2011/09/29

As águas turvas de Portugal

Foi Saramago que, certamente angustiado com o raciocínio tortuoso de alguns políticos sobre o tema das privatizações, sugeriu que "se privatizasse a puta que os pariu!" Vem a propósito recordar aqui o desabafo do Nobel...
Há uma operação que este governo se prepara para executar que é possível que só vá suscitar o interesse e a atenção dos portugueses quando for tarde demais. Estou-me a referir ao anunciado projecto de privatização da Águas de Portugal.
Este é um, entre muitos, destes projectos assassinos que se preparam; mais um que vai contribuir para tornar o futuro dos nossos descendentes ainda mais miserável. Mas este, em particular, pelo valor elementar do "produto" e pela reflexão a que obriga, talvez até possa ajudar a perceber que tudo o que se passa no domínio das privatizações tem um só desígnio: apanhar os portugueses a dormir e aproveitar para lhes extrair o tutano, pessoal e vital.
Anteontem a ministra Assunção Cristas veio dizer, em tom ultrapassado de mestre sem escola, que a água é um recurso que "tem de ser devidamente valorizado. As pessoas têm de saber que a água custa dinheiro, a água não é para desperdiçar, a água é para ser usada com todo o cuidado e com toda a parcimónia." Vai daí, como os portugueses não sabem nada disto, vamos lá entregar o recurso valiosíssimo —com cuidado e parcimónia porque se trata de gestão da coisa pública— ao privado para ele lhe espremer, certamente sem parcimónia, o valor que tem.
Não fala a ministra em pôr cobro ao regabofe das "empresas municipais" criadas para fazer finalmente uma "gestão competente" de uma antiga e quase sempre bem exercida competência camarária, que súbita e inexplicavelmente se sumiu. Empresas que não servem para mais do que criar emprego adicional para uma data de boys, ou ir começando a ensaiar umas benesses experimentais a alguns privados. De todo este regabofe tem resultado a prestação de um serviço mais miserável e amiúde mais caro. Não fala a ministra na aplicação badalhoca da Lei da Água. Não fala a ministra em corrigir o problema escandaloso das perdas (diz-se que a atingir nalguns casos os 40%!) e outros problemas técnicos inadmissíveis, reveladores de total incompetência, que afectam a exploração racional deste recurso. Não fala a ministra em promover acções sérias de esclarecimento e educação das populações e dos consumidores institucionais para a necessidade do uso "parcimonioso" deste recurso. Não  fala a ministra em criar critérios rigorosos para taxar a água de forma justa. Uma coisa é gastar água a lavar o Rolls Royce ou a encher a piscina, outra coisa é gastar água na higiene básica diária ou a satisfazer a sede. Não fala a ministra em vigiar os próprios organismos públicos (certamente dos maiores consumidores deste recurso de uso parcimonioso...) que a desperdiçam de forma escandalosa e impune. É ver regas públicas ao meio-dia, no verão, é ver torneiras públicas a verter água durante dias, sem que ninguém ligue um boi ao assunto. Não fala a ministra em vigiar e castigar severamente os poluidores privados da agricultura, indústria e serviços que, de um só golpe, são capazes de dar cabo do tal recurso valioso de uma forma que nos levaria, a nós, simples mortais, séculos, a nós que apenas procuramos cozer umas batatas, o asseio básico ou saciar o diabo da sede!
Não! O que é preciso, para a populaça aprender, é aumentar o raio da água a mim ou a si, leitor do Face, que somos uns malvados, pecadores hidro-contumazes. E entregar tudo isto a privados, pois então, porque, claro está, os privados, cujo objectivo confesso é dar borlas ao pessoal, vão certamente fazer o seu trabalho cantando alegremente e prescindindo da sua mais-valia. Dê-se-lhe com o privado porque a  população é totalmente atrasada mental e não percebe que, se é possível gerir bem e fazer baixar os custos de gestão deste sector (e é disso que precisamos) com privados, essa gestão estaria muito melhor entregue aos organismos do Estado, que o podem fazer, pelo menos, igualmente bem (se lhes for ordenado que o façam...) e sem mais-valia nenhuma. É que o privado não tem o exclusivo da inteligência, como o público não tem o exclusivo da estupidez, como alguns ministros, pelo seu comportamento e pelas propostas que nos apresentam, nos levam muitas vezes a fazer crer...
A água, perdoem-me o cliché, é um bem tão básico, tão básico que nem damos por ele. Só quando falta. Há duas ideias, entretanto, que me deixam pior que estragado, mas que são repetidas até à exaustão, sem que aparentemente surja contraditório. Uma, é esta de que tudo é privatizável e a privatização tudo resolve. Há um problema? "Privatize-se" que ele fica logo resolvido. Outra ideia é esta de que gestão e critérios de gestão são faculdades só aribuídas a entes iluminados, crentes nas virtudes sagradas da economia de mercado. Mais ninguém é capaz de "gerir". As contas, leitor, as somas e subtracções, o deve e o haver, a procura do equilíbrio entre as receitas e os gastos, são artes superiores, apenas reservadas a mentes especiais, a quem tem para cima de 20 gravatas e guia um carro de alta cilindrada.
Uma e outra ideia só podem surgir da mente de imbecis, de indigentes intelectuais, ou de malfeitores. Não há outra possibilidade. Privatizar e gerir de forma privada este recurso tão, tão básico —parece-me, em resumo— é coisa que só pode pois passar pela cabeça de imbecis, indigentes intelectais ou malfeitores.
Não sou fundamentalista, se calhar até há coisas que podem ser exploradas pela iniciativa privada, com vantagens. Mas, a água?! Por este andar, os nossos filhos vão mesmo ter de pagar pelo ar que respiram.
Saramago tinha razão...


