpretes recitam trechos clássicos da poesia, teatro e literatura espanhola, para além de cartas do exílio e da prisão, sobre os anos negros da repressão na Galiza.
Na segunda sessão, integrada no ciclo "Descolonizar a Memória", dois excelentes documentários sobre o colonialismo português e o colonialismo belga em África. O primeiro documentário, "A Story from Africa" de Billy Woodberry (USA), é uma impressionante reconstrução a partir de arquivos fotográficos  de uma ocupação do exército português do território do povo Cuamato no Sul de Angola, em 1907. O segundo documentário "Palimpsest of the Africa Museum" de Matthias de Groof (Bélgica) acompanha as discussões em torno da renovação do Museu Real da África Central na Bélgica e da possibilidade da sua descolonização. Dois poderosos documentos, que nos remetem para a Memória Histórica e de como esta pode ser preservada, agora com o olhar que as descolonizações  permitem. Ambos os autores estiveram presentes no debate que se seguiu às projecções.
A maior surpresa do dia, seria, no entanto, o excelente filme "Prazer, Camaradas!" de José Filipe Costa (Portugal). Uma comédia, onde se fala de temas sérios, como relações de produção, relações entre géneros, solidariedade e sexualidade, numa cooperativa agrícola da Azambuja, nos conturbados anos do PREC.  José Filipe Costa, realizador do polémico "Linha Vermelha", onde revisitava o documentário "Torre Bela", do alemão Thomas Harlan, volta assim ao tema da obra anterior.
"Prazer, Camaradas!" desenrola-se depois do 25 de Abril de 1974, numa época em que muitos estrangeiros vinham para Portugal ajudar no trabalho agrícola, dar consultas médicas e aulas de planeamento familiar. O realizador serviu-se de um jogo teatral, com recursos à dramatização, interpretado por habitantes da região, com base em documentos da época. Um estilo "sui-generis" que, a espaços, lembra Miguel Gomes (O meu querido mês de Agosto, Tabu, 1001 noites...) ou, nas cenas de maior erotismo, o jugoslavo Dusan Makavejev (WR: os mistérios do organismo) quando o realizador lê trechos da obra de Wilhem Reich...
Bons filmes no DOCs, como é habitual, que continua até ao próximo domingo, dia 27. 
        
    

2019/10/20

Catalunha: ponto de não-retorno?

Na Catalunha, a crise política atingiu (novo) ponto alto na semana que hoje termina.
Particularmente, a noite de sexta para sábado, foi de violência extrema, com centenas de feridos, entre as forças policiais e os manifestantes, para além dos presos, calculados em mais de uma centena. Só na cidade de Barcelona, os prejuízos causados pela destruição foram de mais de 2 milhões de euros. Também nas principais cidades catalãs, como Tarragona, Lleida ou Vic, as manifestações não foram menores. Em dia de greve geral na Catalunha, a marcha dos catalães independentistas (em direcção a Barcelona) atingiu mais de 525.000 participantes, a acreditar nos números policiais.
Nada de novo, numa das regiões mais agitadas do continente europeu que, ciclicamente, manifesta o seu descontentamento contra o poder centralista de Madrid e defende mais autonomia (independência?) do território catalão.
É assim, pelo menos, desde o século XVII, quando Portugal (re)conquistou a sua independência a Espanha, à custa do esmagamento das pretensões catalãs, que Filipe III temia perder para o rei de França, aliado daquele povo espanhol. Podia ter sido ao contrário, caso a coroa espanhola tivesse virado as suas atenções para Portugal e a Catalunha se tivesse tornado uma nação independente, como sabemos...
Durante os meus anos de exílio, trabalhei com diversos catalães (alguns refugiados da ditadura fraquista) e todos me lembravam este facto, sempre em sãos convívios de solidariedade ibérica. Nunca me esquecerei deles e, quanto mais não fosse, só por isso, sinto uma "dívida" e simpatia pela luta dos povo catalão que nunca disfarcei. Também sei que o sentimento independentista na região, não é geral. A sociedade catalã (7 milhões de habitantes) está profundamente dividida quanto a esta questão e, a acreditar nas últimas sondagens (datadas de Julho), se houvesse um referendo oficial, a maioria da população (53%), seria contra a independência. A questão, é que nunca houve um referendo oficial e a constituição espanhola (datada de 1978) não o permite. Seria necessário alterar a constituição, o que obriga a uma maioria de 2/3 no Parlamento, uma fasquia até agora impossível de obter. Felipe Gonzáles (PSOE) não o conseguiu na década pós-franquista, quando a Espanha estava mais focada em consolidar a jovem democracia e em aderir ao Mercado Comum; Aznar, na linha franquista e conservadora que sempre dominou o PP,  nem de tal queria ouvir falar e a última tentativa de conceder uma maior autonomia à Catalunha (que não a independência) data de 2007, quando Zapatero iniciou conversações e fez propostas nesse sentido. Nos governos de Rajoy, a questão voltou à "estaca zero" e, em 2010, quando as exigências voltaram às ruas catalãs, as condições impostas pelo PP foram tantas (42 artigos da Constituição) que tornaram impossíveis quaisquer desbloqueamentos da situação. Nos últimos dez anos, com altos e baixos, as contestações a Madrid não têm diminuído. Destas, o último acto (falhado) foi o referendo de 1 de Outubro de 2017. A partir dai, a história é conhecida: reacção autoritária de Rajoy, que accionou o famigerado artigo 155 (retirando o controlo da Catalunha ao governo regional) e a repressão em massa, que se saldou por centenas de prisões e julgamentos dos principais responsáveis pelo acto de desobediência civil contra o poder central. Alguns desses responsáveis (Puidgemont, etc...) conseguiram fugir, exilando-se em diversos países europeus, tendo sido julgados à revelia. Outros governantes (12) permaneceram em Espanha e continuam presos. Foram estes 12 políticos presos que, esta semana, foram condenados a penas, que vão de 9 a 13 anos de prisão. Esta é a causa próxima das últimas manifestações e da violência verificadas esta semana na Catalunha, tudo indicando que vão continuar.
Perante este quadro, que alguns já chamam de pré-guerra civil, o governo minoritário de Sanchez (PSOE), actualmente em campanha para ganhar as próximas eleições de 10 de Novembro, adoptou uma posição cautelosa e formal, apoiando a decisão do Tribunal Supremo e distanciando-se assim das pretensões independentistas. Sanchez pensa, desta forma, agradar ao Rei e conter o desgaste à direita, onde o PP, os Ciudadanos e o VOX, são a favor da unidade espanhola e estão a subir nas sondagens. À esquerda, o Podemos ensaiou uma posição conciliadora, ao declarar que a decisão judicial não resolve o problema (que é político), enquanto os pequenos partidos, das Baleares ao País Basco, para não falar dos catalães, querem uma solução mais democrática e descentralizadora. Pelo menos, o direito a referendar esta questão, que seria uma concessão (não isenta de perigos) às pretensões das regiões autónomas.
Um impasse total, numa questão que tem séculos e que não parece solucionável com os actuais actores políticos. Para bem da Catalunha, de Espanha, e da própria Europa, criatividade precisa-se, agora que os movimentos nacionalistas e xenófobos ganham terreno, numa União Europeia desprestigiada e onde o apelo ao proteccionismo é transversal a mais países. 

