2018/10/26

O DOCs é uma festa!

Entre documentários sobre a actualidade política e social e ensaios de criação livre, o DOCs mantém os critérios artísticos seguidos desde a primeira edição, já lá vão 16 anos. A diversidade temática, aliás, continua a ser uma das "linhas de força" da programação, o que mantém o festival vivo e abrangente e o seu grupo-alvo diversificado. Há muitos grupos-alvo, de resto, e isso é bom. No Festival podemos encontrar de tudo: estudantes das academias de cinema e das belas-artes, estudantes "tout-court", realizadores em início de carreira e realizadores consagrados, nacionais e estrangeiros, jornalistas ou, simplesmente, cinéfilos curiosos, como eu.
Esta semana, arriscámos filmes na secção "Riscos" (New Vision), onde são programados pequenos documentários sobre temas tão diversos, como as memórias (de lugares e episódios que nos marcam), a revolução (o que quer que isso seja) ou os desafios actuais (após as eleições americanas).
Escolhemos filmes de autores portugueses, para avaliar do estado da arte que se vai fazendo entre nós e pelos nomes programados. Da pedra mortuária em monumentos, aos sem-abrigo de Lisboa, passando pelos primeiros filmes-ensaio de artista plástico Ângelo de Sousa, as temáticas eram intrigantes e mereceram o visionamento.
Começamos por "A (Im)Permanência do Gesto" de Manuel Botelho, professor de artes plásticas que, aos 67 anos, fez o seu primeiro (e muito provavelmente último) filme. Belíssima reflexão sobre a memória, através de alguns dos mais emblemáticos monumentos funerários em pedra, existentes em mosteiros na região centro de Portugal, a partir de um texto do autor apresentado numa conferência do Museu de Arte Antiga. No filme, Botelho, mantendo o texto, refaz a sequência e o número de fotos, criando uma galeria admirável de imagens onde nos confronta com a imortalidade dos monumento fúnebres e, por extensão, da nossa própria mortalidade. Magnífico ensaio, que mereceu unânimes aplausos.
Outro autor, a quem nos "ligam" laços de cumplicidade de outros tempos e aventuras, é Rui Simões (Deus, Pátria e Autoridade), que apresentou no festival o seu último trabalho "Teus Olhos castanhos, de encantos tamanhos". Uma curta (23'), sobre Fernando Moedas, um sem-abrigo que o realizador acompanhou ao longo de anos e com quem fez amizade em encontros de convívio semanal. O intérprete acabaria por falecer durante as filmagens, mas este pequeno e comovente filme (feito com meios mínimos) é a prova de que o bom cinema não necessita de grandes meios.
Finalmente, as primeiras experiências em super-8, feitas por Ângelo de Sousa, artista plástico total que marcou as décadas de sessenta e setenta em Portugal.
No final, tempo para discussão com os autores presentes (Botelho e Simões) cujas obras, ainda que separadas por realidades distintas, nos remetem para a memória dos dias e do lugar dos humanos, na grande Humanidade.
Finalmente, duas obras sul-americanas, na Competição Internacional: "Maré" e "Miro, Las Huellas del Olvido", respectivamente da brasileira Amaranta César e da Argentina Franca Gonzalez, ambas presentes no festival.
O filme brasileiro, feito na região da Cachoeira (Bahia), conta-nos, em imagens de grande beleza estética, a história (ficcionada) de 3 gerações de mulheres que vivem da recolha de mariscos, que a maré lhes traz para o seu sustento. Entre a tradição e a mudança, a mais jovem escolhe o seu destino e parte, rumo à cidade e à emancipação. Filme curto (23'), quase sem diálogos, onde o significado da mensagem se sobrepõe ao texto. Num momento delicado para o Brasil, questões como a defesa da natureza e a emancipação feminina, ganham aqui nova actualidade. Não nos espantaria que o filme recebesse alguma nomeação.
"Miro", é mais um filme de memória, desta vez sobre os restos de uma cidade de colonos italianos, construída na região das Pampas, em finais do século XIX. A cidade seria destruída pelos seus habitantes, no início do século passado, após venda das terras a particulares. Com o auxílio de descendentes dos antigos moradores, habitantes da zona e arquivos dos caminhos de ferro argentinos, a autora fez um trabalho quase arqueológico, onde através de belíssimas imagens (a fotografia é, aqui, fundamental) nos leva imaginar, como teria sido a vida em Miro há cem anos atrás.
Um belo filme, na tradição do bom cinema argentino.       

