2019/07/04

O Cinema e a Memória

Em tempos de populismo iliberal, um eufemismo para o autoritarismo que alastra na Europa, assistimos à crescente influência de líderes que não disfarçam a sua aversão à democracia parlamentar que governa a UE. É o caso dos governos da Hungria, da Polónia, da República Checa ou da Eslováquia, mas também da Itália de Salvini, onde o respeito pelas instituições democráticas (justiça, imprensa, direitos humanos e laborais) é diariamente ignorado, em total contradição com a própria Constituição Europeia, que é suposto respeitarem. Aparentemente, o fenómeno, que não é novo, radica na insatisfação de largos sectores da sociedade, alarmados com o desenrolar de uma História, na qual deixaram de ser protagonistas. Não por acaso, estes movimentos populistas (de direita), medram em regimes democráticos, onde são tolerados e contra os quais podem protestar, acusando as elites (às quais pertencem) de serem os principais responsáveis por todos os seus infortúnios. Porque os argumentos racionais fogem ao seu controlo, refugiam-se na "razão" da emoção, uma arma poderosa na mão de demagogos, ou em explicações simplistas para problemas complexos, dos quais não lhe interessa saber. Junte-se a esta (falta de) ideologia, a negação da realidade e podemos perceber melhor uma receita que anima esta crença sem teoria. Um dos problemas maiores desta negação, é o apagamento da memória histórica, elemento essencial para entender um processo que nunca estará concluido, mas ao qual sempre recorremos quando a interpretação e a explicação dos factos, assim o exigem.
Como bem assinala o historiador Rui Bebiano, "vivemos uma inquietante vaga de rasura da memória projectada, a partir do apagamento da reescrita e da trivialização de episódios da História" que, segundo ele, urge reverter.  A propósito de um inquérito feito em diversos países, junto das gerações mais novas, sobre factos marcantes do século XX, acrescenta: "O "dever da memória", intervém aqui como instrumento da necessidade de olhar o passado traumático, estudado e transmitido pela História, enquanto algo sobre a qual, face ao sofrimento das vítimas, aos crimes dos seus algozes e às circunstâncias que os determinaram, a interpretação exclui a indiferença moral. Responsabilizando Estados, grupos e indivíduos, para episódios passados e trabalhando, como sugeriu Primo Levi, para que não se repitam no futuro".
Entre os meios usados na perpetuação deste "dever da memória", o cinema, na sua versão documental, ocupa, por isso, um lugar central. Na linha dos grandes documentaristas da memória histórica - Claude Lanzmann (Shoah) sobre o holocausto; Leslie Woodhead (A Cry from the Grave) sobre o genocídio na Bósnia; Rithy Panh (S-21: The Khmer Rouge Killing Machine) sobre o regime de Pol-Pot; Patrício Guzmán (Nostalgia da Luz) sobre as vítimas de Pinochet; Joshua Oppenheimer (O Acto de Matar) sobre as milícias de Suharto, etc. - surgem, agora os realizadores Almudena Carracero e Robert Bahar (El Silencio de Otros), com um filme sobre as vítimas do franquismo.
O filme, estreado em Portugal, por ocasião do último "DOCs" e, posteriormente, agraciado com o prémio Goya para o melhor documentário espanhol 2018, ganharia outros prémios internacionais, entre os quais o do melhor documentário europeu, tendo ainda sido nomeado para os óscares de Holywood 2019. Documento impressionante, que relata o papel da "Associação de Recuperação da Memória Histórica" (ARMH), constituida em 2000 para recuperar os corpos das vítimas do franquismo, enterradas em valas comuns (114.000 desaparecidos),"O Silêncio dos Outros", mais do que a denúncia da barbárie fascista, permanece como um dos grandes filmes de memória de sempre.
No âmbito das sessões sobre temas da actualidade, a "Associação José Afonso" (núcleo de Lisboa) organiza uma sessão especial, com a projecção do filme "O Silêncio dos Outros", que contará com presença de Diana Andringa, jornalista e documentarista.
"O Silêncio dos Outros", será exibido no dia 5 de Julho, pelas 18.30h, na sede da AJA, Rua de São Bento 170, Lisboa.