2019/10/17

Eleições: a contagem final


São já conhecidos os resultados da Emigração.
Como é da tradição, os dois principais partidos, dividiram entre si o número de deputados: 2 para o PS (um pela Europa e outro pelo Resto do Mundo) e 2 para o PSD (um pela Europa e outro pelo Resto do Mundo).
Contas feitas, o PS obteve um total de 36,34% dos votos (correspondente a 108 deputados)  e o PSD um total de 27,76% (correspondente a 78 deputados). Os restantes partidos não elegeram qualquer deputado. Confirma-se, deste modo, a vitória do PS, ainda que sem a maioria absoluta (ficaram a faltar 8 deputados).
Antecipando-se a estes resultados, António Costa lembrou que "os portugueses gostaram da "Geringonça" e desejam a continuidade da actual solução política, agora com um PS mais forte" (discurso da noite eleitoral). 
Acontece que o PS optou por governar sózinho, o que sendo um dos cenários possíveis, causou alguma estranheza nos meios afectos à "Geringonça".
O que se passou, entretanto?
Do PCP, sabíamos que só muito dificilmente repetiria a "experiência", dadas as críticas internas ao posicionamento do partido na "Geringonça", algumas das quais foram sendo tornadas públicas ao longo dos últimos dias. A pesada derrota eleitoral, teria contribuido para esta decisão.
Do BE, sabíamos que estaria disponível para uma 2ª "Geringonça", ainda que houvesse algumas "linhas vermelhas" que não podiam ser ultrapassadas. A estagnação do partido, em número de deputados, não ajudou à negociação.  
Com os restantes partidos de esquerda (Livre e PAN), o PS nunca poderia contar para constituir uma maioria qualificada.
Perante tal cenário, percebe-se a decisão do PS, ainda que seja a mais arriscada: em caso de uma "coligação negativa" na AR, o governo pode cair, como aconteceu com o governo de Sócrates em 2011.
Costa (um optimista) parece estar confiante em que tal não acontecerá, ao garantir a abstenção dos partidos da esquerda nas votações orçamentais, o que lhe permitiria chegar ao fim da legislatura...
Em último caso, poderá sempre "virar-se" para a direita que, neste momento, se prepara para eleger novos líderes. Se isso no CDS é uma certeza, no PSD, é tudo menos certo. Caso Rui Rio se mantenha, Costa sabe ter ali um "aliado" em potência, que pode facilitar-lhe a vida em caso de necessidade.  Não seria a primeira vez, de resto...
A estabilidade da situação interna, só por si, não é uma garantia de uma governação estável. Há variáveis que o governo português não poderá controlar (estagnação económica a nível europeu, guerra comercial entre EUA e China, preço do petróleo nos mercados, Brexit, etc...) que podem pesar no melhor ou pior desempenho da governação. Nessa altura, veremos se a solução "um governo, um partido" foi a melhor.
Para já, os nomes escolhidos para o próximo executivo, são praticamente os mesmos, o que indica uma aposta na continuidade dos governantes. Resta saber se haverá continuidade nas políticas. Essa é a questão

2019/10/07

Eleições: o dia seguinte

Terminada a contagem dos votos no continente (ainda faltam apurar os votos da emigração) o balanço corresponde em larga medida às projecções da Universidade Católica para o Público/RTP, de há anos a esta parte a mais fiável no universo das sondagens portuguesas.
Contas feitas, o PS ganhou (como se esperava) sem maioria absoluta; a direita tradicional (PSD/CDS) perdeu (como se esperava) com um dos piores resultados de sempre; o BE consolidou o número de deputados (como se esperava), ainda que tenha perdido votos; a CDU (PCP/PEV) perdeu votos e deputados (como se esperava), confirmando a descida das ultimas 4 eleições; o PAN cresceu (como se esperava), duplicando os seus votos. Surpresas (relativas) foram as votações no "Livre" (Esquerda Verde), na  "Iniciativa Liberal" (Neo-Liberais) e no "Chega" (Extrema-Direita) que conseguiram, pela primeira vez, eleger um deputado. Desta forma, o Parlamento passará a contar com 9 partidos, um "unicum" na democracia portuguesa.
Resumindo, a esquerda em conjunto (PS, BE, CDU, Livre) obteve 138 deputados num total de 230, o que corresponde a uma maioria confortável de 54%.
Com estes números, António Costa não terá dificuldade em governar à esquerda (ou à direita), ainda que no discurso da vitória tenha claramente manifestado a sua preferência por uma solução de esquerda, eventualmente alargada ao Livre e ao PAN.
A confirmar-se esta solução,  não é certo que o PS necessite dos mesmos intervenientes da primeira "Geringonça", para aprovar medidas e/ou orçamentos específicos, sendo certo que (sem o PCP) só o Bloco de Esquerda lhe permitirá obter uma maioria na AR (125 votos em 230),
Já o PCP não parece acreditar na reedição da "Geringonça", o que se compreende dada a perda constante de votos, desde que passou a apoiar o governo PS, o que pode ser interpretado como uma das razões para a sua queda.
Permanece, assim, em aberto, a solução de um governo minoritário (PS), com acordos pontuais em matérias que necessitem de maiorias qualificadas. No limite, bastará que os partidos de esquerda se abstenham nas votações, para que as propostas governamentais passem no parlamento, já que o PS sózinho tem mais votos do que a direita toda junta...
Dos três novos partidos, o "Livre" é o mais antigo e aquele que apresenta melhores pergaminhos. Rui Tavares, o seu fundador, foi deputado europeu entre 2009 e 2014 e só por uma "unha negra" não entrou para o Parlamento em 2015. A "Iniciativa Liberal", é um partido de cariz neo-liberal, apoiado pelo jornal "Observador", pelo "Compromisso Portugal" e pelo grupo "5.7", um "thinktank" criado pelo deputado M. Morgado (PSD). No fundo, uma tentativa de criar algo sem tradições no panorama político português, um partido de cariz liberal "puro e duro", que não disfarça os seus tiques de "capitalismo selvagem", bem mais próximo do "Chega" (xenófobo e racista) do que muitos pensarão. Será à sua volta, que a direita mais extrema irá reconstruir-se, agora que o dinheiro parece não faltar  e os contactos com Steve Bannon (o guru de Trump) já existem, como os seus líderes admitiram.
Uma última palavra para a abstenção (45%), a maior de sempre em eleições legislativas, uma velha pecha, ainda que, pela primeira vez, os emigrantes tenham sido recenseados automaticamente, o que contribui para mais votos em números absolutos.
Seguem-se, agora, as audiências com o PR e as conversações habituais entre partidos, que ajudarão a perceber qual o modelo de governo que se seguirá: minoritário, em coligação ou apoiado por outros partidos. Costa tem a "faca e o queijo" na mão.       

2019/10/03

Eleições: até ao lavar dos cestos...