2018/10/23

O eterno retorno do fascismo (5)


O fascismo cavalga sempre a ignorância. A ignorância e o medo.
As desigualdades sociais, a religião, a criminalidade e a corrupção, explicam o resto.
Num país de "castas", que dois séculos de independência não aboliram e onde o patrocinato e o clientelismo são regra, a corrupção é transversal e tornou-se um "modo de vida".
Não é de espantar esta reacção, contra elites e governantes corruptos que, não só não resolveram os problemas mais urgentes da população como, em muitos casos, os agravaram. Obviamente que a culpa não foi só do PT. Mas, agora, ninguém quer saber disso...
O apelo ao "homem forte" é uma constante da História em tempos de crise moral e social. Nomeadamente, em sociedades onde o estado é fraco. Onde o estado é fraco, a criminalidade aumenta (lei sociológica).
Sem esperança de dias melhores, numa sociedade com índices de criminalidade que rondam os 60000 homicídios/ano, os brasileiros querem "segurança" que - pensam eles - só um governo autoritário pode garantir.
A "lavagem cerebral" das seitas evangélicas, ampliadas pelas "fake news" e manipuladas pelos média, ao serviço de interesses vários, contribuem para o caos instaurado.
A alienação e o ódio, são totais.
Entrámos (entraram, os brasileiros) na fase da irracionalidade.
Nada é previsível e o pior pode acontecer.
Uma tragédia anunciada, o Brasil.

