2019/07/21

Do Racismo Lusitano


Passaram duas semanas sobre o polémico artigo de M. Fátima Bonifácio (MFB), mas as ondas de choque provocadas continuam a fazer sentir-se diariamente nos jornais e nas redes sociais. Há textos de todas as matizes e para todos os gostos e, como alguém escreveu, a quantidade é tal que daria para uma tese de mestrado.
Ora, isso é bom, pois nada como uma salutar polémica, estejamos ou não de acordo com os argumentos apresentados pelos cronistas de serviço. Globalmente, podemos dividir as opiniões publicadas em dois grandes grupos: os que criticam abertamente as posições defendidas por MFB e os que, começando por criticar, acabam a defender a historiadora, alegando que o texto, pesem as suas incongruências, merece reflexão. No primeiro grupo, encontramos gente normalmente identificada com a esquerda política; no segundo, gente da chamada direita liberal. Nada de estranho, aqui também. O texto é fracturante e só podia desencadear reacções opostas.
Mas, afinal, o que escreveu a historiadora MFB, no seu texto "Podemos? Não, não podemos" (in "Público" d.d. 6 de Julho último)?
A propósito de uma notícia, publicada no mesmo jornal a 29 de Junho, com o título "O PS quer discriminação positiva para as minorias étnico-raciais", a cronista escreve: "Em causa estão sobretudo africanos e ciganos, independentemente de terem nascido em Portugal ou não. Estas minorias, excluídas da cidade e a sua suposta ou real marginalização constituem a prova de que Portugal "continua a ter um problema de racismo e xenofobia", independentemente do efeito - que de resto não sofremos - do drama dos refugiados, com o seu pico mais trágico em 2015".
Bonifácio, que é contra um sistema de "quotas", defendido pelo sociólogo e secretário-nacional do PS, Rui Pena Pires - que "lamenta a falta de diversidade no espaço público e vê com bons olhos uma iniciativa que ajude a resolver o problema da visibilidade dos africanos e dos ciganos nas instituições, a exemplo do que aconteceu com as mulheres" - pergunta retoricamente "se as quotas tinham impulsionado a emancipação e igualização dos direitos das mulheres, se lhes haviam aberto o espaço público, porque não aplicar a mesma receita às minorias étnicas?" Para logo prosseguir com estas "pérolas": "A comparação com a igualdade ou paridade de género é inteiramente falaciosa. As mulheres que, sem dúvida, têm nos últimos anos adquirido uma visibilidade sem paralelo com o passado, partilham, de um modo geral, as mesmas crenças religiosas e os mesmos valores morais: fazem parte de uma identidade civilizacional cultural e milenária que dá pelo nome de Cristandade. Ora isto não se aplica a africanos nem ciganos" (!?). Nem uns nem outros descendem dos Direitos Universais do Homem, decretados pela grande Revolução Francesa de 1789 (!?). Uns e outros possuem os seus códigos de honra, as suas crenças, cultos e liturgias próprias" (!?). E à frente: "Os ciganos, sobretudo, são inassimiláveis: organizados em famílias, clãs e tribos, conservam os mesmo hábitos de vida e os mesmo valores de quando eram nómadas. E mais, eles recusam terminantemente, a integração" (!?). Africanos e afro-descendentes também se auto-excluem, possivelmente de modo menos agressivo, da comunidade nacional. Odeiam ciganos. Constituem etnias inconciliáveis e, desta mútua aversão, já nasceram em bairros periféricos e em guetos que metem medo, batalhas campais só refreadas pela intervenção policial" (!?).        
O artigo prossegue no mesmo tom e seria fastidioso citá-lo todo. Para exemplo, deve bastar.
Perante as críticas que choveram dos mais diversos quadrantes, os "adeptos" da historiadora (a maioria agrupados no "Observador", "think tank" da "alt-right" lusitana) vieram a terreno tentar limitar os estragos.
José Manuel Fernandes, paladino liberal dos bons costumes, até começa bem: "as generalizações feitas por Bonifácio, são abusivas, caricatas, mesmo ofensivas", para refrear as críticas logo a seguir e escrever: "mas, há verdades no texto que não podemos ignorar"...
Rui Ramos, igualmente historiador, tenta pôr água na fervura: "(Bonifácio) não evitou alguns equívocos", mas nada do que ela escreveu faz da autora (se ele percebeu bem) uma racista e muito menos do seu artigo um manifesto racista. Isto porque, segundo Ramos, se retirarmos do texto de Bonifácio tudo o que é racista, abusivo, caricato e ofensivo, o texto não é racista...
Helena Matos, nem sequer perde tempo a distanciar-se do texto. Limita-se a reproduzir o que dizem nas periferias de Lisboa e Setúbal (as mesmas "fontes" que Bonifácio cita no seu artigo) e condena o "fatwa" contra Bonifácio. É bom recordar, que Helena Matos já se tinha indignado com o "fatwa" contra Mário Machado, o "skinhead" condenado a dez anos de prisão por, entre outros crimes, ter participado no assassinato do cabo-verdeano A. Monteiro, num 10 de Junho, em Lisboa.
No "Público", Vasco Pulido Valente, começa por explicar, num único argumento, porque é que MFB não é racista: "conheço a Fátima há quase 50 anos. Nunca dei porque ela fosse xenófoba ou racista". Logo, se VPV não deu por nada, é porque não existe...
João Miguel Tavares, cronista no mesmo jornal onde escreve a historiadora, começa por justificar a sua crítica, declarando que admira Bonifácio, mas não pode ignorar os termos do artigo. Diz ele: "Infelizmente, não gosto nem um bocadinho do artigo "Podemos? Não, não podemos", não reconheço nele a mulher que admiro, nem percebo como pode ser intelectualmente sustentado com tantas generalizações de cair o queixo - e que, sim (custa-me muito dizer isto), entram mesmo no campo do racismo (...) Pular da crítica a uma determinada cultura, para a crítica de todos os indivíduos que a integram, é um salto inaceitável" (in "Público" d.d. 9 de Julho).
Ou seja, apesar do tom racista do artigo (que defende explicitamente a exclusão das minorias africanas e ciganas, condenando-as a viver em guetos onde reproduzem o ciclo de pobreza e discriminação de que são alvo) os admiradores de Bonifácio não se detêm um momento para analisar as causas desta exclusão e, ainda menos, propõem uma solução para tentar integrar estes grupos minoritários. À excepção de epifenómenos, como o de Alfragide (onde jovens africanos foram espancados numa esquadra pelos polícias de turno) e do bairro Jamaica (que esteve na origem da manifestação de desagravo em Lisboa), o racismo continua a ser um tema "tabu" na sociedade portuguesa. Fomos colonialistas durante 500 anos e fizemos uma guerra colonial durante outros 13, mas continuamos embuídos do auto-justificativo pensamento "luso-tropicalista", como se o nosso racismo fosse diferente dos demais. É mentira, como este artigo de uma académica, que defende a ideologia da "supremacia branca", prova.
O tema entrou definitivamente na agenda política e é bom que assim seja, pois é a única forma de exercitar "fantasmas". Para já, deu alento a outros racistas envergonhados, que não esperaram para demonstrar aquilo que sempre os moveu: o ódio ao outro, o único ponto da sua pobre agenda política. Vão aparecer mais, não tenhamos ilusões. Afinal, Portugal não é uma "ilha" na Europa.