A campanha eleitoral entrou na recta final.
Ainda que poucas surpresas sejam esperadas nestes últimos dias, não deixam de espantar os resultados da mais recente sondagem, feita pelo Centro de Estudos e Sondagens de Opinião da UCP para o Público/RTP onde, pela primeira vez, o PSD surge com uma votação acima dos 30% e o PS com uma votação abaixo dos 40% o que, a verificar-se, inviabilizará a maioria absoluta desejada pelos socialistas.
Dada a relativa fiabilidade das sondagens da Cesop, é de admitir que, no próximo domingo, não fiquemos muito longe destes resultados. Ainda segundo a mesma sondagem, os restantes partidos do hemiciclo (BE, CDU, CDS e PAN) terão, sensivelmente, a mesma percentagem de votos, com excepção do PAN que, tudo indica, será o único partido a crescer. A dúvida reside, agora, nos pequenos partidos, dos quais dois (Iniciativa Liberal e Livre) podem eleger o seu primeiro deputado, dada a dispersão de votos nos círculos de maior densidade populacional.
Porque é que o PSD, que chegou a ter percentagens de 20% nas sondagens, surge nesta última projecção como o partido que mais aumenta a sua votação?
Dois acontecimentos, podem ajudar a explicar este "súbito" aumento nas intenções de voto dos sociais-democratas: os debates televisivos, onde a prestação de Rui Rio foi francamente melhor do que vinha fazendo nos comícios; e a entrada do "caso Tancos" na campanha, por via da acusação do MP, tornada pública na passada semana.
As boas prestações de Rio (nos debates com Costa) e as acusações do MP contra membros do governo PS (no caso de Tancos) parecem ter dado novo alento e "cartuchos" à oposição que, depois de uma campanha morna, viu aqui a sua última oportunidade para tentar inverter a situação. Essa foi, de resto, a razão porque Rio alterou o seu discurso de não-ingerência em casos de justiça e exigiu uma reunião urgente da Comissão Parlamentar de Líderes, com vista a discutir o "caso Tancos", antes das eleições (!?). Como era de esperar, a sugestão não colheu junto do presidente da Assembleia, que agendou a discussão para a semana a seguir às eleições.    
Dadas as circunstâncias, não é certo que a tendência, apontada em todas as sondagens (vitória dos partidos de esquerda e derrota dos partidos de direita) se altere nos últimos dias. Duas coisas, no entanto, o PSD parece ter conseguido: fugir a uma derrota clamorosa e dessa forma poupar Rui Rio a uma resignação precoce, num partido em clara crise de identidade, onde a direita tradicional e a direita neoliberal, têm dificuldade em cohabitar; e impedir que o PS alcance uma maioria absoluta, o que poderá abrir espaço a negociações futuras, entre os dois maiores partidos.
Perante este cenário, resta saber qual será a posição do PS, após a mais que provável vitória sem maioria absoluta. Três hipóteses: governar em minoria, estabelecendo acordos pontuais no Parlamento com outras forças políticas; governar em coligação com o partido mais votado à sua esquerda (BE); governar em coligação com mais partidos, numa reedição da "geringonça", ainda que com outros pressupostos. Curiosamente, ou talvez não, a maioria dos entrevistados pela Cesop (37%) declarou-se favorável à reedição de uma coligação com um ou mais partidos à esquerda do PS (Geringonça 2). Percebe-se: depois dos 4 anos de austeridade (2011-2015) devido às medidas aplicadas pela coligação de direita (PSD/CDS), a maioria dos votantes não quer regressar aos "anos de chumbo" da Troika. Com todas as suas condicionantes, avanços e recuos, os anos do governo PS, apoiados pelo BE e pela CDU (2015-2019), foram indubitavelmente melhores para a maioria da população, em termos de direitos sociais, poder de compra e avanços significativos em áreas tão importantes como as reformas e pensões, o emprego, os manuais escolares gratuitos ou os passes sociais...
Uma última palavra para os debates durante a campanha, onde a economia e as finanças, continuaram a ser os temas dominantes.  Como bem assinalou Raquel Varela ("Público" de 30 de Setembro), desde a dívida pública ao turismo, há temas que nenhum político discute. Mas, há mais: a questão climática, a dívida "odiosa" (parte substancial da dívida soberana portuguesa), a banca portuguesa, as ruinosas PPPs, a TAP, o CTT, as dívidas impagáveis do Metro, as consequências do turismo "low cost" nas cidades, a crise habitacional em Lisboa e no Porto, o racismo e o populismo crescentes. Esperemos que o futuro governo ouse fazê-lo e, mais importante, que tome medidas concretas, com vista a abolir de vez com a miséria insuportável de mais de 20% da população portuguesa, obrigada a viver com um rendimento médio de 482euros mensais.
Porque até ao "lavar dos cestos é vindima", reservamos os nossos prognósticos para o fim, na certeza de que só votando podemos influenciar o jogo...

2019/09/16

Bom Cinema na Rentrée


Já se chamou Salão Ideal, Cinema Ideal, Cine Camões e Cine-Paraíso. É a sala de cinema mais antiga de Lisboa (1904) e está situada na Rua do Loreto, ao Camões. Após o 25 de Abril, chegou a exibir filmes pornográficos e, depois desse período, fechou por tempo indeterminado. Em 2014, graças à iniciativa da Midas Filmes (uma distribuidora e exibidora de filmes independentes), reabriu totalmente renovado, tornando-se o melhor cinema de Arte (a par do Nimas) da cidade. Da programação do novo Ideal, destaque para o cinema independente, para o cinema português e para filmes clássicos, em cópias restauradas. Dispõe ainda de uma óptima videoteca, com filmes distribuidos pela Midas, uma tentação para cinéfilos endinheirados.
Nesta nova temporada, as expectativas não foram defraudadas e a programação tem excedido as melhoras expectativas. Depois de "Os olhos de Orson Welles" (2018), um bióptico da autoria de Mark Cousins, historiador e cineasta (autor de uma das melhores histórias de cinema que conhecemos), tivemos a reposição do épico "Ran" (1985) de Akira Kurosawa, agora em cópia restaurada e o aguardado "Once upon a time in...Hollywood" (2019), o último "opus" de Quentin Tarantino.
Mal recuperados da "rentrée", eis-nos perante um novo dilema. Que filme ver, dos três actualmente em exibição: "Vem e Vê" do russo Elem Klimov (1985) em cópia restaurada, "Santiago, Itália" (2018) de Nanni Moretti, "Dôr e Glória" (2019) de Pedro Almodóvar?
Dado já conhecermos o último Almodóvar, de uma sessão em Sevilha, optámos por dois filmes em sessões contínuas, respectivamente o filme russo (prémio do Festival de Tróia de 1985) e pelo último Moretti.
Ainda que versem realidades diferentes - a resistência contra a invasão nazi na Bielorussia e o acolhimento de refugiados chilenos pela Itália, durante a ditadura de Pinochet - a pertinência da luta contra o fascismo ganha, desta forma, nova actualidade. 
"Vem e Vê", é o último filme realizado pelo russo Elem Klimov (1933-2003), que chegou a primeiro-secretário da União dos Cineastas Soviéticos, durante o período da Perestroika. O filme, que ganhou o Festival de Moscovo desse ano, é já considerado um dos grandes filmes de guerra de sempre. "É um dos mais brutais, alucinantes e desencantados filmes de guerra jamais realizados, inspirado directamente na resistência bielorussa às tropas alemãs em 1943 e no massacre de 628 aldeias ao abrigo da política nazi do "espaço vital" com que Hitler queria conquistar o Leste", escreveu sobre o filme o crítico Jorge Mourinha (Ipsilon). Através dos olhos de Florya, um jovem de 15 anos, incorporado à força no exército para combater as tropas nazis, o espectador segue as peripécias de um contigente de resistentes bielorussos, durante alguns dias em 1943, quando a Grande Guerra Patriótica ainda estava longe do fim. Imagens devastadoras, filmado a partir da experiência pessoal da família do realizador, ainda que sem o glamour dos grandes filmes do género que haviam de seguir-se (Deer Hunter, Apocalypse Now, The Thin Red Line...). Imperdível.
O último filme de Moretti é, simultaneamente, uma homenagem ao governo de Allende e à Itália dos anos setenta, que acolheu nas instalações da sua embaixada em Santiago mais de 250 chilenos que ali procuraram asilo e protecção. Através de sensíveis, mas divertidas, entrevistas a alguns dos intervenientes desta saga, como o embaixador italiano à época, o realizador Patrício Gutzman ("A Batalha do Chile", "Salvador Allende", "Nostalgia da Luz") e Horácio Salinas, fundador e líder do grupo "Inti-Illimani", Moretti força o contraditório com dois esbirros de Pinochet, actualmente presos, que continuam a defender a sua inocência. Grande parte destes chilenos, voltaram ao Chile, após anos de exílio. Alguns permaneceram e ainda hoje continuam a viver em Itália, um dos países que melhor recebeu estes exilados. Quando a solidariedade europeia para com os refugiados não era uma palavra vã e a Itália podia orgulhar-se dos seus governantes. Esta é, provavelmente, a crítica implícita de Moretti ao governo de Salvini.
Resumindo, dois grandes filmes, que na realidade são três, já que o último Almodóvar é considerado o seu melhor filme em anos e (pasme-se!) até Antonio Banderas tem uma grande interpretação, que lhe valeu o prémio do melhor actor no último Festival de Cannes.  
 


