2009/06/27

O Auto dos Economistas

Vem Mestre Filipe y diz: "Ora será bom que tomeis cristel d'água de cevada com farelos misturada. E sabeis que comereis? Uma alface esparregada. Fazei o que vos digo, que essa febre é velhaca, procede da cardiaca: atentais no que vos digo? Até vermos se se apraca, faç'ele embora as urinas, e pela manhã eu virei..."
Y vem Mestre Fernando, o sorlogião, que fala: "Pera a febre jogamos a que tem lebre? Ora vos faço a saber que há-de comer cousa leve. Nem a lebre, nem coelho, nem porco, nem cação, congro, lampreia, tubarão, não coma de meu conselho inda qu'estivesse são."
Por fim, vem Mestre Henrique que diz: "Esta febre es sincopal, y la enfermedad tal, cúrase con mucho peso... Havéis mirado? —Qué es mortal! Que cuando la colora adusta... Havéis mirado? —s'enfría, buelvese malenconía... Havéis mirado? — y desgusta la salud de la sangría. Havéis mirado? Y ansí que havemos experiencia que non hay ninguna dolencia que yo quisiesse pera mí en cargo de mi concencia."
Diz o Moço, ay cuitado: "Pardeus, em grande embaraço vejo eu estes doutores!"
Y, por fim, Gil Vicente mandaria sobre los manifestos y contra-manifestos da economia este fino recado: "Quede ansí este misterio suspenso hasta el verano. Que otro de más flores para pascua tenho sembrado."
Laus Deo.

2009/06/26

Para quê uma Lei de Imprensa?

Não se percebe como é que este episódio da intenção da PT de comprar parte da Media Capital não provocou no país um enorme e veemente movimento de indignação. A operação em si era suspeita e levantava de facto legítimas dúvidas. O PR esteve bem ao assinalá-lo. Mas, o recuo e as justificações do governo sobre esta matéria parecem-me bem mais escandalosos. E sobre isso não vejo nenhum comentário...
Então a alteração da formação do capital de uma empresa de comunicação social é susceptível de poder ser intepretada como sinal de que isso pode provocar, sem mais nem menos, alterações na orientação editorial dessa empresa? Ah, é?!
Então a empresa em questão não tem um Estatuto Editorial? E as alterações a esse estatuto não têm de ser sujeitas a uma série de procedimentos legais, nomeadamente, ao parecer do conselho de redacção? Ou seja: podemos ser levados a suspeitar que a PT, por delegação de competências do governo, poderia entrar pela TVI dentro e desatar a escaqueirar tudo aquilo, ultrapassando a Lei como quisesse?
Então isso seria possível, pergunto eu ingenuamente...? Mas, não há uma Lei de Imprensa que regula tudo isto?! E o Primeiro Ministro nem sequer sublinha o facto de que esta matéria se encontra regulamentada pela dita Lei?!!
Será que na RTP, por exemplo, o Estatuto Editorial pode ser alterado, passando por cima das disposições legais em vigor...? E em qualquer outro orgão de comunicação isso também é possível? Porquê a excepção para a TVI? Para quê exigir então a observação de tantos procedimentos legais para a formação de um orgão de comunicação? Para que é que existe tanto rigor em relação à clareza da formação do capital social dessas empresas? Para quê a obrigatoriedade de um Estatuto Editorial? Por que razão se exige que este seja do conhecimento público obrigatório? Qual é afinal o papel e a responsabilidade do director de um orgão de comunicação?
Não era mais fácil que, em vez de leis e outros procedimentos chatos e fastidiosos, fosse tudo à molhada e fé em Deus? Resulta para uma data de coisas... Ou não seria mesmo preferível voltar a ter uns coronéis de lápis azul em punho, como havia antigamente? Ao menos sabia-se de antemão ao que vinham...
Com toda esta fantochada quase que me apetece defender o dr. Jardim da Madeira. Esse ao menos poupa-nos a exercícios de cinismo como este com que agora o governo central nos tenta adormecer.
Será que a proximidade do fim de semana retirou capacidade de discernimento aos portugueses?