PS- Desde há algum tempo que corre uma petição para levar o assunto da privatização da água a referendo. Está aqui. Assine-a e divulgue-a, ela precisa do seu empurrão. É obrigatório levar este assunto a referendo! Tentativas de privatizar a água noutros países foram derrotadas. Espero que Portugal não fuja à regra.

Na terra do faz de conta

Cavaco - o Sr. Silva - deu mais uma entrevista à televisão. Deu, é como quem diz; pediu uma entrevista à TVI, pois, nestas coisas, um pedido do presidente é uma ordem.
Como é habitual, seguir-se-á o ritual das análises e comentários dos politólogos de serviço que, de resto, ontem mesmo iniciaram a interpretação das palavras explicitas e implicitas do entrevistado.
E o que disse Cavaco de importante? Pouco, como é habitual.
Uma crítica explícita à Sra. Merkel e à sua visão unilateral da Europa comunitária, uma crítica explícita às altas taxas de juro praticadas pelo BCE e o desejo implícito que o mesmo banco Europeu pudesse comprar as dívidas públicas de um país, de forma a evitar falências anunciadas como a Itália ou a Espanha.
De fora, como sempre, ficou a crítica aos desvarios da Jardim (Cavaco tem medo do líder madeirense), a crítica às dívidas acumuladas durante os governos antecendentes (do PS ao PSD), o "buraco" do BPN que todos temos de pagar (e que foi provocado pelos seus amigos mais chegados) ou uma visão internacional dos problemas que, de resto, duvidamos que tenha...
Tão pouco falou do acelerado empobrecimento da população portuguesa, que vai agravar-se em 2012 e, quando questionado sobre se não devia haver uma maior comparticipação dos mais ricos em tempo de crise (nomeadamente da banca), refugiou-se no legalismo hipócrita do modelo de contribuição fiscal aprovado pela AR em 1989, quando o PSD tinha a maioria...Ou seja, se a banca paga hoje menos contribuições do que um assalariado português médio, isso deve-se aos legisladores (leia-se deputados) que votaram este modelo no tempo em que o seu partido governava. Esclarecedor, o argumento de Cavaco Silva.
Mas, temos de ser coerentes: se o actual modelo de contribuição data de 1989, quando o partido do Sr. Silva tinha uma maioria absoluta na AR, este modelo não foi alterado quando o PS de Sócrates teve a maioria parlamentar entre 2005 e 2009. Logo, o modelo é aquele que os partidos do arco de governação (leia-se bloco central de interesses) escolheram para Portugal. Nisso, Cavaco Silva não é diferente dos presidentes que o antecederam.