   

2019/09/11

Brasil: a deriva autoritária

Carlos Bolsonaro, filho do actual presidente brasileiro e vereador pelo PSC-RJ, escreveu no twitter que, por vias democráticas, não haverá as mudanças desejadas no país "na velocidade que almejamos...e se isso acontecer". Para acrescentar: "Só vejo todo o dia a roda girando em torno do próprio eixo e os que sempre nos dominam, continuam nos dominando de jeitos diferentes!".
Resta saber a quem se dirigia, já que os que sempre dominaram o Brasil, continuam no poder.
Era previsível.
Depois de tantos "tiros no pé", por manifesta incompetência e impreparação para os cargos, a "famiglia" Bolsonaro, cada vez mais isolada a nível nacional e internacional, ensaia uma "fuga em frente", que poderá passar por uma "democracia musculada" (eufemismo para ditadura militar).
Acontece que o actual governo é, ele mesmo, o representante das forças mais retógradas da sociedade brasileira: as seitas evangélicas, os ruralistas e os militares. Estes últimos, que têm andado "caladinhos", quando interrogados sobre as suas pretensões, dizem sempre (declarações do vice-presidente Mourão ao "Expresso" e à SIC, no Estoril), que o actual exército brasileiro não é "golpista" e que respeita a constituição. À cautela, Bolsonaro nomeou 8 (oito!) militares para o seu governo (1/3 dos ministérios!), seguindo o velho princípio "se não podes vencê-los, junta-te a eles". Até agora, os militares têm respeitado as "regras do jogo". Resta saber, até quando? Entretanto, do seu exílio em Miami, Olavo Carvalho, o guru da extrema-direita brasileira, vai avisando que "ou governo melhora a sua "performance", ou os militares poderão ter de intervir"...
Uma das teses em presença é, precisamente, a que diz que serão os militares a acabar com a influência da "famiglia" Bolsonaro e não o contrário.
Em qualquer dos cenários, o futuro do Brasil, a curto prazo, parece mais sombrio que nunca.
Resta saber o que pensa e faz a oposição, que parece algo "anestesiada", depois da prisão de Lula e da derrota nas últimas eleições...
 

2019/08/26

Pela boca morre o peixe...


A seis semanas das eleições - e a menos que algo de muito imprevisível aconteça - os dados parecem estar lançados. Vitória folgada do PS, perda significativa de votos à direita (PSD, CDS) e crescimento do BE e do PAN. A CDU deve manter-se nos níveis habituais, enquanto os pequenos partidos (Livre, Aliança, Basta e PDR), devido à dispersão de votos, dificilmente conseguirão eleger deputados.
Depois de quatro anos de "geringonça", o balanço é positivo e os (3) partidos, que apoiaram este modelo de governação, serão recompensados por isso: melhoria económica dos grupos mais desfavorecidos  (salários, reformas e pensões, passes sociais, etc.); crescimento acima da média europeia (1,8%); redução da dívida pública (122% do PIB); redução do déficit (0,2%); redução do desemprego (6,5%); aumento de exportações e turismo (22 milhões visitantes/ano) e "contas certas" em Bruxelas, um argumento de peso na nomeação de Centeno para a presidência do Eurogrupo.
Nem tudo são "rosas socialistas", no entanto: Portugal continua a ser um dos países mais desiguais da União Europeia, com 25% da população (2 milhões!) a viver no limiar da pobreza (482 €/mês); o Serviço Nacional de Saúde, exemplar nos seus propósitos, continua com lacunas imperdoáveis, ao nível de um país subdesenvolvido; a educação, continua com os problemas estruturais herdados do passado (colocação de professores, pessoal auxiliar...); a habitação nas grandes cidades (devido ao "boom" turístico e a especulação imobiliária) tornou-se proibitiva para quem queira alugar ou comprar casa; os transportes, nomeadamente ferroviários, são antiquados e deixaram de ser operacionais em muitas zonas do pais, etc...
Ou seja, podemos olhar para os quatro anos da "geringonça", do ponto de vista do "copo cheio" (discurso do governo) ou do "copo vazio" (discurso do cidadão).
A avaliar pelas sondagens da opinião pública, a maioria dos inquiridos (que não a maioria da população), parece ter gostado desta experiência partilhada (PS, apoiado pelo BE e pelo PCP), ainda que o programa governamental fosse o do Partido Socialista.
Mas essa não parece ser a opinião no interior dos principais partidos do leque governativo (vulgo bloco central) em relação ao futuro. No PS, confortável numa vitória, que lhe permitirá negociar com a esquerda e com a direita, pede-se maioria absoluta, para ficar de "mãos livres" nos acordos difíceis de cumprir. Na direita, conformada com uma derrota anunciada, os principais partidos e confederações patronais preferem um PS de maioria absoluta, que limitaria a influência do BE e do PCP, nas exigências laborais e nas lutas sindicais. Percebe-se. Basta seguir com atenção as opiniões de grupos como a "Tertúlia" (20 personalidades do mundo político e financeiro português), "Compromisso Portugal" (António Carrapatoso) "Movimento 5.7" (Miguel Morgado), "Observador" ou a Confederação dos Patrões (CIP), para confirmar que afinam todos pelo mesmo diapasão: tudo menos o BE e o PCP no governo.
E é aqui que entram as recentes declarações de António Costa, ao jornal "Expresso", que tanta celeuma têm provocado. Na sua (indisfarçável) arrogância de vencedor antecipado, Costa cometeu um erro que lhe pode ser fatal. Não em relação à vitória em si, mas em relação a um dos parceiros (neste caso o BE) que lhe permitiu obter os resultados positivos que ele hoje pode apresentar. Dito de outra forma, sem o apoio dos partidos à sua esquerda (BE e PCP), o PS nunca teria conseguido aprovar quatro orçamentos e, muito menos, governar. Mais, muito provavelmente, nem o próprio Costa teria sido primeiro-ministro, uma vez que não ganhou as últimas eleições, como todos sabemos. Mais, na melhor das hipóteses teria sido remetido para líder da oposição e, quem sabe, hoje já nem secretário-geral do seu partido seria...
Resta saber porque é que Costa (um político experiente) fez tais declarações e logo numa longa entrevista ao Expresso e à SIC, baluartes do império de comunicação Balsemão e referências jornalísticas de uma certa classe média portuguesa?
Há, nas declarações de Costa (não por acaso, puxadas para o título da entrevista) duas mensagens subliminares: não conta com o BE para formar governo (não haverá "geringonça 2"); tenta sossegar a direita, ao abrir a hipótese de governar em maioria relativa (o que lhe permitirá fazer acordos com o PSD, por exemplo).
Ou seja, procura "recentrar-se", pensando desta forma conquistar alguns votos mais, que lhe permitam alcançar a mítica maioria absoluta.
Acontece que, como no xadrez, o "salto de cavalo", pode revelar-se extemporâneo. O que, inicialmente, parecia um jogada de mestre, revela-se um movimento em falso. Ou, mais prosaicamente, um "tiro no pé".
Costa e os seus "spindoctors", ainda não perceberam que o (relativo) sucesso e popularidade deste governo, se devem às medidas de esquerda que tomaram. Tímidas e insuficientes, é certo, mas fundamentais para a reconquista da confiança perdida, após quatro anos de Troika. Ou seja, só quando o PS fez uma politica de esquerda, conseguiu o apoio dos portugueses. Mas a montante estava o apoio dos partidos que permitiram este governo.
Ignorar estas coisas simples, é não perceber a razão que levou ao colapso dos partido sociais-democratas da chamada 3ª via. A "pasokização" dos PS europeus está aí, para comprová-lo.
A arrogância, sempre foi uma característica do poder. Quando ele é absoluto pode corromper absolutamente. Mas da mesma forma que quanto mais alto se sobe, maior é a queda, também os peixes (mesmo os graúdos) morrem pela boca.