Convite


2018/10/22

DOCLisboa 2018


Está de volta o DOCs, o mais importante festival de cinema documental de Lisboa, este ano na sua 16ª edição. São mais de 200 filmes, de longa e curta metragem que, ao longo de 10 dias (18-28 de Outubro), podem ser visionados em cinco salas da capital: a Culturgest (sede e bilheteira central do festival), o cinema S. Jorge (onde tudo começou), a Cinemateca Portuguesa (parceiro habitual do evento), a Cinemateca Júnior (com filmes dedicados aos mais jovens) e o Cinema Ideal (parceiro recente desta aventura).
Nem sempre é fácil ver os filmes mais badalados ou aqueles que suscitam maior curiosidade. Seja pela temática, seja pela obra dos autores, muitos deles nomes habituais do certame.
Uma das dificuldades, reside na dispersão do festival pela cidade, que obriga a verdadeiras maratonas entre as salas, nem sempre com sucesso: ou falta tempo ou faltam bilhetes.
Como habitualmente, o Festival está organizado em secções temáticas, das quais a "Competição Internacional" é apenas a mais visível, devido às menções atribuídas por um júri internacional, que garantem a distribuição automática dos filmes no circuito comercial.
Depois, a "Competição Portuguesa", com obras de novos e consagrados autores, que aqui apresentam os seus filmes em estreia. Também esta secção é premiada.
Mas, há mais: A secção "Riscos: new visions", com três autores convidados (James Benning, Mike Hoolbom, Jen-François Stévenin; a secção "Retrospectiva" (este ano dedicada ao realizador colombiano Luis Ospina); a secção "Foco: navegar o Eufrates, viajar no tempo do Mundo"; a secção "Da Terra à Lua"; a secção "Heart Beat"; a secção "Cinema de Urgência"; a secção "Verdes Anos" (dedicado a jovens autores portugueses); a secção "DOC Alliance" e a secção "Projecto Educativo".
O festival oferece ainda, outras actividades paralelas, como o Encontro com Luís Ospina, "workshops" com técnicos de laboratório e práticas cinematográficas, exposições fotográficas, sala de projecções em vídeo, etc. Uma festa, portanto!
Destaque, neste primeiro fim-de-semana, para os títulos "The Waldheim Waltz" da austríaca Ruth Beckermann (2018), sobre o ex-secretário-geral das Nações Unidas, impedido de concorrer ao cargo de presidente daquele país, devido à colaboração com o nazismo durante a guerra; o filme "The Silence of the Others", de Almudena Carracedo e Robert Bahar (2018), sobre as vítimas e sobreviventes da ditadura franquista, e "Fahrenheit 11/9", de Michael Moore (2018), um olhar provocador e cómico sobre a era de Trump (como entrámos e podemos sair dela).
Dos filmes vistos, realce para "Matislav Rostropovich, the indomitable bow" de Bruno Monsaingeon (2017), sobre o génio do violoncelo, forçado a um exílio de 16 anos, depois das autoridades soviéticas lhe terem retirado a nacionalidade e de ter ajudado Soljenitsine (Arquipélado de Gulag) que chegou a viver na sua casa de Moscovo. Um documentário de uma sensibilidade extraordinária, sobre um dos maiores músicos do século passado, onde são passados em revista os momentos mais significativos da sua atribulada, mas preenchida vida.
Uma agradável surpresa, seria o filme "Il sogno mio d'amore" de Nathalie Mansoux e Miguel Moraes Cabral (2018), uma produção difícil, realizada ao longo dos anos 2014 e 2015, sobre o Conservatório Nacional de Música onde, em condições milagrosas (há tectos a cair!), professores e demais pessoal daquela casa, asseguram que a música, o canto e a dança, sejam ensinados diariamente a jovens talentos que deslumbram pela tenacidade e qualidade. Uma pequena obra de arte, só possível graças à solidariedade de todas as pessoas envolvidas e ao exemplo de amor à arte, demonstradas em imagens inesquecíveis. Senhores ministros da educação e da cultura, vejam este filme e reflictam!
"Graves Without a Name" (2018) é o mais recente filme do realizador Rithy Pahn (Cambodja) que, a exemplo de obras anteriores, continua a obra de catarse e denúncia do regime dos Khmer Rouge que, durante a sua existência (1975-1979), foi responsável pela morte de mais de 1,5 milhões de pessoas (1/3 da população). A maior parte destas vítimas, morreram nos célebres "campos da morte" (Killing Fields) destinados à "reeducação" política. Pahn, o único sobrevivente da sua família, morta durante o regime de Pol Pot, conseguiu fugir para França, onde cursou cinema nos anos oitenta. Desde então, vem construindo um laborioso legado sobre a memória da ditadura, em imagens belas, mas terríveis pelo seu significado (o regime não deixou quase nenhum material, filmado, sobre as condições existentes nos campos), as quais constituem, já hoje, o maior legado ao Museu da Memória da Ditadura, no Cambodja. Lembramos, para quem não conheça, os filmes "Rice People" (1994), "S-21: The Khmer Rouge killing machine" (2003), provavelmente o seu filme mais famoso, "Paper cannot wrap up members" (2007), "The missing people" (2013), o meu preferido e "Exile" (2016), este exibido no DOCs. Com o seu mais recente filme, Pahn conduz-nos, numa viagem iniciática (o realizador é o intérprete principal), aos campos de arroz, onde a família pereceu e onde, hoje, nada mais resta do que pó e pedras em campas vazias. As vozes dos sobreviventes são, agora, o único testemunho. A partir, daqui, que mais nos poderá mostrar o realizador? O círculo parece fechado. A memória, essa, permanecerá.