2009/06/25

A auto-estrada rosa e a auto-estrada laranja

Num país normal há muito se saberia quais as datas das eleições legislativas e autárquicas. Em Portugal, não.
Para além de bizarra, esta situação é, no mínimo, caricata e releva do nosso atraso tradicional. Se a legislatura foi normal, tendo inclusive durado mais do que os quatro anos habituais, o que impede de serem conhecidas as datas eleitorais com a devida antecedência? E porque é que o Presidente da República não ouviu há mais tempo os partidos sobre esta questão?
Pior, questionado esta semana, Cavaco Silva lembrou o histórico de eleições anteriores (quantas?) onde teria havido eleições simultâneas e citou sondagens (quais?) onde os inquiridos teriam manifestado a sua preferência por realizar eleições diferentes no mesmo dia. Mas, então, o Presidente da República anda a reboque da opinião de um milhar de inquiridos em sondagens aleatórias? Há aqui qualquer coisa que me escapa. A menos que o PR tenha uma "agenda escondida" e queira beneficiar o PSD, o único partido que prefere eleições legislativas e autárquicas em simultâneo. Para as restantes forças partidárias com representação no hemiciclo (e são todas) as eleições devem ser em dias diferentes.
À excepção da abstenção, que pode ser ainda maior em caso de datas diferenciadas, não nos parece existirem outros argumentos importantes a favor da mesma data eleitoral. Mesmo o factor "custo", que a líder da oposição tem vindo a agitar como um "papão orçamental", não nos parece relevante. Como demonstram as contas, as despesas extra não ultrapassariam a "iluminação" da Avenida da Liberdade em épocas festivas. Cerca de 4 milhões de euros.
Por outro lado, ganhar-se-á em transparência democrática e em reforço da democracia, pois tanto os partidos como os votantes poderão escolher os seus representantes distintos em campanhas com características distintas. O dinheiro "a mais", gasto em eleições separadas, será sempre inferior ao preço de um qualquer quilómetro de auto-estrada, seja esta de côr rosa ou laranja. O Presidente da República devia saber isso.

2009/06/21

Une voix trés humaine

Para quem não conhece, digo-lhe que a nave do Igreja do Mosteiro de Alcobaça tem para cima de 100 m de comprimento, 20 m de largura e 50 m de altura. Não quero exagerar, mas o tempo de reverberação deve exceder bem os 15 segundos. Tudo parece grandioso neste espaço.
Imaginem agora o pequeno foco sonoro, colocado sensivelmente a meio desta longa nave.
Uma viola da gamba, esse instrumento delicado, dos espaços íntimos e das expressões sonoras subtis, a voix humaine que fez a delícia dos poderosos entre o século XVI e o século XVIII. A viola da gamba foi desaparecendo da paleta instrumental dos compositores à medida que os espaços de concerto foram crescendo, ou o sentido da audição dos junkies da música foi necessitando de estimulantes sonoros cada vez mais poderosos. Um instrumento que fugiu dos espaços nobres da música, mas que, graças a um movimento de revivalismo que começou no século passado, conhece hoje uma popularidade crescente e um interessse renovado pelas suas características únicas.
Imaginem, pois, por favor, esse instrumento subtil, que brilhava nos espaços íntimos dos salões dos poderosos, a soar hoje no espaço imenso da Igreja do Mosteiro de Alcobaça, tocada pelo mestre dos mestres, Jordi Savall. Num contexto destes, posso-vos dizer que a viola da gamba parecia um instrumento vindo do Céu. E posso-vos garantir também que esta viola da gamba celeste foi pretexto para revisitar a minha origem mais remota...
Imaginem agora mais de 700 pessoas a assistir, atentas, a grande maioria delas constituída certamente por forasteiros atraídos por este último e singular evento do Cister Música - Festival de Música de Alcobaça. Pensem no que poderá ter feito rumar a Alcobaça toda aquela gente, para ouvir um instrumento que não deixou qualquer rasto na história da música portuguesa.
Há-de ser amor verdadeiro pela música!
Vá-se lá então perceber porque é que, pelo menos, estas mais de 700 pessoas não andam atrás do ministro, a fazer-lhe esperas em parques de estacionamento e a exigir-lhe explicações sobre as malfeitorias (confessadas!) que este governo tem feito na área da cultura; porque é que não desfilam na Avenida da Liberdade, empunhando cartazes e tarjas pretas; porque é que não fazem vigílias à porta de S. Bento ou outra qualquer iniciativa de luta, daquelas que com belo efeito são frequentemente usadas por quem se sente e vê, de alguma forma, os seus interesses lesados por esta manhosa legislatura em que vivemos...? Deixemos as subtilezas para a viola da gamba...