2019/08/23

Brasil, um país à deriva

A núvem de fumo, que cobriu esta semana a cidade de S. Paulo, provocada pelos incêndios da floresta amazónica a 3000km de distância, é a metáfora perfeita para um país mergulhado na escuridão. De acordo com os dados disponibilizados pelo Inep (Instituto Nacional de Pesquisas Nacionais), que monotoriza o fenómeno , os fogos deste ano correspondem ao maior flagelo registrado nos últimos cinco anos.
Os números não mentem: o fumo do incêndio da Amazónia pode ver-se do espaço. Entre os estados atingidos, Mato Grosso é o campeão, com 13682 focos de incêndio, num total de 72843 no país inteiro, entre Janeiro e Agosto, um aumento de 87% face ao mesmo período do ano passado, segundo o Inep.  Em segundo lugar, está o Pará com 7975. A situação tornou-se tão grave que o estado do Amazonas, com mais de sete mil focos de incêndio, decretou situação de emergência na região Sul e na região metropolitana de Manaus. O governo de Acre decretou crise ambiental.
Perante o alarme, o presidente Bolsonaro, tentou arranjar um bode expiatório (as ONGS, que trabalham no terreno, descontentes por terem perdido apoios governamentais), o que não convenceu ninguém, conhecendo o trabalho que estas organizações fazem no terreno, onde são das mais activas na defesa e preservação do ambiente, como é do conhecimento geral. Mais tarde, admitiria que os causadores dos fogos poderiam ser os fazendeiros, que anualmente procedem a queimadas para desmatar a floresta e preparar os terrenos para o cultivo e agro-pecuária.
Contudo, o número e a velocidade com que surgiram, sugerem actos criminosos - as queimadas foram feitas para fazer desaparecer o que sobra do desmatamento.
De acordo com Vinícius Silgueiro, coordenador de geotecnologia do Instituto Centro Vida, sediado em Mato Grosso, já se detectaram em Colniza (um município de Mato Grosso) 1049 focos de incêndio. "Associamos sempre a queimada nesta época com o desmatamento e neste ano aumentou bastante. É bom para a especulação fundiária" (in "Público" d.d. 23/8/19).
De acordo com os dados fornecidos pelo Instituto, 60% das áreas do fogo ficam em áreas privadas cadastradas. 18% em áreas privadas sem cadastro, 16% em terras indígenas e 1% em área da conservação da natureza (ibidem).
Os números são assustadores: a destruição do Amazonas arrasta-se de ano para ano, muitas vezes de forma irreparável - o desmatamento aumentou 88% em Junho e 278% em Julho, segundo o Inep. Só nas última semanas, teria ardido uma superfície equivalente à da Alemanha. Se pensarmos que a área da Amazónia corresponde à superfície da Europa, podemos ter uma ideia do que um desastre ambiental naquela zona pode significar para todo o planeta.
As causas para esta tragédia brasileira (e planetária) são conhecidas e não podem ser ignoradas.
Elas radicam no governo de Bolsonaro, que tem apostado numa estratégia de desregulamentação e desprotecção do Amazonas, incentivando à exploração económica, seja mineira ou agrícola. Apoiados pelas palavras do presidente, que declarou querer transformar a Amazónia na "alma económica do Brasil", vários fazendeiros reuniram-se para declararem o "dia do fogo" a 10 de Agosto, quando iriam atear incêndios diversos. Sem controlo, atearam fogos em massa.
Só nesse dia, o Inep, registou um aumento de 300% de focos de incêndio, em Novo Progresso, no Pará, num total de 124 casos e, no dia seguinte, ainda mais: 203 casos. Em Altamira, no mesmo estado, foi ainda maior: 743%, um total de 194 focos no sábado e 237 no domingo.
Os causadores destes fogos agem impunemente, pois sabem estar protegidos pelo governo federal e actuam em território não controlado. Só em 2018, 23 ambientalistas foram assassinados no Brasil, transformando-o no quarto país mais perigoso do Mundo para estes activistas. Se recuarmos a 2002, já foram assassinados 653 ambientalistas no país (dados da Global Witness).
No entanto, nada disto nos devia surpreender. Ainda antes de ser eleito, e quando poucas pessoas acreditavam nas suas capacidades (o que se veio a confirmar) Bolsonaro disse logo ao que vinha. Negou as alterações climáticas, defendeu a transformação da Amazónia, cortou nos orçamentos das instituições ambientais  - 38,4% das verbas para prevenção e controlo de incêndios florestais - e contestou os dados oficiais que falavam no aumento da deflorestação de 278% em Julho, exonerando de seguida o presidente do Inep, Ricardo Galvão.            
Quando chegou ao governo, a maioria dos analistas vaticinou-lhe uma curta vida política. Havia três vias possíveis: pôr em prática as suas ideias (fascistas), o que poderia isolar o Brasil na cena internacional; navegar "à bolina", governando de acordo com os problemas que fossem surgindo; ou apoiar-se nas bancadas ruralistas, evangelistas e nos militares que o apoiaram. Todos este grupos estão, hoje, representados no governo, constituido por 1/3 de militares.
A chamada "bancada ruralista" (a do agro-negócio) é um dos sustentáculos da presidência do Congresso e o Presidente tem retribuido o apoio. Mas, há perigos. Diversas organizações do sector, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária e agrónomos diversos, avisam que, se a destruição da Amazónia continuar a este ritmo, o agro-negócio definhará com ela.  O desmatamento alterará a duração das épocas de chuva e o tempo brando e seco que se lhe segue prejudicará as colheitas. Em caso de desmatamento prolongado, os terrenos deixarão de ser húmidos e a regeneração da floresta pode nunca mais se verificar.    
Nem tudo é mau, no entanto: a Alemanha e a Noruega, congelaram o apoio (70 milhões de euros a fundo perdido) dado ao Brasil para a conservação da Amazónia; a Finlândia apelou ao boicote activo em toda a UE da carne brasileira; o presidente Macron conseguiu agendar a Amazónia, para a próxima reunião do G7, a realizar este fim-de-semana; publicações de referência (The Economist, The Guardian, The New York Times, The Independent, Le Monde...) dedicam esta semana as suas capas e extensos artigos aos fogos da Amazónia e as redes sociais nunca estiveram tão activas e mobilizadas por uma causa. Amanhã, haverão manifestações nas principais cidades europeias, em defesa da Amazónia e, no Brasil, a mobilização não é menor.
No fundo, se a questão da Amazónia, tiver o condão de condenar e correr com Bolsonaro e o seu governo de corruptos fascistas, nem tudo se perderá e o Mundo ficará, certamente, menos poluído. Também porque não há planeta B.

2019/08/16

Matérias Perigosas

A greve dos motoristas, que dura há cinco dias, parece ter entrado numa fase crítica.
Depois de um período alarmista, ampliado pela Comunicação Social, o governo aumentou os níveis esta semana, exigindo "serviços mínimos" e ameaçando com "requisição civil", todos os motoristas que se recusassem cumpri-los. Aparentemente, saíu-se bem.  A distribuição da gasolina foi-se efectuando sem grandes problemas, ainda que com apoio de militares e da GNR.  No primeiro dia da greve, 12 de Agosto, percorri a A23 entre Vilar Formoso e Torres Novas e a A1, entre Torres e Lisboa (mais de 400 km) e, no Fundão, onde meti gasolina, não havia qualquer carro em fila de espera na estação de combustíveis. Máximo permitido: 15 litros. So far so good.
Não consta que qualquer hospital, serviços de protecção civil, bombeiros ou aeroportos, tivessem falta de gasolina. À excepção do Algarve, onde a distribuição ainda é deficiente (também devido à população flutuante que, nesta altura do ano, aumenta exponencialmente), o nível de incumprimento situava-se nos 30%. No balanço provisório, diariamente feito pelo ministro do ambiente, este disse (ao 5º dia) que tudo estava a decorrer normalmente.
Entretanto, na comunicação social, nos fora e nas redes sociais, as opiniões, umas mais incendiárias que outras, surgiram em catadupa. De um modo geral todos - governo, oposição, patrões, motoristas, partidos políticos, sindicatos, jornalistas, comentadores - começam as suas intervenções por declarar que "a greve é um direito constitucional que assiste aos trabalhadores" para, depois, com maiores ou menores "nuances", acrescentarem: "mas, esta greve, é diferente e prejudica a população em geral". Os mais elaborados, chegam a afirmar que esta greve é de extrema-direita e serve interesses obscuros, quiça orquestrada por Steve Bannon (!?), o alter-ego de Trump que, a partir de Itália, se prepara para pôr a Europa a ferro e fogo. Quem sabe... Não devemos descartar nenhuma hipótese e, nos tempos que correm, uma greve, para mais de camionistas (lembram-se do Chile...) pode fazer cair um governo. Em véspera de eleições, este seria o momento ideal para destabilizar o PS, que vai à frente nas intenções de voto, pensam os arquitectos da conspiração. Logo, há que "parar o país", forma clássica de causar confusão e culpar o governo por tudo o que correr mal.
Acontece que o governo, que esteve bem até agora, não conseguiu parar a greve. O sindicato dos motoristas de matérias perigosas recusa-se suspendê-la e a organização patronal, a Antram, recusa-se negociar com o sindicato, enquanto este mantiver a greve. São cerca de 800 motoristas mobilizados, que fazem parte de um pequeno sindicato, criado em 2018. Das suas exigências, constam o aumento progressivo do ordenado-base (actualmente fixado em 630 euros), que passaria a integrar alguns dos subsídios pagos por fora (que não contam para o IRS) assim como a diminuição de horas-extra que, de acordo com o actual contrato colectivo de trabalho, podem chegar às 60 horas semanais. Ou seja, os motoristas de matérias perigosas exigem um ordenado líquido tributável de 900euros, ao longo dos próximos três anos, e menos horas de trabalho efectivo, o que faria disparar o ordenado ilíquido para cerca de 1500euros, exigências recusadas pela Antram.
Posto isto e porque as partes não negoceiam, a greve pode prolongar-se e, nesse caso, a rutura de "stocks" acontecerá mais cedo ou mais tarde, o que pode inverter a situação, actualmente favorável ao governo, cuja actuação tem sido elogiada pela maioria da população. É aqui que estamos e por isso esta fase é crítica.
Entretanto, os motoristas continuam a trabalhar oito horas por dia, o que lhes garante um vencimento-base, ainda que as horas cumpridas (serviços mínimos) não cheguem para assegurar as necessidades de distribuição. Ou seja, só cumprindo 11 ou 12 horas diárias, o conseguiriam fazer, com todos os riscos inerentes.
Dito de outra forma: o patronato paga parte do ordenado por "debaixo da mesa" aos motoristas, fugindo dessa forma à Segurança Social e ao Fisco e a Autoridade Tributária (que conhece a situação) nada faz para recuperar impostos que ascendem a 300 milhões de euros, de acordo com os cálculos publicados por estes dias. Grande negócio, que o governo (Finanças) ignora olimpicamente. 
Independentemente do que possamos pensar sobre as "intenções" desta greve (que alguns lamentam pelos inconvenientes provocados), a verdade é que não são conhecidas greves sem efeitos secundários, ou que não perturbem a produção. Esse é o seu fim último. Sempre foi assim e esta greve não é excepção. O que está mal, mas muito boa gente parece não querer ver, são as condições de trabalho e salário existentes que, de há muito tempo a esta parte, são praticados no sector. O governo é cumplice desta situação e a sua posição neste conflito, claramente ao lado da Antram, só confirma o lado que escolheu.

2019/08/14

A "salto" por terras beirãs


Vieram do país e do estrangeiro, ainda que todos tenham estado exilados por recusarem o fascismo e a guerra colonial. Eram cerca de setenta, entre homens e mulheres, irmanados na mesma causa: a evocação da passagem a "salto", pela fronteira mais emblemática de Portugal, nos anos em que a península ibérica era governada por ditaduras.
O encontro, denominado "Jornadas sócio-culturais da AEP61-74", decorreu nos dias 10 e 11 de Agosto em Vilar Formoso, foi organizado pela Associação de (ex)Exilados Políticos e teve o apoio da Câmara Municipal de Almeida, da Junta de Freguesia de Vilar Formoso e do Ayuntamento de Fuentes de Oñoro.
Do programa, no primeiro dia, destaque para uma entrevista colectiva à Rádio Fronteira, que dedicou parte substancial da sua emissão ao evento; o filme "O Trilho do Poço Velho", de Luís Godinho, sobre a experiência de exilados que passaram a "salto" por esta fronteira; um debate, que contou com a presença dos historiadores Irene Pimentel e José Pacheco Pereira e da ex-deputada europeia Ana Gomes, que abordaram a problemática dos refugiados de então, quando comparada com a actual situação na Europa; os cantores Manuel Freire e Tino Flores, que preencheram a parte lúdica do evento com poemas e canções; e uma visita ao Museu da Paz/Aristides de Sousa Mendes, sobre os refugiados judeus da 2ª guerra mundial, instalado na antiga estação de combóios da vila.
O segundo dia, seria dedicado a percorrer parte do antigo "trilho", que atravessava a fronteira luso-espanhola e ao descerrar de uma placa evocativa da passagem a "salto", efectuada por milhares de jovens portugueses, que recusaram a guerra, optando pelo exílio.
Uma justa, ainda que tardia homenagem, a todos aqueles que, de alguma forma, contribuiram para a denúncia e recusa de uma ditadura ignóbil, que governou Portugal durante 48 anos. Para que a memória, não se apague.

2019/08/01

José Afonso: nos 90 anos do seu nascimento


Se fosse vivo, José Afonso faria hoje 90 anos.
Se outra razão não houvesse, a efeméride serviria para lembrar o genial compositor, cujo legado constitui, de há muito, uma obra incontornável do património artístico e cultural português.
Assim o entendem os milhares de subscritores da petição, hoje entregue ao governo, para que este reconheça e classifique, a obra do cantor, Património Cultural de Portugal. Uma iniciativa da Associação José Afonso (AJA) sediada em Setúbal que, em menos de um mês, reuniu 11500 assinaturas para este fim. Um passo mais, no reconhecimento do homem e da sua obra, agora que a figura parece ter conseguido um consenso que nunca obteve em vida. São assim, os clássicos. A qualidade sobrevive ao passar do tempo. A sua intemporalidade será sempre o melhor critério para avaliá-la.
Também por isso, torna-se urgente a reedição da obra discográfica de José Afonso, hoje dispersa por diversas editoras e cujas edições continuam (parcialmente) esgotadas. Uma lacuna difícil de explicar, não fora vivermos em Portugal, um país que não prima pelo reconhecimento dos seus melhores e onde a mentalidade reinante complica o óbvio.
A falta de albuns originais, contudo, não tem impedido admiradores e intérpretes, de recriarem uma obra que, de tão prolífera, continua a gerar versões onde a genialidade das composições é uma constante. Escolhemos um exemplo, ao acaso, porventura menos conhecido do grande público, a canção "Benditos ", que fala por si. Afinal, esta é a melhor forma de evocar José Afonso. Enquanto a sua a obra for divulgada, podemos estar seguros de que não desaparecerá.     
Muito continua a acontecer, portanto. Desde logo, este fim-semana, um pouco por todo o país, onde estão programadas sessões evocativas da efeméride, organizadas pelos núcleos da AJA de Setúbal, Grândola, Almada, Porto, Aveiro e Tavira, que contarão com a participação de dezenas de intérpretes que desta forma se associam à data.
Em Lisboa, a sessão constará do lançamento do livro-disco "José Afonso (ao vivo)", constituida por um livro,  um LP e dois CDs, com gravações inéditas de dois concertos realizados em Coimbra (1968) e Carreço (1980), recentemente recuperadas e editadas pela Tradisom. A sessão contará com a presença de Adelino Gomes, autor do texto e José Moças, responsável pela edição. A parte musical será assegurada pelas cantoras Filipa Pais e Maria Anadon e pelo cantor Zeca Medeiros, que serão acompanhados por David Zaccaria (guitarra).
A sessão de Lisboa, tem lugar no próximo dia 3 de Agosto, pelas 16h. na sede da AJA, situada na Rua de São Bento, 170.
Lá estaremos.

2019/07/31

Criadores e Criaturas

Maus de Art Spiegelman
Que o Mundo pode ser um lugar perigoso, já sabíamos há muito tempo.
Provavelmente, desde que o homem é "sapiens" e iniciou a luta pelo seu território.
Com altos e baixos, a História foi-se fazendo, sempre de maneira diferente, mas nem por isso menos surpreendente, uma vez que a História (em princípio) não se repete. Ou melhor, como dizia o filósofo, repete-se, primeiro como tragédia, depois como farsa.
Tudo isto, a propósito da recente "onda" de ditadorzecos, uns exercendo o poder de facto e outros aspirando a tal, que têm surgido um pouco por todo o lado. O processo vem de trás, mas o "Brexit", a eleição de Trump e a ascensão dos populismos na Europa, são sinais inequívocos desta tendência regressiva. Juntem-se, a estes exemplos, a China de Xi Jinping, onde o poder é exercido com mão de ferro; a autocracia mal disfarçada de Putin; a democracia musculada de Erdogan; a demência de Duterte; ou o regime proto-fascista de Bolsonaro, para termos uma ideia do que pensam e fazem tais persongens.
Ainda que tenham características comuns, a verdade é que o poder de uns (Trump, Xi, Putin...) é incomensuravelmente maior do que outros, os quais representam um perigo regional, que não deve ser subestimado. Estão neste caso, Erdogan, Duterte, Maduro ou Bolsonaro.  
Como chegámos aqui?, é uma pergunta recorrente, feita pelos mais diversos analistas. As causas são várias, pois nem todos os países foram confrontados com o mesmo tipo de problemas que poderão estar na origem de tal fenómeno: dos efeitos da recente crise económico-financeira, ao terrorismo internacional, passando pela crise dos refugiados e emigrantes (ligada à islamofobia e ao racismo crescente), são múltiplas as explicações para o recrudescimento do autoritarismo, da xenofobia e da "supremacia branca", que existe em todos os regimes populistas mencionados.
Em artigo recente, Nuno Severiano Teixeira ensaia uma explicação para o ataque a que as democracias estão, actualmente, sujeitas: "Mas, sejam quais forem as razões, uma coisa é certa: a liberdade e a democracia estão sob assalto e globalmente em retrocesso. Mais: se olharmos para esse retrocesso, uma coisa parece evidente: a queda das democracias já não é o que era. Dantes, caíam de um só golpe, súbita e estrondosamente, à força de armas. Era o tempo dos golpes de Estado. Hoje, caem lenta e silenciosamente. Na verdade, não caem, vão caindo, à medida que os incumbentes usam os mecanismos democráticos para subverter a própria democracia - isto é, as democracias já não caem pelo método violento do derrube, mas sim pelo método incremental da erosão" (in "Público", d.d. 31.7.19).
Se dúvidas houvesse, bastava olhar para o que se passa nos Estados Unidos - portanto, uma democracia consolidada - onde o populista Trump faz diariamente discursos racistas e apelos à expulsão de congressistas de origem estrangeira (ele, cuja família é de origem escocesa!) entre ataques descabelados ao reverendo Al Shappton, por este ousar criticá-lo; ou, mais a Sul, o que se passa no Brasil - uma democracia desde 1985 - onde o mentecapo Bolsonaro protege garimpeiros que querem destruir o Amazonas e as comunidades índigenas, enquanto continua a negar a existência da ditadura militar, que governou o país durante 21 anos!
Porque as democracias não são todas iguais, diria que Trump (sendo mais perigoso) é mais controlável, devido ao sistema de "checks and balances" existente na democracia americana; Já Bolsonaro (um ex-militar ignaro e fascistóide) é suportado por uma bancada de evangélicos, ruralistas e militares, que detém a maioria num congresso, onde as leis são aprovadas através da compra de votos.  
Uma coisa é certa: todos estes personagens - criadores e criaturas - sairão de cena, mais cedo ou mais tarde. Quanto mais não seja, pela inevitabilidade da morte. Também, porque, aos períodos de autoritarismo, sempre sucedem períodos de democracia. Ninguém, em consciência (a menos que seja masoquista) deseja viver em ditadura. O apelo da liberdade, será sempre mais forte.  

2019/07/28

A "Época dos Fogos"


Como é da "tradição", voltaram os fogos de Verão. O fenómeno é de tal ordem, que alguém o baptizou de "época de fogos". Se já tínhamos a "quadra natalícia" e a "época balnear", porque não a "época dos fogos"? Desta forma, podemos sempre criar mais um "ritual de passagem" e anunciar lá fora: "Venha a Portugal no Verão: sol, praia e fogos, garantidos!". 
Os números não mentem. De acordo com o relatório "O Mediterrâneo Arde", apresentado este mês pela World Wildlife Fund" (WWF), as perspectivas para os países do Mediterrâneo Norte (Portugal incluído), são preocupantes. Já em finais de 2018, outro estudo, liderado por Marco Turco (universidade de Barcelona), apresentava projecções catastróficas: no melhor cenário, aquele em que a temperatura média do planeta aumentará 1,5ºC (limite estabelecido pelo Acordo de Paris sobre alterações climáticas) , o Mediterrâneo verá a sua área ardida aumentar em 40% até ao fim do século, sendo a Península Ibérica uma das zonas mais penalizadas. Caso o aquecimento chegue aos 3ºC, a destruição poderá atingir os 100%.
O relatório do WWF,  que incide sobre Portugal, Espanha, França, Itália, Grécia e Turquia, alerta ainda para o facto de termos entrado numa época de megaincêndios (de sexta geração), imprevisíveis, violentos, incontroláveis e letais. Fazem parte desta categoria, os grandes fogos de 2017 (Pedrogão e 15 de Outubro) e 2018 (Grécia). Este ano, devido às irregularidades climatéricas e um Verão relativamente fraco, os grandes fogos começaram mais tarde. No entanto, bastaram dois dias de incêndios violentos (Vila de Rei e Mação), para que os números disparassem. Num só fim-de-semana, arderam 8000 ha, metade da área ardida em todo o ano! Se esta é a realidade de Julho, o que podemos esperar dos dois meses que faltam, para terminar a "época dos fogos"?...
É verdade que não houve vítimas, como há dois anos (112 mortos), o que mostra algum avanço na forma de combater o fogo. A estratégia passou a ser "salvar vidas", em detrimento de casas e bens. Mas, conforme todos os especialistas apontam, muito há ainda por fazer nesta área, a começar pela prevenção, que leva tempo a implementar e sem a qual o combate ao fogo será sempre inglório.
O diagnóstico está feito e passa por acções conjuntas, a começar pelo ordenamento do território e respectivo cadastro, sem o qual é impossível gerir a floresta existente nos terrenos privados (90% do território). Estes, encontram-se ao abandono, seja por falta de meios humanos, seja por falta de meios materiais.
Há duas variáveis que Portugal (os respectivos governos) dificilmente poderão controlar: o aquecimento global e a desertificação do interior. Relativamente ao primeiro "item", só através de acções conjuntas a nível internacional (o Acordo de Paris é um bom exemplo) poderão ser tomadas medidas que defendam o planeta do anunciado aquecimento. No segundo caso, os incêndios não poderão ser evitados (haverá sempre fogos, durante todo o ano), mas poderão ser minorados, desde que a prevenção tenha um papel determinante. Uma das formas, será criando incentivos que ajudem os proprietários a limpar os terrenos e a entregar a madeira e mato recolhidos, em troca de benefícios que justifiquem a recolha sistemática da carga "combustível" existente, para que, dessa forma, esta possa ser transformado em biomassa. Se não houver contrapartidas, dificilmente os donos dos terrenos, investirão numa industria, da qual não colhem proveitos. Na melhor das hipóteses, plantam árvores (eucaliptos e pinheiros) de crescimento rápido, para obter algum rendimento, uma das razões que estarão na origem de muitos dos fogos das últimas décadas. Uns por negligência, outros por interesses obscuros, já que sabemos que só uma ínfima parte dos fogos são originados por causas naturais (trovoadas, etc...).
Desde a década de sessenta do século passado, que a migração para o litoral (e para o estrangeiro) é uma constante. Mais de 75% da população portuguesa vive hoje numa faixa litoral, compreendida entre Braga e Setúbal. Reverter este processo, tornou-se utópico, admitindo que algum governo o queira tentar. Resta, pois, uma gestão equilibrada e sustentável do território, que passa por uma estratégia de longo termo, se ainda queremos salvar algo. Olhando para os gestores da coisa pública actuais, tememos o pior. Não se vislumbram grandes metas e as soluções (temporais) encontradas, acabam por ser mais do mesmo...Voltamos sempre ao princípio, ancorados numa velha certeza: o da tradição, imutável, como convém. Assim, não vamos lá...

2019/07/21

Do Racismo Lusitano


Passaram duas semanas sobre o polémico artigo de M. Fátima Bonifácio (MFB), mas as ondas de choque provocadas continuam a fazer sentir-se diariamente nos jornais e nas redes sociais. Há textos de todas as matizes e para todos os gostos e, como alguém escreveu, a quantidade é tal que daria para uma tese de mestrado.
Ora, isso é bom, pois nada como uma salutar polémica, estejamos ou não de acordo com os argumentos apresentados pelos cronistas de serviço. Globalmente, podemos dividir as opiniões publicadas em dois grandes grupos: os que criticam abertamente as posições defendidas por MFB e os que, começando por criticar, acabam a defender a historiadora, alegando que o texto, pesem as suas incongruências, merece reflexão. No primeiro grupo, encontramos gente normalmente identificada com a esquerda política; no segundo, gente da chamada direita liberal. Nada de estranho, aqui também. O texto é fracturante e só podia desencadear reacções opostas.
Mas, afinal, o que escreveu a historiadora MFB, no seu texto "Podemos? Não, não podemos" (in "Público" d.d. 6 de Julho último)?
A propósito de uma notícia, publicada no mesmo jornal a 29 de Junho, com o título "O PS quer discriminação positiva para as minorias étnico-raciais", a cronista escreve: "Em causa estão sobretudo africanos e ciganos, independentemente de terem nascido em Portugal ou não. Estas minorias, excluídas da cidade e a sua suposta ou real marginalização constituem a prova de que Portugal "continua a ter um problema de racismo e xenofobia", independentemente do efeito - que de resto não sofremos - do drama dos refugiados, com o seu pico mais trágico em 2015".
Bonifácio, que é contra um sistema de "quotas", defendido pelo sociólogo e secretário-nacional do PS, Rui Pena Pires - que "lamenta a falta de diversidade no espaço público e vê com bons olhos uma iniciativa que ajude a resolver o problema da visibilidade dos africanos e dos ciganos nas instituições, a exemplo do que aconteceu com as mulheres" - pergunta retoricamente "se as quotas tinham impulsionado a emancipação e igualização dos direitos das mulheres, se lhes haviam aberto o espaço público, porque não aplicar a mesma receita às minorias étnicas?" Para logo prosseguir com estas "pérolas": "A comparação com a igualdade ou paridade de género é inteiramente falaciosa. As mulheres que, sem dúvida, têm nos últimos anos adquirido uma visibilidade sem paralelo com o passado, partilham, de um modo geral, as mesmas crenças religiosas e os mesmos valores morais: fazem parte de uma identidade civilizacional cultural e milenária que dá pelo nome de Cristandade. Ora isto não se aplica a africanos nem ciganos" (!?). Nem uns nem outros descendem dos Direitos Universais do Homem, decretados pela grande Revolução Francesa de 1789 (!?). Uns e outros possuem os seus códigos de honra, as suas crenças, cultos e liturgias próprias" (!?). E à frente: "Os ciganos, sobretudo, são inassimiláveis: organizados em famílias, clãs e tribos, conservam os mesmo hábitos de vida e os mesmo valores de quando eram nómadas. E mais, eles recusam terminantemente, a integração" (!?). Africanos e afro-descendentes também se auto-excluem, possivelmente de modo menos agressivo, da comunidade nacional. Odeiam ciganos. Constituem etnias inconciliáveis e, desta mútua aversão, já nasceram em bairros periféricos e em guetos que metem medo, batalhas campais só refreadas pela intervenção policial" (!?).        
O artigo prossegue no mesmo tom e seria fastidioso citá-lo todo. Para exemplo, deve bastar.
Perante as críticas que choveram dos mais diversos quadrantes, os "adeptos" da historiadora (a maioria agrupados no "Observador", "think tank" da "alt-right" lusitana) vieram a terreno tentar limitar os estragos.
José Manuel Fernandes, paladino liberal dos bons costumes, até começa bem: "as generalizações feitas por Bonifácio, são abusivas, caricatas, mesmo ofensivas", para refrear as críticas logo a seguir e escrever: "mas, há verdades no texto que não podemos ignorar"...
Rui Ramos, igualmente historiador, tenta pôr água na fervura: "(Bonifácio) não evitou alguns equívocos", mas nada do que ela escreveu faz da autora (se ele percebeu bem) uma racista e muito menos do seu artigo um manifesto racista. Isto porque, segundo Ramos, se retirarmos do texto de Bonifácio tudo o que é racista, abusivo, caricato e ofensivo, o texto não é racista...
Helena Matos, nem sequer perde tempo a distanciar-se do texto. Limita-se a reproduzir o que dizem nas periferias de Lisboa e Setúbal (as mesmas "fontes" que Bonifácio cita no seu artigo) e condena o "fatwa" contra Bonifácio. É bom recordar, que Helena Matos já se tinha indignado com o "fatwa" contra Mário Machado, o "skinhead" condenado a dez anos de prisão por, entre outros crimes, ter participado no assassinato do cabo-verdeano A. Monteiro, num 10 de Junho, em Lisboa.
No "Público", Vasco Pulido Valente, começa por explicar, num único argumento, porque é que MFB não é racista: "conheço a Fátima há quase 50 anos. Nunca dei porque ela fosse xenófoba ou racista". Logo, se VPV não deu por nada, é porque não existe...
João Miguel Tavares, cronista no mesmo jornal onde escreve a historiadora, começa por justificar a sua crítica, declarando que admira Bonifácio, mas não pode ignorar os termos do artigo. Diz ele: "Infelizmente, não gosto nem um bocadinho do artigo "Podemos? Não, não podemos", não reconheço nele a mulher que admiro, nem percebo como pode ser intelectualmente sustentado com tantas generalizações de cair o queixo - e que, sim (custa-me muito dizer isto), entram mesmo no campo do racismo (...) Pular da crítica a uma determinada cultura, para a crítica de todos os indivíduos que a integram, é um salto inaceitável" (in "Público" d.d. 9 de Julho).
Ou seja, apesar do tom racista do artigo (que defende explicitamente a exclusão das minorias africanas e ciganas, condenando-as a viver em guetos onde reproduzem o ciclo de pobreza e discriminação de que são alvo) os admiradores de Bonifácio não se detêm um momento para analisar as causas desta exclusão e, ainda menos, propõem uma solução para tentar integrar estes grupos minoritários. À excepção de epifenómenos, como o de Alfragide (onde jovens africanos foram espancados numa esquadra pelos polícias de turno) e do bairro Jamaica (que esteve na origem da manifestação de desagravo em Lisboa), o racismo continua a ser um tema "tabu" na sociedade portuguesa. Fomos colonialistas durante 500 anos e fizemos uma guerra colonial durante outros 13, mas continuamos embuídos do auto-justificativo pensamento "luso-tropicalista", como se o nosso racismo fosse diferente dos demais. É mentira, como este artigo de uma académica, que defende a ideologia da "supremacia branca", prova.
O tema entrou definitivamente na agenda política e é bom que assim seja, pois é a única forma de exercitar "fantasmas". Para já, deu alento a outros racistas envergonhados, que não esperaram para demonstrar aquilo que sempre os moveu: o ódio ao outro, o único ponto da sua pobre agenda política. Vão aparecer mais, não tenhamos ilusões. Afinal, Portugal não é uma "ilha" na Europa.